Choro dos craques vem do abismo
entre os craques e o país, aberto pelo anti-Copa e pelo VTNC. É preciso
fechá-lo
A conversa do dia é o choro dos meninos da seleção.
Nossa seleção chora de medo, um pavor profundo, um abismo, um buraco
escuro na terra. Felipão, o verdadeiro, perdeu a energia e ficou desorientado.
O capitão Tiago Silva sentiu medo de cobrar pênalti. Não conseguia nem olhar o
chute dos outros. Chorou tanto que ninguém entendeu.
Julio Cesar também chorou e todo mundo entendeu.
Neymar seria o primeiro a bater o pênalti. Preferiu ficar por
último. Vencemos, apesar de tudo. Mas não sabemos até onde vamos caminhar. Que
importância tem isso?
Nada, quem sabe.
Hoje, tudo.
Eu tinha 5 anos quando o Brasil ganhou a primeira Copa. Estava no
terraço – na época não se dizia varanda – do apartamento onde morava, ali na
rua Cincinato Braga, no bairro paulistano do Paraíso. Lembro do barulho do alto
falante de um caminhão que passava pela rua, no volume máximo, antes de
desaparecer no paralalepípedo:
--A Copa do mundo é nossa
Com o brasileiro não há quem possa...
Eeeeeeta esquadrão de ouro
É bom no samba, é bom, no couro
Nem meus pais nem meus irmãos conheciam a música da seleção. Quem
cantava era Lola, a babá, uma quase adolescente levada para
trabalhar em nossa casa por Alaíde, a irmã mais velha, mais durona. Lola, que
era muito mais bonita, sambava e cantarolava no terraço – quando os patrões
estavam longe – com sua voz suave, o sorriso sempre nos lábios, os cabelos
grandes e crespos, de um jeito que só ficaria na moda dez anos depois.
Doente, ouvi a final contra a Checoslováquia no quarto de casal dos meus
pais. Lembro da voz de Fiori Gigliotti narrando cada gol pelo rádio, um Emerson
num estojo de couro marron. O locutor mobilizava o país inteiro numa
vibração emocionada, em que os objetos inanimados daquele quarto – o criado
mudo, o abajur, as roupas dentro do armário, os cabides, os ternos do meu pai,
o sapato de couro e sola de borracha do meu pai, aquelas gravatas bonitas como
nunca vi igual, as bolsas que minha mãe guardava em caixas de papelão, e até o
revolver 32 que meu pai manteve guardou até descobrir que os filhos estavam
brincando com ele – pareciam fazer parte da torcida.
Quando a partida foi chegando ao final, eu estava tão
emocionado que tive um delírio, coisa de Jorge Luís Borges. Imaginei que do
outro lado do mundo, numa pequena casa na Checoslováquia, um menino ouvia o
mesmo jogo ao lado do pai. Mas, na partida transmitida de rádio para aquele
país, os checos é que venciam os brasileiros, também por 3 a 1. Os gols
haviam sido feitos na mesma sequencia, no mesmo minuto – e lá, como na minha
casa, todos estavam em festa, participando da mesma alegria única, inocente,
que só o futebol permite.
Esta era minha final imaginária. Eu pulava e abraçava meu pai em São
Paulo, e, no mesmo minuto, na Checoslováquia, em movimentos sincronizados e
simétricos, aquele menino e seu pai também se abraçavam. Eu dava socos no ar,
gritava o nome dos nossos jogadores, o menino gritava o nome dos jogadores da
seleção deles, com aqueles nomes esquisitos. Aos poucos, eu via que as ruas de
São Paulo e da Checoslováquia estavam ficando cheias, eram duas multidões
comemorando a Copa do Mundo, sem perceber que, no país do time adversário,
também havia uma grande festa, que as pessoas que falavam outra língua e usavam
roupas diferentes – além de tudo, os checos eram comunistas -- também eram
campeãs mundiais, porque tudo não havia passado de uma magia, de um sonho,
embalado pelos locutores de rádio, onde ninguém era derrotado, e só haviam
vencedores e todos podiam ficar alegres.
Antes que alguém pergunte, cinco décadas depois, eu respondo.
Não. Não havia mensagem nessa fantasia. Nem utopia. Era pura
maravilha, dos bons contos de fada, que são belos porque não querem nos levar a
lugar algum, apenas a mundos que não existem, onde vigoram ideias que nunca
pensamos, sonhos que nunca tivemos.
Um pouco como acontece com o futebol, vamos reconhecer.
Em 1970, repórter esportivo, cheguei a ouvir num vestiário do time
que ia para o México, de onde voltou com o tri, um comentário pavoroso: “Por
que o Médici não manda dar porrada nos jornalistas que só falam mal da
seleção?”
A natureza humana é crítica, os motivos para queixas existem.
Sempre houve torcida mau humorada e até contra. Até quando isso era
arriscado porque vivíamos numa ditadura. Esse direito é inegociável e
deve ser respeitado.
Meio século depois, estamos em julho de 2014.
Mas, pela primeira vez na história do conto de fadas do futebol, é
proibido torcer a favor. É suspeito. Quem sabe, corrupto. Em alguns ambientes
até provoca risadinhas de malícia.
Agora há uma raiva grande contra as alegrias do povo. Há o cinismo.
Isso arranca lágrimas dos meninos. No time de 2014, não há nenhum
adulto. Ninguém com autoridade para gritar, levantar a cabeça e reagir.
É um problema real, do time, mas não é só.
No começo, era chique pensar que o concreto dos estádios não era
concreto. Também valia questionar estatísticas sem estatísticas. Foi daí que
veio o VTNC.
Depois, vieram os estrangeiros, que nunca tiveram
dificuldade para se impor sobre a multidão de vira-latas que perambulam pelo
país, buscando oportunidades para o bolso em várias formas de lixo humano.
Eles projetaram
detalhadamente um apocalipse final, que deixasse a todos com culpa, a todos
irmanados naquele que é o sentimento mais profundo e necessário a sua visão de
mundo – a vergonha de ser brasileiro. É este sentimento que leva a oferecer
tudo, até nossas moças, a estrangeiros, sem o menor respeito, sem
perceber que mesmo as mais humildes podem nos dar lições preciosas,
ingênuas só na aparência, como fez a babá Lola naquele terraço de 1958.
Não basta ganhar. É
preciso merecer. Holandês pode cavar pênalti. Brasileiro não pode.
Vamos pressionar os
juízes para que, na dúvida, fiquem contra o Brasil.
É por isso que os meninos choram.
Craques têm o temperamento delicado, são verdadeiros animais de raça, fáceis de
assustar, a tal ponto que alguns cavalos de raça correm com viseira. Têm a
sensibilidade absoluta, como grandes artistas. Sentem-se abandonados pela
falta de um sonho que ninguém sonhou, pela ausência de palavras que ninguém
disse. O nome disso é angustia.
E é ela que ameaça nossos craques.
O país já venceu o primeiro combate, de fazer a Copa. Não foram só
os aeroportos, os estádios, as melhorias que, mesmo entregues pela metade, ou
três quartos, ou 100%, ou 0%.
Quem garantiu uma grande Copa foi o povo brasileiro, com sua
hospitalidade, seu humor, seu amor pelo futebol. Imagine se fosse um campeonato
de críquete.
A auto crítica universal de tantos medalhões confirma que a partir
de 2013 se produziu uma Escola Base. Na versão original, ocorreu uma denúncia a
partir de um engano, do serviço mal feito, do exibicionismo, do
sensacionalismo.
Desta vez, criou-se um ambiente negativo contra um país inteiro,
que não se baseava num erro nem em vários erros – mas no oportunismo político.
No quanto pior, melhor.
Até hoje o anti Copa não desistiu de ver a derrota de brasileiros em sua
própria casa. Espera colher frutos em outubro. Quer o povo de cabeça
baixa.
Isso abriu um abismo entre a seleção e o país. Por essa razão os craques
choram, não se equilibram, sentem medo com facilidade.
Essa distância precisa ser vencida. Quem diz é o
craque Tostão:
“O que salva a seleção é o envolvimento emocional dos jogadores,
empurrados pela torcida e pela pressão de jogar em casa.”
Paulo
Moreira Leite
Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época. Também escreveu "A Mulher que Era o General da Casa".
Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época. Também escreveu "A Mulher que Era o General da Casa".
http://www.istoe.com.br/colunas-e-blogs/colunista/48_PAULO+MOREIRA+LEITE