domingo, 24 de agosto de 2014

A fase insana do totalitarismo neoliberal


Não precisa ser um especialista para ver que nos últimos meses, e de maneira cada vez mais acelerada, o imperialismo estadunidense e seus aliados da OTAN estão tratando de criar todas as condições para transformar as relações internacionais em um nova arena de conflitos com o objetivo de manter o já questionado sistema internacional unipolar e a hegemonia neoliberal.

Há apenas três anos, quando alvorecia a multipolaridade com os esforços de criação da UNASUR e da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), com Rússia tentando consolidar uma região euro-asiática e os BRICS explorando uma alternativa à tirania neoliberal, o imperialismo se lançou a criar novos focos de tensão, intervindo na Líbia - que até então era um país chave de uma necessária integração africana -, na Síria e em países da África, e relançou com força a subversão em vários países latino-americanos.

Na segunda metade de 2013, quando intensificava a agressão intervencionista na Síria, o último grande país do Oriente Médio com um sistema no qual conviviam diversos povos, culturas e religiões, no marco da reunião do G20 em San Petersburgo e graças à carta do papa Francisco, Rússia introduziu o tema da Síria, ameaçada com bombardeios aéreos por parte dos Estados Unidos (EUA) e países da União Europeia (UE) pelo suposto e inventado uso de armas químicas por parte do governo sírio, e forçou uma difícil negociação para frear a tempo a ameaça de bombardeios para fazer emergir o arsenal químico da Síria e destruí-lo.

A firme posição russa no caso da Síria, que contou com o apoio da China e da maioria dos países do mundo, mostrou pela primeira vez que existiam forças capazes no cenário internacional para colocar limites ou término ao sistema unipolar criado pelos EUA desde a desestruturação da União Soviética, e começar a restauração de uma ordem multipolar, algo que para o imperialismo significaria o começo do fim de seu projeto de hegemonia neoliberal total.



Não em vão, desde 2013, e em particular durante a primeira metade de 2014, quando a CELAC se formou, e em perspectiva da reunião de cúpula no Brasil, o BRICS esboça suas intenções de criar instrumentos financeiros para se liberar do dólar, que diretamente ou através de seus lacaios locais, EUA e seus aliados, intensificaram suas tentativas subversivas na Venezuela e incrementaram a desestabilização política, financeira e econômica em outros países latino-americanos.

Nesta perspectiva de desestabilização, especificamente do governo da presidenta Cristina Fernández, joga um importante papel a decisão e todo o atuar do juiz Thomas Griesa de Nova York para favorecer os "fundos abutres": essa decisão constitui uma nova arma do sistema judicial estadunidense para submeter os países devedores, que são maioria no mundo, a uma lei estadunidense que sempre é interpretada de maneira a satisfazer ao grande capital.

E desde janeiro passado o imperialismo neoliberal pôs em ação as forças que há anos vinha financiando, entre elas os ultranacionalistas e neonazis, para criar um perigoso foco de tensão permanente na Ucrânia, na "porta de entrada" da Rússia.

A rejeição do presidente constitucional Víctor Yakunovich a uma integração com a UE, que significava a desindustrialização do país, acelerou a operação para derrubá-lo e substituí-lo por um que aceitaria, como tem sido o caso e muito rapidamente, por imposição de Washington, do FMI e da OTAN, destruindo a canhões e bombardeios a oposição interna no Leste do país, com a clara tentativa genocida de eliminar a população russo-falante, como disse na televisão um "jornalista" ucraniano, e assim recuperar essas terras. Não disse, mas foi assumido, que uma vez "limpos" de "gente inútil" esses territórios serviriam para instalar armamentos ofensivos da OTAN e criar uma constante ameaça direta à segurança da Rússia.

Para lançar a recente cruzada contra a Rússia, como afirmou o ministro de Relações Exteriores de Moscou, Serguei Lavrov, "se não tivesse sido a Ucrânia, lhes asseguro, qualquer outro aspecto da política interior ou exterior da Rússia lhes serviria de razão". Lavrov lamentou que as boas intenções expressadas pelos "sócios ocidentais na Europa" não resistam à inércia da Guerra Fria que busca "levar a todos os europeus sob o teto da OTAN e fazer com que se dirijam à Rússia com um tom severo". Esta miopia política, acrescentou, está baseada na intenção de impor sua vontade a todo custo, de adotar sanções contra quem discorde e impor represálias contra os que estão pela "independência e não aceitam obedecer a ordem mundial unipolar".

Esta ordem unipolar permite aos EUA e seus aliados a impunidade criminosa que se manifestou pela enésima vez na agressão, com bombardeios e forças terrestres que mataram cerca de duas mil pessoas na Faixa de Gaza. Israel atua impunemente graças ao apoio político, diplomático e às armas e dados de inteligência estadunidenses, como confirmam os documentos revelados pelo informante Edward Snowden e publicados pelo jornalista Gleen Greenwald.

A lei estadunidense não deve prevalecer.

Estados Unidos, cuja existência jamais foi ameaçada por guerra alguma fora da guerra de Secessão, não possui mais que uma definição ideológica de seus inimigos: aqueles que não amam o modo de vida estadunidense, onde quer que se encontrem, afirmava em 2005 o historiador Eric Hobsbawm durante uma conferência na Universidade de Harvard dedicada a destacar as diferenças entre a hegemonia estadunidense e a outrora hegemonia britânica.

Este historiador argumentou que Grã-Bretanha, como sua hegemonia não dependia da potência imperial mas de seu comércio, se adaptou mais facilmente às derrotas políticas, como já havia feito com a maioria delas, a perda das colônias na América. Depois recordou que durante a Guerra Fria o crescimento das empresas estadunidenses no mundo foi feito sob o patrocínio do projeto político dos EUA, com o qual se identificariam muitos dos grandes patrões bem como a maioria dos estadunidenses. A mudança, dada sua hegemonia mundial, a convicção de Washington de que a lei estadunidense deve prevalecer nas relações dos estadunidenses com o mundo, adquiriu uma força política considerável.

E Hobsbawm concluiu a conferência com uma pergunta cuja resposta é agora evidente: Manterá os EUA esta lição ou cederá à tentação de manter uma posição que se desgasta apoiando-se na força político-militar, engendrando assim não a ordem mundial mas a desordem, não a paz mundial mas a guerra, não o avanço da civilização mas a barbárie?

Agora o passeio pela realidade e o despertar da "inteligência social".

Por sua natureza, que implica "desencaixar" a economia capitalista da sociedade e pôr o Estado a serviço exclusivo dos grandes interesses econômicos, financeiros e comerciais, o imperialismo neoliberal não tem outra alternativa que destruir toda forma de democracia e de soberania popular e nacional. Sua única opção é o totalitarismo. O intelectual húngaro Karl Polanyi, historiador da economia, considerava a ideia dos "mercados autorregulados" a nível mundial - o neoliberalismo - como uma perigosa utopia, e já em 1945 advertia que os EUA tinha o embasamento histórico e ideológico para tentar levá-lo a cabo.

A utópica missão do neoliberalismo é instaurar um regime universal baseado nas leis estadunidenses, como nos recorda Hobsbawm, e para isso deve conseguir que os Estados soberanos cedam sua soberania, aceitem aplicar a lei estadunidense (Não é o que Griesa exige?) e derrubem as barreiras nacionais, para assim se converter em Estados garantidores de um sistema a serviço exclusivo dos interesses econômicos representados nos oligopólios financeiros, industriais, comerciais, mineiros, agroindustriais, entre outros mais, cujas casas matrizes estão nos EUA, UE, Japão, Canadá e outros países da órbita imperial.

Tal sistema não admite alternativas socioeconômicas, sejam nacionais ou regionais, e estejam ou não baseadas no capitalismo, que impliquem a intervenção ativa dos Estados, graus de planejamento socioeconômico e que os povos através dos organismos políticos e sociais, atuando em democracia, tomem decisões soberanas para defender legítimos interesses populares e nacionais.

Precisamente porque não pode tolerar competição alguma proveniente de outras alternativas socioeconômicas, já que não tem absolutamente nada de positivo a oferecer aos povos é que o neoliberalismo pôde ser desenvolvido em toda sua dimensão a partir do desmantelamento da União Soviética, quando também se destroçou a ordem mundial multilateral, e foi aplicado com particular sanha na Rússia e demais ex-países socialistas.

Uma das razões pelas quais o imperialismo neoliberal se lançou no que parece uma desenfreada corrida para impor seu ditado a nível mundial, é que em duas regiões importantíssimas, América Latina e Eurásia, se lançaram movimentos de integração econômica, comercial, financeira e até monetária. E que estas iniciativas - que incluem o BRICS enquanto mecanismo de comunicação entre várias regiões -, têm recebido novos impulsos políticos e estão dando passos para a criação de mecanismos para funcionar sem uma subordinação ao sistema neoliberal. Para o projeto imperial estadunidense, que busca submeter todos os povos, estas iniciativas regionais devem ser destruídas.

O ministro da Corte Suprema argentina Raúl Zaffaroni, ao responder à pergunta da Página/12 sobre que reflexão merece, como jurista e não como ministro da Corte, a situação que propõem os chamados "fundos abutres", afirmou que: "vejo isto com um pouco de medo. Para dizer a verdade, com muito medo. Como diria Galeano, tudo parece de pernas para o ar. Se trouxéssemos alguém que tivesse dormido por algumas décadas, poderia não entender nada. Tenho medo pelo mundo, essa é a verdade. O poder político, o dos Estados, está ultrapassado pelo poder econômico de oligarquias, de pequenos grupos de pessoas que manipulam ao seu bel prazer os meios de comunicação e o poder econômico (...) Digo-lhes mais claramente: sempre tem ocorrido e é inevitável que tenha vínculos e acordos entre os poderes político e econômico, mas agora o primeiro tende a desaparecer ou a ser manipulado completamente pelo segundo transnacionalizado".

Mais adiante, ao ser perguntado por que nos encontramos hoje em tal situação, o ministro Zaffaroni responde que "essa é a segunda parte da questão e em relação à qual temos que pensar no futuro. Nossos próprios governos cederam a soberania nacional, nos sujeitando a um tribunal provincial estrangeiro (no caso do juiz de Nova York, Thomas Griesa) e a uma Corte Suprema que declara não lhe interessar nada, em favor de uns especuladores com capacidade de pagar advogados e fazer lobbies (...) Creio que a primeira medida que devemos tomar com vistas ao futuro é reformar a lei e declarar imprescritível a administração fraudulenta em detrimento dos interesses nacionais em toda negociação internacional que comprometa substancialmente a economia nacional. Sei que me pendurarão qualquer cartaz para desqualificar esta opinião, mas o mundo penal internacional vem pensando estas coisas já há algum tempo".

Em 3 de agosto mesmo, na Página/12, e quiçá como prova de que se está formando essa "inteligência social" de que falava Karl Marx, o filósofo José Pablo Feinmann inicia seu artigo enfatizando que "o capitalismo das últimas décadas tem se desenvolvido no modo de vertigem", descrição com a qual muitos analistas e jornalistas estamos de acordo, e depois acrescenta que "o Império é o Império e não fala dialetos, não respeita a autonomia dos povos, arrasa com as identidades nacionais, os Estados nacionais ou o orgulho europeu e as vidas iraquianas ou as vidas dos que a ele se oponham. Não há política multipolar. O capitalismo é um sistema totalizador. Foi desde 1492, quando nasce, e o é hoje, mais que nunca, por meio da grande revolução deste tempo, que não é a do proletariado marxista, mas, outra vez, a do burguês conquistador: a informacional, da comunicação".

Todo o antecedente me parece assinalar que o combate contra o imperialismo neoliberal é a tarefa principal, e é uma tarefa urgente porque em seu intento totalizador tem chegado a uma fase insana e mortal para nossas sociedades e planeta. E justamente quando terminava este artigo li a esclarecedora análise do filósofo Fernando Buen Abad Domínguez, "Multipolaridade sim, mas anticapitalista", da qual reproduzo uma pequena parte: "Mas o perigo da confusão (até não ter claro de que "multipolaridade" falamos ou fala cada um) não anula a necessidade de quebrar o domínio do império ianque. Também não implica cancelar - ou satanizar - qualquer iniciativa, seja ela parcial, que permita dar passos adiante para a soberania concreta direcionada pelos povos. Tem somente que nos assegurar de que tais passos se dirijam para onde os povos mandam e não apareçam os piratas reformistas que sempre torcem caminhos e veredas para seus reinos burocráticos infestados com gerentes servis ao capitalismo. A obra reside em não cair nas armadilhas semânticas das burguesias. A obra está em não se iludir com falácias nem se fazer escravo delas. Esse erro já nos custou muito.”
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Por: Bianka de Jesus
Sábado, 23 de agosto de 2014