Enquanto o rico faz guerra,é o pobre que morre. Jean-Paul Sartre. |
Muitos dos especialistas em desenvolvimentos históricos tendem a considerar
outra guerra mundial como deslocamento em grande escala de meios militares,
para forçar a derrota, a destruição ou a subjugação de oponentes desafiantes.
Embora não se deva descartar a possibilidade desse cenário terrível, já há
motivos para começar a trabalhar com a possibilidade de que a muito discutida
3ª Guerra Mundial será guerra diferente: mais guerra entre classes, que entre
exércitos.
Vista sob essa luz, a 3ª Guerra Mundial já está aí; e, de fato, já está
sendo guerreada há anos: de um lado, a guerra neoliberal, unilateral,
transfronteiras, da economia da austeridade, cujos ‘guerreiros’ são a classe
transnacional da oligarquia financeira, contra a vastíssima maioria dos
cidadãos do mundo – os 99% globais.
A globalização do capital e interdependência dos mercados mundiais
alcançaram um ponto no qual confrontos militares de larga escala, como se viram
na 1ª e na 2ª Guerra Mundial podem levar à catástrofe financeira de todos. Não
surpreendentemente, a rede das elites financeiras transnacionais, que com
frequência elegem políticos e controlam o governo por trás das cortinas, não
manifestam qualquer interesse por outra guerra de liquidação internacional, que
poderia paralisar os mercados financeiros mundiais.
Isso explica por que as agressões imperialistas recentes têm tão
frequentemente assumido a forma de intervenções de “soft-power” ["poder
suave"]: revoluções ‘batizadas’ com líricos nomes de cores, golpes de
estado ditos “democráticos”, guerras civis pré-fabricadas, sanções econômicas e
ações assemelhadas. Claro que a opção militar sempre aparece como pano de
fundo, a ser ‘acionada’ quando/se as estratégias do tal “poder suave” da tal
“mudança de regime” fracassam ou se comprovam insuficientes.
Mas mesmo nesse caso, todos os esforços se empreendem (pelas grandes
potências capitalistas) para que tais intervenções militares sejam
“controladas” ou “gerenciáveis”, vale dizer, limitadas ao nível ou local ou
nacional. Essas guerras “controladas” tendem a salvaguardar as fortunas dos que
lucram com guerras e dos beneficiários dos gastos militares (principalmente os
grandes bancos e o complexo militar-industrial); elas não levam à paralisia dos
mercados financeiros internacionais.
O mesmo processo também explica por que grandes potências mundiais como
China, Rússia, Índia e Brasil tendam a se afastar e a não apoiar mais
robustamente as políticas de abuso e provocação [orig. bullying] promovidas
pelos EUA. Os círculos oligárquicos ricos nesses países têm mais a ver com as
elites nos EUA e em outros países capitalistas centrais, que com o resto da
população local em seus países. “Independente de se residam em New York ou Hong
Kong, Moscou or Mumbai, os super-ricos, hoje e cada vez mais constituem uma
nação, eles próprios” – diz Chrystia Freeland, editora-global da Reuters, que
viaja com as elites para vários lugares do mundo.
É portanto lógico acreditar que, sim, há uma aliança de fato entre
membros dessa ‘nação’ global dos super-ricos, a qual ajuda a facilitar a
operação dos esquemas imperialistas da mudança de regime. Por exemplo,
quando/se a Rússia é ameaçada pelos EUA e seus aliados, os oligarcas russos
tendem a colaborar clandestinamente com os oligarcas seus ‘companheiros’ de
classe, no ocidente; assim, esses oligarcas, juntos, minam a resistência da
Rússia contra a interferência das potências ocidentais.
Rápido exame dos esquemas para mudar regimes em países como Iraque e
Líbia por um lado; e Ucrânia e Irã, pelo outro lado, pode ajudar a compreender
quanto ou onde as potências imperialistas recorrem à ação militar direta para
fazer a tal “mudança de regime” (como no Iraque e na Líbia), e quando ou onde
elas recorrem a táticas de “soft-power” para obter o mesmo resultado – como na
Ucrânia e no Irã. Duas principais razões ou considerações podem ser
identificadas aí, quer dizer, em relação à escolha, pelos imperialistas, de
meios ou táticas para mudar regimes.
A primeira dessas razões está relacionada ao nível de diferenciação de
classes dentro dos países tomados como alvo para mudança de regime. Dada a
extensa (e muitas vezes escandalosa) privatização de propriedade pública tanto
na Ucrânia como no Irã, emergiram nesses dois países círculos de oligarcas
financeiros muito, muito ricos.
Esses magnatas do dinheiro orientado pelo ocidente tendem a colaborar com
as forças intervencionistas imperialistas que visam à mudança de regime aliadas
a imperialistas internas. Assim se explica (pelo menos em parte) por que
esquemas de mudança de regime nesses países sempre começam com táticas de
“soft-power” e revoluções coloridas, em vez de intervenção militar direta.
Diferente disso, no Iraque de Saddam Hussein e na Líbia de Muammar
Gaddafi não havia essas classes ricas influentes e internacionalmente
conectadas com as classes ricas do mundo. Por menos que Saddam ou Gaddafi
fossem parâmetros de virtude e campeões de democraica, operaram como o que
algumas vezes se chama “ditadores ilustrados”: implementaram vastos programas
de bem-estar social, mantiveram economias fortes no setor público; resistiram
contra a privatização de serviços públicos como saúde e educação, e mantiveram
como propriedade estatal e sob o controle do estado as chamadas grandes
indústrias, ou indústrias “estratégicas”, como a indústria da energia e o
sistema bancário/financeiro.
Combinadas, essas políticas impediram o crescimento de elites financeiras
poderosas, como as que emergiram e desenvolveram-se no Irã ou na Ucrânia.
Significa, dentre outras coisas, que táticas de mudança de regime, que dependem
fortemente de elites nativas ou locais, a chamada burguesia comprador, não têm
boa chance de serem bem-sucedidas nesses países. Daí o uso do “hard-power”,
vale dizer, da intervenção/ocupação militar direta dos países, no Iraque e na
Líbia.
A segunda consideração imperialista na escolha entre táticas “soft” e
“hard” no processo de mudança de regime está relacionada a se a guerra a ser
provocada para mudar o regime pode ser controlada e gerenciada no nível local
ou nacional; ou se a guerra pode escapar ao controle local e tornar-se guerra
regional e/ou global.
No caso da Ucrânia, por exemplo, uma agressão militar direta com certeza
envolveria a Rússia, e muito provavelmente se tornaria global, com
consequências econômico/financeiras desastrosas que as potências imperialistas
não conseguiriam controlar. Daí a escolha de golpe de estado de tipo “soft”,
dito “democrático”, na Ucrânia.
Problema semelhante – o temor de que se origine ali uma guerra total, que
escape ao controle -, bloqueia sempre a possibilidade de ataque militar contra
o Irã; e explica também por que o golpe de mudança de regime naquele país
tem-se focado (pelo menos até agora) em sanções econômicas e outras táticas de
“soft-power” – inclusive a tentativa de ‘revolução verde’, de 2009.
Por outro lado, o “poder duro”, a força militar mais brutal, foi usada
para o golpe de ‘mudança de regime’ no Iraque e na Líbia, por causa da certeza
praticamente total de que guerras que se originassem do golpe para mudança de
regime naqueles países poderiam ser controladas com sucesso satisfatório, vale
dizer: seria possível impedir que se convertessem em guerras regionais ou
globais.
O caso da Ucrânia.
A recente crise na Ucrânia, que continua, serve como exemplo claro de o
quanto as elites financeiras transnacionais tendem a evitar guerras
internacionais cataclísmicas da escala da 1ª ou da 2ª Guerra Mundial, em favor
de guerras controláveis e quase sempre entre classes, mediante sanções
econômicas e outras táticas de “soft-power”.
Imediatamente depois do putsch de 22 de fevereiro em Kiev, que derrubou o
presidente legalmente eleito Viktor Yanukovych e pôs no poder um governo de
golpistas neofascistas apoiados pelos EUA, as tensões entre a Rússia e as
potências ocidentais subiram tanto, que houve quem falasse de uma “iminente 3ª
Guerra Mundial”.
Embora aquelas tensões persistam e ainda haja risco de grande confronto
militar entre aqueles dois lados, tudo isso diminuiu muito depois do início de
maio, depois que o presidente Putin da Rússia anunciou, dia 7 de maio, que a
Rússia respeitaria o resultado da eleição presidencial na Ucrânia e trabalharia
com qualquer dos candidatos que fosse eleito (e Petro Proshenko foi eleito).
Apesar de que os autonomistas pró federalização do sul e leste da Ucrânia
continuem som ataque violentíssimo, prosseguem manobras diplomáticas, e é bem
evidente que representantes das elites financeiras de EUA, Europa, Ucrânia e
Rússia conseguiram impedir um confronto militar entre EUA e Rússia.
Assim sendo, o que mudou, das primeiras ameaças de sanções paralisantes
e/ou ataque militar contra a Rússia, para o que temos hoje, com tensões
diminuídas e busca de “soluções diplomáticas”?
A resposta, em resumo apertado, é que os poderosos interesses econômicos
investidos na finança, no comércio e nos investimentos internacionais (vale
dizer: os interesses da elites financeiras na Rússia, na Ucrânia e nos países
capitalistas centrais) simplesmente não podem correr o risco de uma uma guerra
mundial incontrolável. Sim, é verdade que grandes bancos e influentes complexos
militar-industrial-de-segurança tendem a florescer onde haja guerra perpétua e
tensões internacionais. Mas eles também tendem a preferir guerras
“gerenciáveis” “controláveis” em nível local ou nacional (como as guerras que
fizeram contra o Iraque ou a Líbia, por exemplo), a guerras cataclísmicas em
grande escala, em níveis regional ou global.
Não é segredo que a economia da Rússia vai-se tornando cada dia mais
mesclada às economias ocidentais (em larga medida por causa do poder e do modo
de atuar dos oligarcas russos), e que também se tornou sempre mais vulnerável a
flutuações do mercado global e a ameaças de sanções econômicas. Isso explica,
em boa medida, os gestos conciliatórios e as políticas de acomodação do
presidente Putin, para diluir diplomaticamente as hostilidades em torno da
crise na Ucrânia.
Menos discutido, contudo, é o fato de que as economias ocidentais também
são vulneráveis às sanções que a Rússia venha a import, caso decida retaliar.
Verdade é que a Rússia controla algumas armas econômicas muito poderosas, com
as quais poderá retaliar, se decidir fazê-lo. Os ferimentos econômicos
produzidos por sanções recíprocas podem ser muito, muito dolorosos para vários
países europeus. Dada a interconexão da maioria das economias e mercados
financeiros, sanções recíprocas podem exacerbar muito gravemente a já
fragilizada europa e, daí, também a economia mundial:
Sanctions on Russian exports would greatly expose the EU. Europe imports
30% of its gas from the Russian state-owned company Gazprom. Rússia is also
Europe’s biggest customer. The EU is, by far, Rússia’s leading trade partner
and accounts for about 50% of all Russian exports and imports.
In 2014, EU-Rússia overall trade stands at around 360 billion euros
(US$491 billion) per year. Rússia’s total export to the EU, which is
principally raw materials such as gas and oil, stands at around 230 billion
euros, while Rússia’s imports from the EU amount to around 130 billion euros of
mainly manufactured products as well as foodstuff. The EU is also the largest
investor in the Russian economy and accounts for 75% of all foreign investments
in Rússia. [1]
A Rússia também pode retaliar contra políticas das potências ocidentais e
suas ameaças de congelar ativos de indivíduos e empresas, congelando, também os
russos, patrimônio de empresas e investidores ocidentais:
“No caso de sanções econômicas ocidentais, deputados russos já anunciaram
que aprovarão autorização para congelar ativos de empresas europeias e
norte-americanas que operam na Rússia. Por sua vez, mais de 100 empresários e
políticos russos podem ter bens congelados na União Europeia
Além de Alexey Miller, presidente da Gazprom, também o presidente da
Rosneft, Igor Sechin, parece estar na lista dos ‘sancionados’. Rosneft é a
maior empresa privada de petróleo do mundo e, nessa condição, tem acionistas e
sócios espalhados por todo o planeta, inclusive no ocidente. Por exemplo, a
Exxon-Mobil, empresa que tem sede nos EUA, é parceira da Rosneft num projeto
conjunto de exploração de petróleo, de $500 milhões, na Sibéria; e a
Exxon-Mobil também é sócia da gigante do petróleo russo na exploração das
reservas de petróleo do Mar Negro.[2]
A Rússia tem à sua disposição armas econômicas suficientes para infligir
considerável dano às economias dos EUA e de países europeus. Por exemplo, em
reação a ameaças de ter bens congelados por EUA e aliados europeus, a Rússia
liquidou (no final de fevereiro e início de março de 2014) mais de $100 bilhões
em papeis do Tesouro dos EUA.
A escalada dessas ameaças temerárias de congelar bens de governos “não
amistosos” pode vir a envolver também a China, com consequências desastrosas
para o dólar norte-americano, uma vez que “a China possui estimados $1,3
trilhão em bônus do Tesouro dos EUA, e é o investidor número 1, dentre governos
estrangeiros”.[3]
Esse alto grau de interconexão econômica/financeira explica por que – com
o apoio de Washington e acenos favoráveis de Moscou – diplomatas de Berlim e
Bruxelas acorreram a Kiev, construíram uma chamada “Mesa Redonda de Discussões”
e abriram caminho para a eleição-presidencial farsesca realizada dia 25/5, o
que deu legitimidade ao golpe de Estado e permitiu evitar uma possível escalada
destrutiva de sanções econômicas e/ou ações militares.
Comparação com Iraque e Líbia.
A ‘mudança de regime’ na Líbia (2011) e no Iraque (2003) mediante
intervenções de “poder violento” (em oposição aos esquemas de “poder-suave”
para mudança de regime) tende a dar suporte ao argumento base que se desenvolve
nesse ensaio, segundo o qual, na busca da mudança de regime, as potências
imperialistas recorrem a ação militar nos casos em que (a) o envolvimento
militar possa ser controlado e restrito exclusivamente ao país-alvo; e (b) não
se veem aliados locais significativos ou poderosos no país-alvo, vale dizer,
forças locais de oligarcas ricos com laços nos mercados globais e, assim, com
laços que as unam a forças externas às que promovem a mudança de regime.
Embora ambos, Gaddafi e Saddam governassem seus países com mão-de-ferro,
ambos mantiveram economias de setor-público forte e indústrias e serviços
amplamente nacionalizados. É verdade, especialmente no caso de indústrias
estratégicas, como energia, bancos, transportes e comunicações, e em serviços
vitais como saúde e educação.
Fizeram o que fizeram, menos por convicções socialistas (embora
ocasionalmente se apresentassem como líderes do “socialismo árabe”), mas
porque, em suas lutas contra regimes rivais anteriores de aristocracias tribais
ou de proprietários de terras, ambos aprenderam que controlar as economias
nacionais mediante administração burocrática de estado, com estado de bem-estar
eficaz, contribuíam muito mais para a causa da estabilidade e da continuidade
de seus respectivos governos; muito mais, com certeza, do que deixar que as
forças do mercado reinassem sem freio, com emergência de industriais e
financistas no setor privado, sempre muito poderosos.
Fosse qual fosse o motivo, fato é que nem Saddam nem Gaddafi conseguiram
impedir que crescessem poderosas elites financeiras, com laços significativos
com mercados globais ou potências ocidentais. Não surpreendentemente, as
figuras da oposição e forças que colaboraram para os esquemas imperialistas de
mudança de regime naqueles dois países foram, em larga medida, remanescentes
dos dias da realeza e das tribos, ou intelectuais menores expatriados e
perseguidores militares incansáveis de Saddan e Gaddafi, forçados a viver no
exílio.
Diferentes das elites financeiras na Ucrânia, por examplo, as forças da
oposição no Iraque e na Líbia não tinham fossem meios financeiros para
financiar a guerra de mudança de regime, nem base de apoio social suficiente em
seus países nativos. Tampouco tinham laços financeiros e políticos fortes ou,
pelo menos, confiáveis, com mercados e os establishments políticos ocidentais.
Isso explica por que as sanções econômicas e outras táticas de
“soft-power” (como mobilizar, treinar, financiar e armar forças de oposição
interna) se comprovaram insuficientes para derrubar (“mudar”) os regimes de
Saddam e Gaddafi; explica também por que o imperialismo dos EUA e suas elites
tiveram de usar “poder-violento” de ação/ocupação militar no Iraque e na Líbia,
para alcançar aquele seu objetivo nefando. Além do mais, como já disse, as
potências intervencionistas imperiais tinham certeza de que (ao contrário, por
exemplo, dos casos da Ucrânia ou Irã) aquelas invasões militares poderiam ser
controladas, e seria possível impedir que extravasassem para fora das
fronteiras de Líbia ou Iraque.
O caso do Irã.
A política dos EUA para derrubar o governo (‘mudar o regime’) do Irã
parece mais próxima do padrão seguido na Ucrânia que do padrão que se viu no
Iraque ou na Líbia. Isso, em larga medida, porque (a) temem que uma intervenção
militar direta no Irã não possa ser ‘contida’ e controlada de modo a que a
guerra fique restrita só ao Irã; e porque (b) o Irã tem uma oligarquia
financeira bem desenvolvida, orientada pelo/para o ocidente, na qual EUA e
aliados podem confiar para fazer reformas e/ou derrubar o governo (‘mudar o
regime’) de dentro para fora.
Claro que não é política de “ou-ou”: ou força militar ou “soft power”.
Trata-se, isso sim, de confiar mais numa ou noutra política, dependendo de
circunstâncias específicas. Na verdade, a agenda imperialista para derrubar o
governo (‘mudar o regime’) no Irã, desde a revolução de 1979 naquele país,
sempre incluiu cesta sortida de táticas (muitas delas às vezes discrepantes
entre elas). Vão desde estimular e apoiar Saddam Hussein para que invadisse o
Irã (em 1980), até treinar e pagar organizações terroristas anti-Irã; repetir
constantes ameaças militares e de guerra; esforços para sabotar a eleição
presidencial de 2009, com a chamada ‘revolução verde’; a esclada sistemática de
sanções econômicas.
Tendo sempre falhado (até agora) nos seus amaldiçoados esforços para
derrubar o governo do Irã (‘mudar o regime’) de dentro para fora, os EUA
parecem, recentemente, ter mudado de planos. Em vez de derrubar o governo do
Irã de dentro para fora, ultimamente os EUA parecem mais interessados em
reformar o governo do Irã de dentro para fora, vale dizer, mediante colaboração
política e econômica com correntes ‘ocidentalizantes’ dentro dos círculos de
poder do Irã.
O que parece ter tornado essa opção mais atraente para os EUA e aliados é
a ascensão de uma ambiciosa classe capitalista no Irã, cujas prioridades
parecem ser a capacidade para negociar com seus contrapartes ocidentais. São,
sobretudo ricos oligarcas ucranianos, cujo interesse são sempre negócios e mais
negócios; gente para quem questões como tecnologia nuclear ou soberania
nacional são temas de segunda importância.
Tendo enriquecido metodicamente (não raras vezes também escandalosamente)
nas sombras do setor público da economia iraniana, ou por força de posições que
ocupassem (ou continuam a ocupar) na burocracia governante em vários pontos do
aparelho governamental, essa gente hoje já perdeu o apetite que um dia teve por
medidas necessárias para que o país sobrevivesse à violência das brutais
sanções econômicas. Em vez disso, hoje querem saber de negócios e mais negócios
e investimentos e mais investimentos; portanto, precisam manter contato amplo
com seus aliados de classe transnacionais, em todo o mundo.
Mais que qualquer outro estrato social, o presidente Hassan Rouhani e seu
governo representam os interesses e aspirações dessa classe
capitalista-rentista iraniana. Representantes dessa classe de oligarquia
financeira manobram o poder econômico e político mediante, principalmente, a
super influente Câmara de Comércio, Indústrias, Minas e Agricultura do Irã
[orig. Iran Chamber of Commerce, Industries, Mines, and Agriculture (ICCIMA)].
As afinidades ideológicas e/ou filosóficas entre o presidente Rouhani e
os corretores ‘de poder’ que operam dentro da ICCIMA aparecem refletidas no
fato de que, imediatamente depois de eleito, o presidente nomeou para o cargo
de seu chefe de gabinete, o ex-presidente da ICCIMA, Mohammad Nahavandian –
economista neoliberal formado nos EUA e conselheiro econômico do ex-presidente
Hashemi Rafsanjani.
Foi através da Câmara de Comércio do Irã que, em setembro de 2013, uma
delegação de economista acompanhou o presidente Rouhani à ONU, em New York,
para negociar negócios e investimentos possíveis com contrapartes
norte-americanos. A mesma Câmara de Comércio do Irã também organizou várias
delegações econômicas que acompanharam o ministro de Relações Exteriores do
Irã, Javad Zarif, à Europa, também em busca de negócios e investimentos.
Muitos observadores das relações entre EUA e Irã tendem a pensar que o
diálogo diplomático recentemente iniciado entre os dois países, incluindo
contatos regulares no quando das negociações nucleares do Irã, teriam começado
com a eleição de Rouhani à presidência. Mas há evidências de que, por trás das
cortinas, contatos entre representantes das elites financeiras dentro e em
torno dos governos dos EUA e do Irã já vinham acontecendo desde bem antes de
Rouhani ser eleito. Por exemplo, matéria publicada pelo Wall Street Journal com
pesquisa relativamente bem feita e aproveitável, revelou que:
“Altos funcionários do Conselho Nacional de Segurança dos EUA começaram a
plantar as sementes dessa troca vários meses antes – em uma série de encontros
e telefonemas secretos e em reuniões com vários monarcas árabes, exilados
iranianos e ex-diplomatas norte-americanos, que levavam mensagens
clandestinamente entre Washington e Teerã, segundo atuais e ex-funcionários dos
governo dos EUA, de países do Oriente Médio e da Europa, informados sobre o
esforço.”[4]
A matéria, mostrando como a “a complexa rede de comunicações ajudou a
fazer avançar a recente aproximação EUA-Irã”, indicava que as reuniões quase
sempre secretas “acontecera na Europa, principalmente na capital da Suécia,
Estocolmo.” Usando canais diplomáticos internacionais, como a Asia Society, a
United Nations Association e o Council on Foreign Relations, “os lados
norte-americano e iraniano reuniram-se em hotéis e salas de conferência,
procurando fórmulas para diluir a crise sobre o programa nuclear iraniano e
evitar uma guerra”, como se lê adiante, na mesma matéria. E Jay Solomon e Carol
E Lee, autores da matéria, também escreveram:
“A Asia Society e o Council on Foreign Relations (Organizações Não
Governamentais) hospedaram mesas redondas para os senhores Rouhani e Zarif, à
margem da Assembleia Geral da ONU ano passado, em setembro”. Os dois homens
usaram aquelas reuniões para explicar os planos de Teerã a empresários
norte-americanos, ex-funcionários do governo, acadêmicos e jornalistas.
O próprio Obama falou pessoalmente com Rouhani no verão passado, pouco
depois da eleição de Rouhani. O presidente dos EUA escreveu ao novo presidente
do Irã, falando do desejo de Washington de pôr fim pacificamente à disputa
nuclear. Rouhani respondeu com sentimentos semelhantes.
Zarif, entrementes, fez contato com altos funcionários da política
exterior dos EUA com os quais já trabalhara quando servira como embaixador do
Irã à ONU nos anos 2000s.
[Suzanne] DiMaggio, da Asia Society diz que esteve entre os que
contataram Zarif pouco depois de ele ser nomeado para o governo de Rouhani.
Veterana facilitadora de contatos informais entre funcionários iranianos e
norte-americanos, ela organizara várias reuniões ao longo da década passada com
o diplomata iraniano, educado nos EUA, sobre meios para pôr fim ao impasse nuclear.
[5]
Isso explica por que o presidente Rouhani (e seu círculo de conselheiros
pró-ocidente) escolheram Zarif como ministro de Relações Exteriores, e por que,
talvez pouco inteligentemente, depositaram todas as suas esperanças de uma
recuperação econômica do Irã na aproximação política e econômica com o
ocidente, vale dizer: no livre comércio e em investimentos ilimitados dos EUA e
de outros grandes países capitalistas.
(Vale registrar também que isso também explica por que a equipe de
negociadores nucleares do presidente Rouhani, foi, muito contra sua vontade,
condenada a uma posição muito fraca na barganha dentro do grupo dos países
P5+1; e também explica por que os negociadores iranianos cederam tanto, em
troca de tão pouco.)
Conclusão e implicações.
Apesar de poderosos beneficiários da guerra e de altos gastos militares –
grandes bancos (como principais emprestadores de dinheiro aos governos) e o
complexo militar-industrial-de-segurança – sempre ansiarem por mais e mais
guerras e por novas tensões internacionais, eles sempre preferem guerras
locais, nacionais, limitadas ou “administráveis”, em vez de grandes guerras em
escala regional ou mundial, cataclismos que podem paralisar completamente os
mercados globais.
Essa ideia ajuda a compreender por que, ao obrar para derrubar os
governos (‘mudar regimes’) do Iraque e da Líbia, por exemplo, os EUA e seus
aliados partiram imediatamente para ação/ocupação militar direta; mas, nos
casos da Ucrânia e do Irã, os mesmos EUA e aliados têm evitado (até agora) a
intervenção militar direta, e têm preferido táticas de “soft-power” e de
‘revoluções’ com nomes de cores.
Como já dissemos, essa preferência se explica, em grande parte, porque,
por um lado, teme-se que guerra e intervenção militar na Ucrânia ou no Irã
podem não ser “controláveis”; e, por outro lado, porque há elites financeiras
ricas, fortes e suficientemente pró-ocidente no Irã e na Ucrânia, nas quais EUA
e aliados acreditam poder confiar para promover ou ‘reformas’ ou, não sendo
elas possíveis, para derrubar o governo (mudar o regime) lá mesmo, de dentro
para fora, de um modo que não cria o risco de gerar outra guerra catastrófica,
que ameaça destruir as fortunas da classe transnacional dos capitalistas, além
de gerar devastação geral.
Potências intervencionistas sempre acreditaram muito na velha tática do
“dividir para governar”. Novidade, pelo menos relativa, nesse contexto, é que,
além dos velhos padrões de aplicação dessa tática (que sempre se apoiaram em
questões que geram divisionismo, como nacionalidade, etnia, raça, religião e
outras questões semelhantes), casos recentes do uso da mesma tática começam a
apoiar-se em divisões de classe.
O cálculo parece ser que, quando/se país como o Irã ou a Ucrânia pode ser
dividido por linhas de classe, e é possível construir alianças entre os
oligarcas dos países atacantes e os oligarcas do país-alvo do ataque (‘mudança
de regime’)… não é preciso embarcar em ataque militar amplo, que pode sempre,
de um ou de outro modo, ferir também o atacante e seus aliados, tanto quanto, quando
não até mais, que o regime a ser derrubado (‘mudado’)
Quando sanções econômicas e alianças e colaboração com os oligarcas
nativos podem ser construídas e usadas para levar a cabo “golpes democráticos”
ou “revoluções com nomes de cores” (quase sempre acompanhadas de
eleições-farsa), por que arriscar ataque militar indiscriminado, com
consequências incertas e potencialmente catastróficas?!
Assim se vê (dentre outras coisas) como as políticas imperiais de
agressão evoluíram ao longo do tempo – desde os estágios inicias de ocupação
militar ‘nua-e-crua’ dos dias coloniais, até as táticas que se veem hoje,
sutis, de vários ramos, com vias invisíveis de intervenção.
Em termos ou no contexto das recentes aventuras da política exterior dos
EUA, pode-se dizer que, enquanto o velho padrão de agressões imperialistas
declaradas e descaradas, foram preferidas nas políticas externas de acintosas
ações militaristas do presidente George W Bush, o novo padrão encaixa-se bem
nas políticas ditas mais ‘sofisticadas’, de intervencionismo invisível, do
presidente Barack Obama.
Enquanto setores da elite que governa os EUA defendem ação acintosamente
militarista e criticam Obama como presidente “fraco”, fato é que a política de
Obama, de metodicamente e sem alarde construir coalizões – tanto com aliados
tradicionais dos EUA quanto com as forças oligárquicas ou ‘comprador’ nos
países-alvo para golpes de estado (‘mudar o regime’) – vem-se comprovando mais
efetiva (em termos de golpes bem-sucedidos) que a política de Bush-Cheney, de ação
militar unilateral.
Não se trata aqui nem de pura teoria nem de especulação: o secretário de
estado John Kerry disse exatamente isso, recentemente, em termos muito claros,
no contexto da política do governo Obama para Ucrânia e Irã. Perguntado, dia
30/5/2014, por Gwen Ifill da rádio PBS (Public Broadcasting System), “Na sua
opinião, o presidente jogou mal, mostrou-se fraco, ao não optar pelas grandes
tacadas de longa distância e ficar só no joguinho pequeno de disputar
pontinhos?”,[6] Kerry respondeu:
“Não acho que o presidente, francamente, tem sido avaliado com justiça
pelos muitos sucessos que obteve (…)”. Quero dizer: se se olha o que temos na
Ucrânia, o presidente liderou um esforço para manter a Europa unida aos EUA;
para pôr sobre a mesa sanções difíceis. A Europa não estava adorando a ideia,
mas nos acompanhou. Isso é liderança! E o presidente conseguiu obter forte
impacto, recentemente, liderando os europeus, quanto às escolhas que impôs ao
presidente Putin.
“Além disso, o presidente atraiu e engajou o Irã”. Estávamos em rota de
colisão total, com eles construindo armas atômicas e o mundo em posição de
oposição a eles… Mas o presidente impôs várias sanções, que obrigaram o Irã a
sentar para negociar. Agora estamos em plenas negociações. Todos concordarão
que o regime de sanções funciona muito bem. A bomba – o programa nuclear foi
congelado e recolhido. E agora já aumentamos a quantidade de tempo que o Irã
deve obedecer, antes de poder enriquecer [urânio]. Isso é sucesso!
“Quer dizer: acho que estamos engajados, mais engajados que em qualquer
outro momento da história dos EUA. Acho que é o que está aí, bem provado e
comprovado.”
E essa é a essência do imperialismo metido a golpista-espertalhão
característico do governo Obama, versus o imperialismo de delinquente juvenil
do governo Bush (filho).
Sobre o autor:
Ismael Hossein-zadeh é curdo, nascido no Irã;
vive nos EUA desde 1979. É Professor Emérito de Economia (Drake University). É
autor de Beyond Mainstream Explanations of the Financial Crisis [Além das
Explicações Dominantes da Crise Financeira] (Routledge 2014), The Political
Economy of US Militarism [A Economia Política do Militarismo dos EUA] (Palgrave
– Macmillan 2007) e Soviet Non-capitalist Development: The Case of Nasser’s
Egypt [O desenvolvimento não capitalista: o caso do Egito de Nasser] (Praeger
Publishers 1989). É autor de um dos ensaios reunidos em Hopeless: Barack Obama
and the Politics of Illusion [Sem esperanças: Barack Obama e a Política da
Ilusão] (AK Press 2012) [dehttp://archive.today/97eTS%5D.
[1] Gilbert Mercier, Ucrânia’s Crisis: Economic Sanctions Could
Trigger a Global Depression.
[2] Ibid.
[3] Ibid.
[4] Wall Street Journal, US-Irã Thaw Grew From Years Of
Behind-the-Scenes Talks
[5] Ibid.
[6] A pergunta foi feita em várias metáforas do beisebol (“Does
the president get a bad rap, in your opinion, for being weak or not taking the
long homer runs instead of the base hits?”). A tradução acima é tradução
tentativa. Todas as correções e comentários são bem-vindos [NTs].
Autor: Ismael Hossein-Zadeh,* “Speaking Freely”,
Fonte: Asia Times Online
10 de julho de 2014