Ativista palestina enfrenta soldados israelenses, em 2011. |
Agora, pressão
internacional pode obrigar Telaviv a relaxar cerco a Gaza — o que teria enorme
significado político e simbólico.
Um mês depois de iniciar ofensiva
brutal, Telaviv teme ser derrotada politicamente pelo Hamas. Como
isso tornou-se possível? Quais seriam as consequências?
A guerra em
curso em Gaza não foi algo que Israel ou o Hamas tenham buscado. Mas os dois
lados sabiam com certeza absoluta que um novo confronto viria. O cessar-fogo de
21/11/2012, que pôs fim a oito dias de fogo, foguetes de Gaza contra Israel e
bombardeio aéreo de Israel contra Gaza, jamais foi implementado. Aquele acordo
estipulava que todas as facções palestinas em Gaza suspenderiam as hostilidades
contra Israel e que Israel suspenderia todos os ataques contra Gaza por terra,
mar e ar – inclusive o “alvejamento de indivíduos” (assassinatos, quase sempre
por mísseis disparados de drones manobrados à distância) –, e
que o cerco de Gaza acabaria, dado que Israel aceitou, por aquele acordo de
2012, “abrir as passagens e facilitar o deslocamento de pessoas e transferência
de produtos, pondo fim a qualquer medida que restrinja a livre movimentação de
residentes e ao alvejamento de residentes em áreas de fronteira.”
Uma cláusula
adicional registrava que “outras questões que venham a exigir discussão serão
discutidas” – o que parece fazer referência ao esforço, acordado privadamente
com Egito e EUA, para ajudarem a pôr fim ao contrabando de armas para Gaza,
embora o Hamas sempre tenha negado tal interpretação para essa cláusula.
Durante os três
meses depois daquele cessar-fogo, a agência de segurança de Israel, Shin Bet,
só registrou um ataque: dois morteiros disparados de Gaza, em dezembro de 2012.
Os funcionários israelenses ficaram impressionados. Mas convenceram-se
rapidamente de que a calma na fronteira de Gaza seria, em primeiro lugar,
efeito da posição contida adotada pelos israelenses e do próprio interesse dos
palestinos. Israel, por isso, não viu motivo forte para aplicar a parte que lhe
cabia aplicar daquele acordo. Nos três meses seguintes, depois do cessar-fogo,
as forças israelenses atacaram Gaza com regularidade, atingindo agricultores
palestinos e os que recolhiam lixo em áreas próximas à fronteira, e atiraram
contra barcos de pesca, impedindo os pescadores de terem acessos à maioria dos
pesqueiros no mar de Gaza.
A abertura do
cerco de Gaza jamais aconteceu. As passagens foram mantidas permanentemente
fechadas. As chamadas “áreas de transição” [orig. buffer zones] –
terras agricultáveis nas quais que os agricultores gazenses não poderiam pisar,
sob risco de serem mortos a tiros – foram reinstituídas. As importações caíram,
as exportações foram bloqueadas e poucos gazenses obtiveram autorização para
entrar em Israel e na Cisjordânia.
Israel
comprometera-se a manter negociações indiretas com o Hamas sobre a
implementação do acordo de cessar-fogo, mas sempre adiou as reuniões. Primeiro,
porque queria ver se o Hamas manteria sua parte do acordo; depois, porque
Netanyahu não podia fazer qualquer concessão ao grupo, nas semanas antes das
eleições de janeiro de 2013; depois, porque uma nova coalizão israelense estava
sendo formada e precisava de tempo para implantar-se. As conversações jamais
aconteceram. Para o Hamas, a conclusão foi clara: ainda que algum acordo fosse
negociado por EUA e Egito, nem assim Israel o cumpriria.
Mas o Hamas
continuou a manter o cessar-fogo, para grande satisfação de Israel. Implantou
uma nova força policial encarregada de prender palestinos que tentassem lançar
foguetes. Em 2013, houve ainda menos foguetes lançados de Gaza – menos que em
qualquer ano desde 2003, quando os primeiros rojões primitivos começaram a ser
lançados para o outro lado da fronteira. O Hamas precisava de tempo para
reconstituir seu arsenal, fortificar suas defesas e preparar-se para a batalha
seguinte, quando usaria suas forças armadas para tentar pôr fim ao cerco de
Gaza. Mas o Hamas também contava com que o Egito se abrisse para Gaza, pondo
fim ao período durante o qual Cairo e Telaviv dedicaram-se a escapar, ambos, à
responsabilidade pelo território e seus habitantes reduzidos à miséria. Caso
este hipótese se confirmasse, ela tornaria menos crucial conseguir que Israel
aliviasse o cerco.
Em julho de
2013, o golpe no Cairo, que levou ao poder o general Sisi, acabou com as
esperanças do Hamas. O regime militar de Sisi culpou o deposto presidente
Morsi, da Fraternidade Muçulmana, e o Hamas, braço palestino do mesmo grupo,
por todas as desgraças do Egito. As duas organizações foram banidas. Morsi foi
formalmente acusado de conspirar com o Hamas para desestabilizar o Egito. O
líder da Fraternidade Muçulmana e centenas de apoiadores de Morsi foram
condenados à morte. Os militares egípcios usaram retórica cada vez mais
ameaçadora contra o Hamás, que passou a temer que o Egito, Israel e a
Autoridade Palestina liderada pelo Fatah se aproveitassem da fraqueza de Gaza
para lançar campanha militar coordenada contra a Faixa. Os líderes do Hamas
foram proibidos de deixar a Faixa, proibidos de viajar. O número de gazenses autorizados
a entrar no Egito foi reduzido a uma mínima fração do que fora antes do golpe.
Quase todos os túneis pelos quais chegavam bens do Egito para Gaza foram
fechados. O Hamas usava impostos cobrados sobre esses bens para pagar os
salários dos mais de 40 mil funcionários públicos em Gaza.
Irã e Síria,
ex-aliados e primeiros apoiadores do Hamas, não ajudariam dessa vez, a menos
que o grupo deixasse de apoiar a Fraternidade Muçulmana e passasse a apoiar o
governo do alawita Bashar al-Assad, na guerra cada dia mais sectária na Síria
contra o que se convertera em oposição predominantemente sunita. Os aliados que
restavam ao Hamas tinham seus próprios problemas: a Turquia, preocupada com os
tumultos internos; o Qatar, pressionado pelos vizinhos para reduzir seu apoio à
Fraternidade, que as demais monarquias do Golfo veem como principal ameaça
contra elas. A Arábia Saudita declarou a Fraternidade “organização terrorista”;
outros estados do Golfo continuavam a reprimir os Irmãos. Na Cisjordânia, o
Hamás não podia hastear uma bandeira, fazer um discurso ou uma reunião, sem o
risco de ter seus membros presos por Israel ou pelas forças de segurança da
Autoridade Palestina.
Com a pressão
aumentando e sem aliado forte ao qual recorrer, o declínio de Gaza foi rápido.
Embora Israel tenha “respondido” ao fechamento dos túneis pelo Egito e à
licença para que pedestres cruzassem a fronteira, com pequeno aumento na oferta
de bens e no número de licenças para sair da Faixa, nada mudara na política
fundamental dos israelenses. Os racionamentos de eletricidade foram ampliados.
Os blecautes diários já duravam de 12 a 18 horas. Os necessitados de tratamento
em hospitais egípcios pagavam propinas de até 3 mil dólares para cruzar a
fronteira, vez ou outra, quando era ocasionalmente aberta por um dia. Os
racionamentos de combustíveis faziam com que se formassem filas de vários
quarteirões nos postos, e brigas em torno das bombas. O lixo continuava
empilhado nas ruas, porque o governo não tinha meios para comprar combustível
para os caminhões de coleta. Em dezembro, as usinas de tratamento de esgoto e
água foram fechadas e o esgoto passou a escorrer pelas ruas. A crise se
agravou: mais de 90% do aquífero de Gaza foi contaminado.
Quando se tornou
evidente que os tumultos no Egito não resultariam em derrubada de Sisi e volta
da Fraternidade ao poder, o Hamas só viu quatro saídas possíveis. A primeira
seria reaproximar-se do Irã, ao preço inaceitável de trair a Fraternidade na
Síria e enfraquecer o apoio ao Hamas entre os próprios palestinos e a maioria
dos muçulmanos sunitas em todo o mundo. A segunda seria criar novos impostos em
Gaza, mas nenhum novo imposto compensaria a perda da renda dos túneis; e
qualquer novo imposto contribuiria a favor da oposição ao Hamas. A terceira
seria lançar foguetes contra Israel, na esperança de que um novo cessar-fogo
trouxesse alguma melhoria nas condições em Gaza. Essa possibilidade horrorizou
os funcionários dos EUA: minaria a cordata liderança palestina na Cisjordânia e
poria fim às conversações de paz que John Kerry lançou no mesmo mês do golpe do
general Sisi. Mas o Hamas sentiu-se vulnerável demais, especialmente por causa
do papel potencial de Sisi em qualquer novo conflito entre Gaza e Israel, para
adotar essa terceira possibilidade. Quanto às conversações de paz, não cabia
dúvida alguma de que também fracassariam.
A opção final,
que o Hamas acabou por escolher, foi entregar a responsabilidade pelo governo
de Gaza a prepostos da Autoridade Palestina, sediada em Ramallah (Cisjordânia)
e dominada pelos adversários do Fatah, apesar de este grupo ter sido derrotado
nas eleições de 2006.
O Hamas pagou
preço alto, aceitando quase todas as demandas do Fatah. O novo governo da
Autoridade Palestina não incluiu nenhum membro do Hamas, ou aliados do Hamas, e
todas as principais figuras do governo da Autoridade Palestina permaneceram em
seus postos. O Hamas concordou com que a Autoridade Palestina deslocasse de
volta para Gaza vários milhares de seus guardas de segurança; que pusesse seus
guardas nas fronteiras e postos de passagem, sem posição recíproca para o Hamás
no aparelho de segurança na Cisjordânia. Mais importante, o governo anunciou
que aceitava as três condições impostas pelos EUA e aliados em troca de uma
ajuda ocidental longamente esperada: não violência, cumprimento de acordos
passados e o reconhecimento de Israel. Embora o acordo estipulasse que o
governo da Autoridade Palestina se absteria de fazer política, o presidente da
entidade, Mahmoud Abbas, anunciou que manteria seu programa político. O Hamas
praticamente nem protestou.
O acordo foi
assinado dia 23 de abril, depois que as conversas de paz de Kerry fracassaram;
se elas tivessem feito alcançado progresso, os EUA teriam feito o máximo que
pudessem para impedir que o acordo Fatah-Hamas fosse assinado. Mas o governo
Obama estava desapontado com as posições que Israel assumiu durante as
conversações e declarou Telaviv culpada por parte do fracasso. A frustação
ajudou a empurrar Washngton a reconhecer o novo governo palestino, apesar das
objeções de Israel. Mas os EUA não iriam além disso. Nos bastidores, pressionavam
Abbas para que evitasse qualquer verdadeira reconciliação entre Hamas e Fatah.
O Hamas buscou reativar o conselho legislativo palestino, esquecido há muito
tempo, para que fiscalizasse o novo governo. Mas a assembleia tem maioria de
membros do Hamas e os EUA alertaram Abbas de que suspenderiam qualquer apoio
financeiro e político ao novo governo, caso a assembleia voltasse a se reunir.
O acordo de
reconciliação foi impopular dentro do Hamas. Dos movimentos de base ao segundo
escalão da liderança, todos entendiam que o acordo geraria problemas terríveis.
Moussa Abu
Marzouk, alto dirigente do gabinete político, passou semanas em Gaza em
reuniões com quadros do grupo, ouvindo suas preocupações e tentando
convencê-los da sabedoria do acordo. Os militantes temiam que o pessoal de
segurança do Fatah tentasse vingar as mortes resultantes da luta
entre Hamas e Fatah em 2006 e 2007, e iniciasse nova guerra civil.
Comandantes do Hamas queriam garantias de que a Autoridade Palestina não
estenderia sua colaboração com Israel e contra o Hamas, da Cisjordânia para
dentro da Faixa de Gaza. Funcionários públicos, milhares dos quais não são
membros do Hamas, temiam ser despedidos, dispensados ou ficar sem salários.
Outros diziam que o Hamas cedera tudo, sem qualquer garantia de que o Fatah
cumpriria o que prometera. Um dos argumentos que os líderes do Hamas
apresentavam para ter assinado o acordo foi que este permitiria que o movimento
se focasse na sua própria missão original: a resistência militar contra Israel.
Tão logo o governo
foi formado, todos os medos dos ativistas do Hamas começaram a se confirmar. Os
termos do acordo não apenas eram desfavoráveis: eles tampouco foram postos em
prática. A condição mais básica do compromisso – que o governo pagaria os
funcionários públicos que fazem Gaza funcionar e que seria aberta a passagem
com o Egito – ficaram no papel. Ao longo de anos, os gazenses ouviram dizer e
repetir que todos os seus sofrimentos eram culpa do governo do Hamas. Já não
havia governo do Hamas, e as condições de vida na Faixa de Gaza haviam piorado
muito.
* * *
Em 12 de junho,
dez dias depois de formado o novo governo, um evento inesperado mudou
radicalmente o destino do Hamas. Três estudantes israelenses foram sequestrados
e mortos quando voltavam da escola religiosa na Cisjordânia. Quando os
cadáveres foram encontrados, um grupo de judeus israelenses capturou um
palestino de 16 anos perto de sua casa em Jerusalém Leste, jogou-lhe gasolina
sobre o corpo e o queimou vivo. Irromperam protestos entre os palestinos em
Jerusalém, Negev e Galileia, e a Cisjordânia permaneceu relativamente calma.
Israel culpou o Hamas pelo assassinato dos estudantes que saíam da escola
religiosa, apesar de vários funcionários da segurança de Israel terem declarado
que acreditavam que os criminosos tivessem agido por conta própria, sem ordens
superiores.
Na caçada aos
suspeitos pelo assassinato, Israel fez sua maior campanha na Cisjordânia contra
o Hamas desde a Segunda Intifada. Fechou escritórios do grupo e prendeu
centenas de membros de todos os níveis. O Hamas negou responsabilidade pelas
capturas e disse que as acusações de Israel eram pretexto para iniciar uma
ofensiva. Dentre os presos, estavam mais de 50 dos 1.027 prisioneiros que
haviam sido libertados em 2011, na troca pelo soldado israelense Gilad Shalit,
capturado em combate pelo Hamas. O Hamas viu essas prisões como mais uma
violação do acordo Shalit, que especifica as condições sob as quais os
prisioneiros libertados poderiam voltar a ser presos, e inclui outros
dispositivos que Israel jamais cumpriu, sobre melhoria de condições dos demais
prisioneiros palestinos e direitos a receber visitas.
A liderança
palestina em Ramallah trabalhou em íntima coordenação com Israel para prender
militantes, e poucas vezes viu-se tão desprestigiada entre seus próprios
eleitores – muitos dos quais creem que sequestrar israelenses é o único meio
efetivo para obter a liberdade de prisioneiros que a ampla maioria do país vê
como heróis nacionais. Em inúmeras cidades da Cisjordânia, os moradores protestaram
contra a colaboração entre a segurança da Autoridade Palestina e Israel. Um
ex-ministro de Assuntos Religiosos, muito próximo de Abbas, foi com seus
guarda-costas à Mesquita al-Aqsa; pessoas que lá rezavam os atacaram e todos
tiveram de ser hospitalizados. O emissário que Abbas enviou para visita de
condolências à família do adolescente palestino assassinado foi expulso da
casa.
Com os protestos
espalhando-se por Israel e Jerusalém, militantes de grupos não ligados ao
Hamas, em Gaza, começaram a lançar foguetes e morteiros, em movimento de
solidariedade. Sentindo a vulnerabilidade de Israel e a fragilidade da
liderança em Ramallah, líderes do Hamas ordenaram que os protestos fossem
ampliados até converterem-se numa terceira Intifada. Quando o fogo dos
foguetes aumentou, viram-se arrastados para um novo dilema: não podiam ser
vistos proibindo os ataques e, ao mesmo tempo, conclamando para um levante em
massa. A retaliação de Israel culminou no bombardeio de 6 de julho, que matou
vários militantes do Hamas, o maior número de baixas que o grupo sofreu em
vários meses. Dia seguinte, o Hamas começou a chamar para si toda a
responsabilidade pelos foguetes. E Israel então anunciou a “Operação Linha
Protetora”.
Para o Hamas, a
escolha não foi tanto entre paz e guerra; mas entre morrer por estrangulamento
lento e uma guerra que tinha uma chance, embora pequena, de afrouxar o nó. O
Hamas vê-se numa batalha pela própria sobrevivência. Seu futuro em Gaza depende
do desenlace. Como Israel, o grupo definiu limites bem definidos, objetivos com
os quais simpatiza grande parte da comunidade internacional.
O principal
objetivo é conseguir que Israel honre os três acordos passados: o
acordo da troca do prisioneiro Shalit, inclusive com a libertação dos antigos
prisioneiros soltos e agora novamente presos; o acordo do cessar-fogo de
novembro de 2012, que determina o fim do cerco da Faixa de Gaza; e o acordo de
reconciliação de abril de 2014, que permite que o governo palestino pague
salários em Gaza, mantenha funcionários seus nas fronteiras, receba o material
de construção desesperadamente necessário e reabra a passagem de pedestres
entre Gaza e o Egito.
Não são
objetivos irrealistas e há crescentes sinais de que o Hamas tem boa chance de
obter pelo menos alguns desses objetivos. Obama e Kerry disseram que acreditam
que o cessar-fogo deva basear-se no acordo de novembro de 2012. Os EUA também
mudaram sua posição sobre o pagamento de salários em Gaza, e propuseram, num
rascunho de acordo apresentado a Israel dia 25/7, que os fundos sejam
transferidos para os funcionários em Gaza. Durante a guerra, Israel decidiu que
poderia resolver seu problema de Gaza com a ajuda do novo governo de Ramallah
que, antes, Israel havia formalmente boicotado. O ministro da Defesa de Israel
disse que esperava que um cessar-fogo servisse para implantar forças de
segurança do novo governo de Ramallah nas passagens de fronteira em Gaza.
Netanyahu também já começou a baixar o tom de voz sobre Abbas.
Perto do fim da
terceira semana de combates, Israel e os EUA discretamente fingiram que não
viram que o governo palestino pagou todos os funcionários que trabalham em
Gaza, pela primeira vez. Funcionários israelenses em todo o espectro político
já começam a admitir privadamente que sua política anterior para Gaza foi
errada. Todas as partes envolvidas em mediar um cessar-fogo já cogitam arranjos
pós-guerra que efetivamente fortalecerão o novo governo palestino e seu papel
em Gaza – e, por extensão, fortalecerão Gaza em si.
Muito mais
difícil será conseguir a libertação dos ex-prisioneiros agora reaprisionados. Mas se a guerra prossegue, e
uma incursão por terra torna-se mais provável, as chances de o Hamás capturar
um soldado israelense aumentam. Poucas coisas desmoralizariam mais
completamente o governo de Ramallah que um novo acordo de troca de prisioneiros
entre Israel e o Hamas, mesmo que em escala menor que o acordo Shalit.
Quando o Hamas anunciou que capturara um soldado israelense dia 20/7,
multidões acorreram para as ruas de Gaza, Jerusalém e na Cisjordânia, soltando
fogos de artifício e distribuindo doces e balas pelas ruas, com renovada
esperança de voltar a ver amigos e parentes presos nas prisões israelenses.
Manifestações de
palestinos em solidariedade com Gaza espalharam-se. Já se viam mais bandeiras
do Hamás que do Fatah em recente protesto em Nablus. A liderança em Ramallah,
embora não muito convincentemente, adotou parte da retórica do Hamas, usando
com frequência a palavra “resistência” e elogiando a luta em Gaza. Tem havido
confrontos em pontos da Cisjordânia e em Jerusalém Leste quase todas as noites.
Dia 24 de julho, na noite de Laylat al-Qadr, dia santificado para os
muçulmanos, o ponto de controle de Qalandiya, no norte de Jerusalém, foi
cenário da maior manifestação popular em toda a Cisjordânia desde a
Segunda Intifada.
O Hamas sabe que
não pode derrotar militarmente Israel, mas a guerra de Gaza guarda a
possibilidade de uma recompensa distante, mas não menos importante: agitar a
Cisjordânia, minar a liderança de Ramallah e todo o programa de negociação
perpétua e perpétua concessão e perpétua dependência dos EUA, que o governo do
Fatah encarna. Para muitos palestinos, o Hamás demonstrou, mais uma vez, a
efetividade comparativa da militância.
Os túneis, que
foram fator decisivo para os sucessos do Hamas na atual guerra são motivo dos
ataques dos israelenses contra Gaza desde bem antes da retirada de Israel, em
2005. O Hamas realiza sempre uma série de ataques baseados nos túneis,
inclusive a explosão de dezembro de 2004, no subsolo de um posto do exército de
Israel no sul de Gaza, que ajudou a precipitar a retirada israelense.
Desde que os
combates em Gaza recomeçaram, esse verão, Israel não anunciou sequer uma única
nova colônia de ocupação na Cisjordânia e já manifestou disposição para fazer
algumas concessões em demandas palestinas. São conquistas que o governo de
Ramallah nunca sequer se aproximou de alcançar, apesar dos muitos anos de
negociações. O resultado da luta ajudará a determinar o caminho futuro do
movimento nacional palestino.
O real obstáculo
que impede um levante na Cisjordânia jamais foi, como o Hamas tem dito, a
colaboração de Abbas com Israel. O obstáculo real é a fragmentação social e
política, e a ideia que se vai implantando entre os palestinos, sem encontrar
qualquer oposição, de que a libertação nacional deva ser o segundo objetivo,
superado de longe, em importância, por projetos apolíticos e tecnocráticos de
construção do Estado e de desenvolvimento econômico. Esses são os maiores
obstáculos que o Hamas enfrenta.
Se a guerra mais
recente conseguiu instilar algum orgulho nas multidões palestinas, que dizem
que já se acostumaram a sentir vergonha do modo como seus líderes rastejam aos
pés de norte-americanos e israelenses, a vitória do Hamas não foi pequena.
Mas o grupo
também arriscou muito. Pode perder tudo, no caso de Israel reavaliar a posição,
mantida há muito tempo, de que o Hamás pode ser deixado com a tarefa de
policiar Gaza, estratégia que tem mantido o grupo suficientemente forte para
exercer algo bem perto de monopólio do uso da força. Ironia das semanas
recentes de combate em campo é que a demonstração de poder do Hamas está pondo
em risco a sua própria posição, em Gaza. Israel pode decidir que o Hamas está
forte demais e é ameaça grande demais.
O grupo
conseguiu deter (no sentido de ter tornado extremamente lenta) a incursão dos
israelenses por terra e infligiu dezenas de baixas aos soldados de Israel,
muito mais do que os israelenses previam. Duas semanas depois de iniciada a
ação dos “coturnos em solo”, o exército de Israel ainda não avançou além da
primeira linda de território urbano densamente povoado.
Graças à vasta
rede subterrânea de tuneis, que levam não só para dentro de Israel, mas
espalha-se também sob Gaza, se o exército decidir entrar nas áreas centrais das
cidades, o número de baixas certamente aumentará. Durante a Operação Chumbo
Derretido, em 2008-09, Israel entrou muito mais fundo dentro de Gaza e perdeu
só dez soldados, quatro deles por fogo amigo; em 2014, só até agora, o exército
de Israel já perdeu mais de 60 soldados. As baixas de militantes do Hamás
parecem ser suportáveis.
Pela primeira
vez em décadas, Israel defende-se contra um exército que conseguiu entrar fundo
nas fronteiras de 1967 – usando tuneis e em incursões navais. Os foguetes
produzidos pelo Hamas já alcançam agora todas as grandes cidades de Israel,
inclusive Haifa, e o grupo já tem drones armados com foguetes.
Conseguiu manter fechado o principal aeroporto de Israel durante dois dias.
Israelenses que vivem perto de Gaza já abandonaram suas casas e temem retornar,
porque o exército de Israel diz que é possível que ainda haja túneis não
localizados. Os foguetes de Gaza obrigam os israelenses a dormir nos abrigos,
noite após noite – o que mostra que o exército não está conseguindo neutralizar
a ação do Hamas. Estima-se que a guerra já custou a Israel bilhões de dólares.
Os maiores
custos, claro, ficaram sobre os civis gazenses, que são a maioria dos mais de
1.600 mortos até o momento do cessar-fogo anunciado e imediatamente quebrado,
dia 1º de agosto. A guerra matou famílias inteiras, devastou bairros inteiros,
destruiu residências, cortou a eletricidade e quase todo o acesso à água. Gaza
precisará de anos para se recuperar, se algum dia conseguir fazê-lo.
E parece
improvável que o Hamas esteja preparado para outra luta, a curto prazo. Por
este motivo, ele tem todo interesse de tentar alcançar seus objetivos centrais,
principalmente o de pôr fim ao cerco de Gaza. Os mediadores estão tentando
ajudar o povo de Gaza sem dar a impressão de que reconhecem uma vitória do
Hamas e registram a derrota de Israel.
Do ponto de
vista de Israel e do Egito, o que está em jogo é o que essa já bem visível – ou
claramente possível – vitória do Hamas diz sobre o futuro da Fraternidade
Muçulmana na região. Já para os aliados da Fraternidade – Qatar e Turquia –, o
que está em jogo é o que pode significar uma derrota. O simbolismo do conflito,
que todos perceberam com clareza, ajudou a prolongá-lo.
A solução óbvia
é deixar o novo governo palestino voltar a Gaza e reconstruí-la. Israel poderá
dizer que enfraquece o Hamás ao fortalecer seus inimigos. O Hamas poderá dizer
que conseguiu reconhecimento para o novo governo e alívio considerável no
bloqueio. É solução, claro, que Israel, EUA, Egito e a Autoridade Palestina
poderiam ter facilmente organizado nas semanas e meses de “conversações” que
tiveram antes de a guerra começar, antes de haver tantos mortos.
Por Nathan
Thrall, no London Review of Books | Tradução: Vila
Vudu | Imagem: Anne Paq/Activestills