Por Dídimo Matos
O Eurasianismo
O termo eurasianismo apresenta diversas acepções. Surge
pela primeira vez no século XIX, cunhado pelo movimento eslavófilo que defendia
a rica diversidade da Eurásia2, numa espécie de outra via que não europeia ou
asiática, e que juntasse a cultura e tradição da Ortodoxia e da Rússia. Esse
foi, pois, seu primeiro uso.
Tais ideias foram retomadas logo após a I Guerra Mundial, por figuras
como o filólogo e etnólogo Nikolai S. Trubetskoy, pelo historiador Peter
Savitsky, pelo teólogo ortodoxo G. V. Florovsky e, mais a frente, pelo
geógrafo, historiador e filósofo Lev Gumilev, que defendia a luta cultural e
política entre, de um lado, o Ocidente e, de outro, o subcontinente da
Eurásia3, guiado pela Rússia. Gumilev foi o criador de duas teorias: i) a da
etnogénese, pela qual as nações são originárias da regularidade do
desenvolvimento das sociedades; e ii) a da paixão, sobre a capacidade humana
para se sacrificar em prol de objetivos ideológicos.
Estes teóricos do eurasianismo, estudaram de modo aprofundado os impérios
de Gengis Khan, Mongol e Turco-Otomano, e se encontraram, mais de uma vez, com
o geopolítico alemão Karl Haushofer. Baseada ainda na produção do britânico
Halford Mackinder, essa primeira versão do eurasianismo procurou estabelecer a
identidade russa, distinta da ocidental, e propugnava uma fusão das populações
muçulmanas e ortodoxas. Rejeitaram a proposta de integração russa à Europa, de
Pedro, o Grande. Defendiam que a Rússia era, claramente, não europeia, que era
um continente em si, separado objetivamente, tanto da Europa quanto da Ásia,
pela geografia, e que teve sua cultura moldada por influências da Ásia.
Com a revolução russa, Trubetskoy tentou adaptar seu pensamento à nova
realidade, acompanhado por outros eurasianistas. Ele defendeu que o separatismo
era inaceitável e insistiu na indivisibilidade da grande região que
correspondia a Eurásia, ou seja, que a União Soviética (URSS) deveria manter o
império russo em toda a sua extensão, em uma ideia de globalidade distinta da
europeia e da asiática: “o substrato nacional do antigo Império Russo e atual
URSS, só pode ser a totalidade dos povos que habitam este Estado, tido como uma
nação multiétnica peculiar e que, como tal, possuía o seu próprio
nacionalismo”. (SANTOS, 2004).
Para Savitsky, a Eurásia havia sido formada pela natureza, que havia
condicionado e determinado os movimentos históricos e a interpenetração dos
povos, cujo resultado fora a criação de um único estado, que derivando da
natureza, possuía a qualidade transcendente dessa mesma natureza (SANTOS, 2004).
Além desses primeiros eurasianistas, temos o atual eurasianismo, tema central dessa comunicação e que passamos a discutir abaixo.
O Eurasianismo atual, ou neo-eurasianismo, herda dos anteriores muitas de suas características, mas é distinto de ambos em vários sentidos. Basicamente, foi idealizado pelo russo Alexander Dugin.
Alexander Dugin pode ser caracterizado como geopolítico, filósofo,
cientista político e sociólogo. Ele é também considerado um importante
jornalista e analista político. É preciso enfatizar sua grande influência no
pensamento geopolítico russo pós-soviético. Seu pensamento que a geopolítica é
não somente uma ciência, mas possui muito de ideologia tem tido muita
influência na política russa, e seus livros são utilizados pelas escolas geopolíticas
militares e civis da Rússia.
Dugin ocupou cargos de assessoramento na Duma e teve muita influência junto aos assessores ocupados da política externa dos governos Vladimir Putin e D. Medvedev, sendo considerado o idealizador oficioso dessa. Essa influência é vista nos pronunciamentos de ambos os líderes russos, quando falam abertamente no eurasianismo como guia das relações internacionais da Rússia.
Atualmente, Dugin ocupa o cargo de chefe do Departamento de Sociologia
das Relações Internacionais, da Universidade Estatal de Moscou, e a presidência
do Centro de Estudos Conservadores, dessa mesma universidade.
O Neo-eurasianismo de Dugin
Visto de maneira integral, o neo-eurasianismo não é apenas uma teoria
geopolítica, mas uma filosofia geral que possui as seguintes características:
a) Histórica e geograficamente é o mundo inteiro excetuando o setor ocidental;
b) Estratégica e militarmente é a união de todos os países que não aprovam as políticas expansionistas dos EUA e da OTAN;
c) Culturalmente representa a preservação das tradições culturais, nacionais, étnicas e religiosas orgânicas;
d) Socialmente representa formas diferentes de vida econômica e a “sociedade socialmente justa”.4
O neo-eurasianismo tem por princípios:
2) a Tradição: contra a supressão de culturas, dogmas e descobertas das
sociedades tradicionais;
3) os direitos das nações contra os “bilhões de ouro” e a hegemonia neocolonial do “norte rico”;
3) os direitos das nações contra os “bilhões de ouro” e a hegemonia neocolonial do “norte rico”;
4) as etnias como valores e sujeitos da história contra a
despersonalização das nações, aprisionadas em construções sociais artificiais;
5) a justiça social e solidariedade humana contra a exploração e
humilhação do homem pelo homem.
Enquanto teoria geopolítica, o neo-eurasianismo faz parte da chamada
escola expansionista (TEIXEIRA, 2009), que passaremos a descrever. A Figura
1 mostra simbolicamente as pretensões expansionistas do coração da
Rússia para o mundo, em todas as direções.
O eurasianismo pretende em primeiro lugar, ser uma alternativa à
globalização. Dugin entende o modelo de globalização atual como a representação
do expansionismo dos EUA e seus aliados da OTAN, ou seja, como a representação
de um mundo unipolar que tem nos estadunidenses seu modelo econômico e
filosófico e que quer impor ao mundo seus valores liberais, individualistas e
democráticos.
Do coração da Rússia para o mundo
Como alternativa ao modelo de globalização atual, Dugin fornece um novo
modelo de globalização, baseado na conjugação de ideias de H. Mackinder e K.
Haushofer. Retira de Mackinder a ideia de luta entre terra e mar, e de que quem
domina o coração da Eurásia domina o mundo. Defende, como o geopolítico
estadunidense Bzerzinki, que a Rússia é o coração da Eurásia e representa o
centro das forças terrestres (eurasianistas) em luta contra as forças marítimas
(atlantistas) guiadas pelos EUA.
De Haushofer, se inspira na ideia de pan-regiões e as redesenha para
defender, contra o mundo unipolar da globalização atual, um novo modelo de
globalização multipolar, com quatro Zonas Meridionais: a zona Anglo-Americana,
a zona Euro-Africana, a zona Rússia-Ásia Central e a zona do Pacífico. Nesse
esquema, a zona Anglo-Americana (Atlantista) seria contrabalançada pelas outras
três zonas.
Cada zona meridional no projeto eurasiano consiste de vários “grandes
espaços” ou “impérios democráticos” . Cada um deles possui liberdade
relativa e independência, mas está estrategicamente integrado em uma zona
meridiana correspondente. Os grandes espaços correspondem às fronteiras das
civilizações e incluem vários Estados-nações ou união de Estados.
A Rússia, para dominar o imenso espaço da zona meridional Rússia-Ásia
Central, precisa, no âmbito interno, originar um Estado com diversas etnias e
religiões,bem como, no plano externo, se organizar por meio de alianças, com a
elaboração de projetos especiais no âmbito pan-europeu, com a Alemanha, no
pan-árabe, com o Irã, e no pan-asiático, com o Japão (MARCU, 2007).
Devido à necessidade de integração continental, a Rússia deveria
estabelecer uma nova geopolítica no sul da Eurásia, de tal maneira que a Índia,
a Indochina e os Estados islâmicos passariam a ser um “teatro de manobras
continentais de posição” (MARCU, 2007 segundo TEIXEIRA, 2009), com o fim de
convergir os objetivos estratégicos dessa região ao centro eurasiático
representado por Moscou (TEIXEIRA, 2004). Dugin desenvolve tal ideia a partir
do conceito de vetores abertos que se originam em Moscou, passam pelos vizinhos
próximos, e que chegam aos Estados europeus, asiáticos e islâmicos (DUGIN,
2004).
Assim, as características estratégicas do eurasianismo estão relacionadas
a diferentes ações que devem ser tomadas respeitando aspectos militares,
econômicos, políticos, étnicos e religiosos daquela região.
Além dos eixos estratégicos com os vizinhos próximos, vetores como
Moscou-Teerã, Moscou-Nova Deli e Moscou-Ancara são considerados básicos para
essa integração, e há ainda planos para o Afeganistão e Paquistão, a região do
Cáucaso e a Ásia Central, assim como a valorização das relações com a França e
a Alemanha através dos vetores Moscou-Paris e Moscou-Berlim, respectivamente.
Eixo Moscou-Teerã
Na integração russo-asiática a questão central deste processo é a
implementação de um eixo Moscou-Teerã. O processo interno depende do sucesso do
estabelecimento de uma parceria de médio e longo prazo com o Irã. A união dos
potenciais econômico, militar e político de Rússia e Irã aumentará o processo
de integração da zona, tornando-a irreversível e autônoma.
O eixo Moscou-Teerã será a base para uma integração regional posterior.
Tanto Moscou quanto o Irã são potências autosuficientes, na visão de Dugin, aptas
a criarem seu próprio modelo organizacional para a região.
Eixo Moscou-Nova Deli
A cooperação russo-indiana forma a base do segundo mais importante eixo
meridiano de integração no continente eurasiano e em seus sistemas de segurança
coletiva. Moscou terá um papel importante ao diminuir as tensões entre Nova
Deli e Islamabad (Kashmir). O plano eurasiano para a Índia, patrocinado por
Moscou, é a criação de uma federação que refletirá a diversidade da sociedade
indiana com seus numerosos grupos étnicos e religiosos, incluindo hindus, sikhs
e muçulmanos.
Eixo Moscou-Ankara
O principal parceiro regional no processo de integração da Ásia Central é
a Turquia. A ideia eurasiana está se tornando popular por lá na atualmente
devido ao entrelaçamento das tendências ocidentais e orientais. A Turquia
reconhece suas diferenças civilizacionais com a União Europeia, seus interesses
e objetivos regionais distintos, a ameaça da globalização e a consequente perda
de soberania.
É imperativo para a Turquia estabelecer uma parceria estratégica com a
Federação Russa e o Irã. A Turquia só será capaz de manter suas tradições
dentro de um modelo multipolar de mundo. E parece que certas facções da
sociedade turca entendem esta situação, desde elites políticas e socialistas
até religiosas e militares. Assim, o eixo Moscou-Ankara pode se tornar uma
realidade geopolítica apesar do longo período de hostilidade mútua.
O plano eurasiano para Afeganistão e Paquistão
O vetor de integração com o Irã tem importância vital para que a Rússia
ganhe acesso a portos de águas quentes e também para a reorganização
político-religiosa da Ásia Central (países asiáticos da Comunidade dos Estados
Independentes – CEI, Afeganistão e Paquistão). Uma cooperação próxima com o Irã
implica na transformação da área afegã-paquistanesa em uma confederação
islâmica livre, leal tanto a Moscou quanto ao Irã.A razão desta necessidade é
que os Estados independentes de Afeganistão e Paquistão continuarão a ser fonte
de desestabilização, ameaçando os países vizinhos. A luta geopolítica eurasiana
providenciará a capacidade para implementar uma nova federação central-asiática
e transformar esta região complicada em uma área de cooperação e prosperidade.
O Cáucaso
O Cáucaso é a região mais problemática para a integração eurasiana dado
seu mosaico de culturas e etnias, que facilmente eleva as tensões entre as
nações. Essa diversidade cultural é uma das principais armas exploradas por
aqueles países que buscam parar o processo de integração do continente
eurasiano.
A região do Cáucaso é habitada por nações que pertencem a diferentes Estados e áreas civilizacionais. A região deve ser um polígono de testes de diferentes métodos de cooperação entre os povos, pois o que for bem sucedido ali poderá sê-lo ao longo do continente eurasiano. A solução eurasiana para este processo jaz não na criação de Estados étnicos ou estritamente associados a uma só nação, mas no desenvolvimento de uma federação flexível fundamentada nas diferenças étnicas e culturais no interior de um contexto estratégico comum da zona meridiana.
O resultado deste plano é um sistema de um semieixo entre Moscou e os centros do Cáucaso (Moscou-Baku, Moscou-Erevan, Moscou-Tbilisi, Moscou-Mahachkala, Moscou-Grozni etc.) e entre os centros caucasianos e os aliados da Rússia no interior do projeto eurasiano (Baku-Ankara, Erevan-Teerã etc.).
O plano eurasiano para a Ásia Central
A Ásia Central deve se mover rumo à integração com a Federação Russa, em
um bloco unido estratégica e economicamente no interior da estrutura de união
eurasiana, a sucessora da CEI. A principal função dessa área específica é a
reaproximação da Rússia com os países do Islã continental (Irã, Paquistão,
Afeganistão).
Desde o início, o setor da Ásia Central deve possuir vários vetores de
integração. Um plano tornará a Federação Russa o principal parceiro
(similaridades de cultura, interesses econômicos e energéticos convergentes, e
uma estratégia comum de sistema de segurança). O plano alternativo é colocar o
foco em semelhanças étnicas e religiosas: mundos turco, iraniano e islâmico.
Considerações finais
Como disse Dugin, “Este é o Eurasianismo, a política da heartland”
(GLOVER citado em TEIXEIRA, 2009). O pensamento eurasianista é o que mais se
alinha à política russa atual, e isso pode ser acompanhado diariamente nos
jornais russos onde se verá Putin e Medvedev não apenas pondo em prática a
teoria, mas citando-a explicitamente.5
O eurasianismo põe-se como uma alternativa a filosofia ocidental e a sua
economia, bem como mistura geopolítica e espiritualidade tradicional, esses
itens, entretanto, fogem ao escopo do presente trabalho, mas os interessados
poderão encontrar referências aos trabalhos de René Guénon e Julius Evola,
ambos vinculados a produção intelectual de Dugin.
Dídimo Matos
Possui graduação em Filosofia pelo Instituto de Ensino Superior do Centro
Oeste (2004), Mestrado em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba.
Atualmente dá aulas nas redes pública e privada da Paraíba. Tem
experiência na área de Filosofia, com ênfase em filosofia analítica, círculo de
Viena, lógicas clássicas e não clássicas, paraconsistência, Newton da Costa.
Tem interesse em geopolítica, educação, filosofia política, ética e
filosofia da linguagem. Atualmente é doutorando no Programa de Pós-Graduação em
Geografia Humana na Universidade de São Paulo, USP, no qual desenvolve pesquisa
em geopolítica focando o Eurasianismo de Alexander Dugin e o Meridionalismo de
André Martin.
Referências
Dugin, Alexander. A grande Guerra dos Continentes. Lisboa: Antagonista, 2006.
A Ideia Eurasiana.
Visão Eurasianista.
Dugin, Alexander. A grande Guerra dos Continentes. Lisboa: Antagonista, 2006.
A Ideia Eurasiana.
Visão Eurasianista.
MARCU, Silvia. La geopolítica de la Rusia postsoviética: desintegración,
renacimiento de una potencia y nuevas corrientes de pensamiento geopolítico.
Scripta Nova: revista electrónica de geografía y ciencias sociales. Universidad
de Barcelona, v. XI, n. 253, dic. 2007.
Disponível em:
SANTOS, Eduardo Silvestre dos. O eurasianismo: a “nova” geopolítica russa. Jornal Defesa e Relações Internacionais. Lisboa, nov. 2004.
Teixeira, José A. B. J. O pensamento geopolítico da Rússia no início do século
XXI e a geopolítica clássica. Revista da Escola Superior de Guerra Naval. Rio
de Janeiro, n. 13, junho de 2009.
1 Mestre em filosofia na UFPB, professor de filosofia da SECPB.
2 Termo também com vários significados como veremos adiante.
3 Eurásia seria um subcontinente plantado entre a Europa e a Ásia. Outro emprego seria como parte integrante do Império Russo.
4 Dugin, Alexander. Visão Eurasianista.
2 Termo também com vários significados como veremos adiante.
3 Eurásia seria um subcontinente plantado entre a Europa e a Ásia. Outro emprego seria como parte integrante do Império Russo.
4 Dugin, Alexander. Visão Eurasianista.
5 Os principais jornais russos apresentam formato on line inclusive em
língua portuguesa. Um exemplo pode ser consultado em:
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Em 13 ago 2014