sábado, 16 de agosto de 2014

O neo-eurasianismo e o redespertar russo


Por Dídimo Matos

O Eurasianismo
O termo eurasianismo apresenta diversas acepções. Surge pela primeira vez no século XIX, cunhado pelo movimento eslavófilo que defendia a rica diversidade da Eurásia2, numa espécie de outra via que não europeia ou asiática, e que juntasse a cultura e tradição da Ortodoxia e da Rússia. Esse foi, pois, seu primeiro uso.

Tais ideias foram retomadas logo após a I Guerra Mundial, por figuras como o filólogo e etnólogo Nikolai S. Trubetskoy, pelo historiador Peter Savitsky, pelo teólogo ortodoxo G. V. Florovsky e, mais a frente, pelo geógrafo, historiador e filósofo Lev Gumilev, que defendia a luta cultural e política entre, de um lado, o Ocidente e, de outro, o subcontinente da Eurásia3, guiado pela Rússia. Gumilev foi o criador de duas teorias: i) a da etnogénese, pela qual as nações são originárias da regularidade do desenvolvimento das sociedades; e ii) a da paixão, sobre a capacidade humana para se sacrificar em prol de objetivos ideológicos.

Estes teóricos do eurasianismo, estudaram de modo aprofundado os impérios de Gengis Khan, Mongol e Turco-Otomano, e se encontraram, mais de uma vez, com o geopolítico alemão Karl Haushofer. Baseada ainda na produção do britânico Halford Mackinder, essa primeira versão do eurasianismo procurou estabelecer a identidade russa, distinta da ocidental, e propugnava uma fusão das populações muçulmanas e ortodoxas. Rejeitaram a proposta de integração russa à Europa, de Pedro, o Grande. Defendiam que a Rússia era, claramente, não europeia, que era um continente em si, separado objetivamente, tanto da Europa quanto da Ásia, pela geografia, e que teve sua cultura moldada por influências da Ásia.

Com a revolução russa, Trubetskoy tentou adaptar seu pensamento à nova realidade, acompanhado por outros eurasianistas. Ele defendeu que o separatismo era inaceitável e insistiu na indivisibilidade da grande região que correspondia a Eurásia, ou seja, que a União Soviética (URSS) deveria manter o império russo em toda a sua extensão, em uma ideia de globalidade distinta da europeia e da asiática: “o substrato nacional do antigo Império Russo e atual URSS, só pode ser a totalidade dos povos que habitam este Estado, tido como uma nação multiétnica peculiar e que, como tal, possuía o seu próprio nacionalismo”. (SANTOS, 2004).

Para Savitsky, a Eurásia havia sido formada pela natureza, que havia condicionado e determinado os movimentos históricos e a interpenetração dos povos, cujo resultado fora a criação de um único estado, que derivando da natureza, possuía a qualidade transcendente dessa mesma natureza (SANTOS, 2004).

Além desses primeiros eurasianistas, temos o atual eurasianismo, tema central dessa comunicação e que passamos a discutir abaixo.

O Eurasianismo atual, ou neo-eurasianismo, herda dos anteriores muitas de suas características, mas é distinto de ambos em vários sentidos. Basicamente, foi idealizado pelo russo Alexander Dugin.

Alexander Dugin pode ser caracterizado como geopolítico, filósofo, cientista político e sociólogo. Ele é também considerado um importante jornalista e analista político. É preciso enfatizar sua grande influência no pensamento geopolítico russo pós-soviético. Seu pensamento que a geopolítica é não somente uma ciência, mas possui muito de ideologia tem tido muita influência na política russa, e seus livros são utilizados pelas escolas geopolíticas militares e civis da Rússia.

Dugin ocupou cargos de assessoramento na Duma e teve muita influência junto aos assessores ocupados da política externa dos governos Vladimir Putin e D. Medvedev, sendo considerado o idealizador oficioso dessa. Essa influência é vista nos pronunciamentos de ambos os líderes russos, quando falam abertamente no eurasianismo como guia das relações internacionais da Rússia.

Atualmente, Dugin ocupa o cargo de chefe do Departamento de Sociologia das Relações Internacionais, da Universidade Estatal de Moscou, e a presidência do Centro de Estudos Conservadores, dessa mesma universidade.

O Neo-eurasianismo de Dugin
Visto de maneira integral, o neo-eurasianismo não é apenas uma teoria geopolítica, mas uma filosofia geral que possui as seguintes características:

a) Histórica e geograficamente é o mundo inteiro excetuando o setor ocidental;

b) Estratégica e militarmente é a união de todos os países que não aprovam as políticas expansionistas dos EUA e da OTAN;

c) Culturalmente representa a preservação das tradições culturais, nacionais, étnicas e religiosas orgânicas;

d) Socialmente representa formas diferentes de vida econômica e a “sociedade socialmente justa”.4

O neo-eurasianismo tem por princípios:
 1) o Diferencialismo: pluralismo de sistema de valores contra a dominação obrigatória de uma ideologia;
2) a Tradição: contra a supressão de culturas, dogmas e descobertas das sociedades tradicionais;
3) os direitos das nações contra os “bilhões de ouro” e a hegemonia neocolonial do “norte rico”;
4) as etnias como valores e sujeitos da história contra a despersonalização das nações, aprisionadas em construções sociais artificiais;
5) a justiça social e solidariedade humana contra a exploração e humilhação do homem pelo homem.

Enquanto teoria geopolítica, o neo-eurasianismo faz parte da chamada escola expansionista (TEIXEIRA, 2009), que passaremos a descrever. A Figura 1 mostra simbolicamente as pretensões expansionistas do coração da Rússia para o mundo, em todas as direções.

O eurasianismo pretende em primeiro lugar, ser uma alternativa à globalização. Dugin entende o modelo de globalização atual como a representação do expansionismo dos EUA e seus aliados da OTAN, ou seja, como a representação de um mundo unipolar que tem nos estadunidenses seu modelo econômico e filosófico e que quer impor ao mundo seus valores liberais, individualistas e democráticos.


Do coração da Rússia para o mundo

Como alternativa ao modelo de globalização atual, Dugin fornece um novo modelo de globalização, baseado na conjugação de ideias de H. Mackinder e K. Haushofer. Retira de Mackinder a ideia de luta entre terra e mar, e de que quem domina o coração da Eurásia domina o mundo. Defende, como o geopolítico estadunidense Bzerzinki, que a Rússia é o coração da Eurásia e representa o centro das forças terrestres (eurasianistas) em luta contra as forças marítimas (atlantistas) guiadas pelos EUA.

De Haushofer, se inspira na ideia de pan-regiões e as redesenha para defender, contra o mundo unipolar da globalização atual, um novo modelo de globalização multipolar, com quatro Zonas Meridionais: a zona Anglo-Americana, a zona Euro-Africana, a zona Rússia-Ásia Central e a zona do Pacífico. Nesse esquema, a zona Anglo-Americana (Atlantista) seria contrabalançada pelas outras três zonas.

Cada zona meridional no projeto eurasiano consiste de vários “grandes espaços” ou “impérios democráticos” . Cada um deles possui liberdade relativa e independência, mas está estrategicamente integrado em uma zona meridiana correspondente. Os grandes espaços correspondem às fronteiras das civilizações e incluem vários Estados-nações ou união de Estados.

A Rússia, para dominar o imenso espaço da zona meridional Rússia-Ásia Central, precisa, no âmbito interno, originar um Estado com diversas etnias e religiões,bem como, no plano externo, se organizar por meio de alianças, com a elaboração de projetos especiais no âmbito pan-europeu, com a Alemanha, no pan-árabe, com o Irã, e no pan-asiático, com o Japão (MARCU, 2007).

Devido à necessidade de integração continental, a Rússia deveria estabelecer uma nova geopolítica no sul da Eurásia, de tal maneira que a Índia, a Indochina e os Estados islâmicos passariam a ser um “teatro de manobras continentais de posição” (MARCU, 2007 segundo TEIXEIRA, 2009), com o fim de convergir os objetivos estratégicos dessa região ao centro eurasiático representado por Moscou (TEIXEIRA, 2004). Dugin desenvolve tal ideia a partir do conceito de vetores abertos que se originam em Moscou, passam pelos vizinhos próximos, e que chegam aos Estados europeus, asiáticos e islâmicos (DUGIN, 2004).

Assim, as características estratégicas do eurasianismo estão relacionadas a diferentes ações que devem ser tomadas respeitando aspectos militares, econômicos, políticos, étnicos e religiosos daquela região.

Além dos eixos estratégicos com os vizinhos próximos, vetores como Moscou-Teerã, Moscou-Nova Deli e Moscou-Ancara são considerados básicos para essa integração, e há ainda planos para o Afeganistão e Paquistão, a região do Cáucaso e a Ásia Central, assim como a valorização das relações com a França e a Alemanha através dos vetores Moscou-Paris e Moscou-Berlim, respectivamente.


Eixo Moscou-Teerã
Na integração russo-asiática a questão central deste processo é a implementação de um eixo Moscou-Teerã. O processo interno depende do sucesso do estabelecimento de uma parceria de médio e longo prazo com o Irã. A união dos potenciais econômico, militar e político de Rússia e Irã aumentará o processo de integração da zona, tornando-a irreversível e autônoma.

O eixo Moscou-Teerã será a base para uma integração regional posterior. Tanto Moscou quanto o Irã são potências autosuficientes, na visão de Dugin, aptas a criarem seu próprio modelo organizacional para a região.

Eixo Moscou-Nova Deli
A cooperação russo-indiana forma a base do segundo mais importante eixo meridiano de integração no continente eurasiano e em seus sistemas de segurança coletiva. Moscou terá um papel importante ao diminuir as tensões entre Nova Deli e Islamabad (Kashmir). O plano eurasiano para a Índia, patrocinado por Moscou, é a criação de uma federação que refletirá a diversidade da sociedade indiana com seus numerosos grupos étnicos e religiosos, incluindo hindus, sikhs e muçulmanos.


Eixo Moscou-Ankara
O principal parceiro regional no processo de integração da Ásia Central é a Turquia. A ideia eurasiana está se tornando popular por lá na atualmente devido ao entrelaçamento das tendências ocidentais e orientais. A Turquia reconhece suas diferenças civilizacionais com a União Europeia, seus interesses e objetivos regionais distintos, a ameaça da globalização e a consequente perda de soberania.
É imperativo para a Turquia estabelecer uma parceria estratégica com a Federação Russa e o Irã. A Turquia só será capaz de manter suas tradições dentro de um modelo multipolar de mundo. E parece que certas facções da sociedade turca entendem esta situação, desde elites políticas e socialistas até religiosas e militares. Assim, o eixo Moscou-Ankara pode se tornar uma realidade geopolítica apesar do longo período de hostilidade mútua.


O plano eurasiano para Afeganistão e Paquistão
O vetor de integração com o Irã tem importância vital para que a Rússia ganhe acesso a portos de águas quentes e também para a reorganização político-religiosa da Ásia Central (países asiáticos da Comunidade dos Estados Independentes – CEI, Afeganistão e Paquistão). Uma cooperação próxima com o Irã implica na transformação da área afegã-paquistanesa em uma confederação islâmica livre, leal tanto a Moscou quanto ao Irã.A razão desta necessidade é que os Estados independentes de Afeganistão e Paquistão continuarão a ser fonte de desestabilização, ameaçando os países vizinhos. A luta geopolítica eurasiana providenciará a capacidade para implementar uma nova federação central-asiática e transformar esta região complicada em uma área de cooperação e prosperidade.


O Cáucaso
O Cáucaso é a região mais problemática para a integração eurasiana dado seu mosaico de culturas e etnias, que facilmente eleva as tensões entre as nações. Essa diversidade cultural é uma das principais armas exploradas por aqueles países que buscam parar o processo de integração do continente eurasiano.

A região do Cáucaso é habitada por nações que pertencem a diferentes Estados e áreas civilizacionais. A região deve ser um polígono de testes de diferentes métodos de cooperação entre os povos, pois o que for bem sucedido ali poderá sê-lo ao longo do continente eurasiano. A solução eurasiana para este processo jaz não na criação de Estados étnicos ou estritamente associados a uma só nação, mas no desenvolvimento de uma federação flexível fundamentada nas diferenças étnicas e culturais no interior de um contexto estratégico comum da zona meridiana.

O resultado deste plano é um sistema de um semieixo entre Moscou e os centros do Cáucaso (Moscou-Baku, Moscou-Erevan, Moscou-Tbilisi, Moscou-Mahachkala, Moscou-Grozni etc.) e entre os centros caucasianos e os aliados da Rússia no interior do projeto eurasiano (Baku-Ankara, Erevan-Teerã etc.).


O plano eurasiano para a Ásia Central
A Ásia Central deve se mover rumo à integração com a Federação Russa, em um bloco unido estratégica e economicamente no interior da estrutura de união eurasiana, a sucessora da CEI. A principal função dessa área específica é a reaproximação da Rússia com os países do Islã continental (Irã, Paquistão, Afeganistão).
Desde o início, o setor da Ásia Central deve possuir vários vetores de integração. Um plano tornará a Federação Russa o principal parceiro (similaridades de cultura, interesses econômicos e energéticos convergentes, e uma estratégia comum de sistema de segurança). O plano alternativo é colocar o foco em semelhanças étnicas e religiosas: mundos turco, iraniano e islâmico.



Considerações finais
Como disse Dugin, “Este é o Eurasianismo, a política da heartland” (GLOVER citado em TEIXEIRA, 2009). O pensamento eurasianista é o que mais se alinha à política russa atual, e isso pode ser acompanhado diariamente nos jornais russos onde se verá Putin e Medvedev não apenas pondo em prática a teoria, mas citando-a explicitamente.5
O eurasianismo põe-se como uma alternativa a filosofia ocidental e a sua economia, bem como mistura geopolítica e espiritualidade tradicional, esses itens, entretanto, fogem ao escopo do presente trabalho, mas os interessados poderão encontrar referências aos trabalhos de René Guénon e Julius Evola, ambos vinculados a produção intelectual de Dugin.
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Dídimo Matos
Possui graduação em Filosofia pelo Instituto de Ensino Superior do Centro Oeste (2004), Mestrado em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba.
Atualmente dá aulas nas redes pública e privada da Paraíba. Tem experiência na área de Filosofia, com ênfase em filosofia analítica, círculo de Viena, lógicas clássicas e não clássicas, paraconsistência, Newton da Costa.
Tem interesse em geopolítica, educação, filosofia política, ética e filosofia da linguagem. Atualmente é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana na Universidade de São Paulo, USP, no qual desenvolve pesquisa em geopolítica focando o Eurasianismo de Alexander Dugin e o Meridionalismo de André Martin.
Referências
Dugin, Alexander. A grande Guerra dos Continentes. Lisboa: Antagonista, 2006. 
A Ideia Eurasiana.
Visão Eurasianista.
MARCU, Silvia. La geopolítica de la Rusia postsoviética: desintegración, renacimiento de una potencia y nuevas corrientes de pensamiento geopolítico. Scripta Nova: revista electrónica de geografía y ciencias sociales. Universidad de Barcelona, v. XI, n. 253, dic. 2007.
Disponível em: 

SANTOS, Eduardo Silvestre dos. O eurasianismo: a “nova” geopolítica russa. Jornal Defesa e Relações Internacionais. Lisboa, nov. 2004. 


Teixeira, José A. B. J. O pensamento geopolítico da Rússia no início do século XXI e a geopolítica clássica. Revista da Escola Superior de Guerra Naval. Rio de Janeiro, n. 13, junho de 2009.
1 Mestre em filosofia na UFPB, professor de filosofia da SECPB.
2 Termo também com vários significados como veremos adiante.
3 Eurásia seria um subcontinente plantado entre a Europa e a Ásia. Outro emprego seria como parte integrante do Império Russo.
4 Dugin, Alexander. Visão Eurasianista. 
5 Os principais jornais russos apresentam formato on line inclusive em língua portuguesa. Um exemplo pode ser consultado em:

http://br.rbth.com/

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Em 13 ago 2014