quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Alfredo Bosi e o vazio da cultura




Alfredo Bosi e o vazio da cultura


Alfredo Bosi


Por Urariano Mota.

De modo geral, e particular também, nos textos de cultura na imprensa há um grande logro. Eles não cumprem o que anunciam no título, nem cumprem, quando realizam algum nexo, algo que nos informe, que nos pague o tempo perdido em percorrer suas páginas. Sim, claro, isto é uma característica geral de todas as seções da imprensa, das capas que nos enganam aos programas de televisão. Mas o logro e o malogro das notícias culturais têm um quê de específico, uma especialização nesse logro geral.




Em seus melhores momentos, os textos de cultura conseguem um voyeurismo, uma indiscrição da vida privada dos famosos. “Isso também é cultura”, dizem os editores, sem atentar para o significado particular dado à palavra, confundida com os exames nos laboratórios de análises clínicas. Em seus piores momentos, nem entre os resultados da matéria dos laboratórios tal cultura é digna de aparecer. Falta-lhe um quê de justeza, de adequação, de confiança e crédito no papel que estampam.

Desse pecado não padece o último número da revista Carta Capital, cuja capa é “O vazio da cultura”. Aberta por um texto de Mino Carta, que correu mundo na web, dela destaco a entrevista de Alfredo Bosi a Rosane Pavam. Copio do grande crítico e homem público algumas linhas para os comentários livres a seguir. 

“Ao lado de uma entrega às pressões da indústria cultural há nas artes plásticas, na arquitetura e, sobretudo, na música um número considerável de artistas que fazem pesquisa séria e criam obras de valor”.

Sem dúvida. Cabe observar que artistas geniais, de valor fecundo e fecundante, estão fora da indústria cultural, ou por voluntário exílio, se assim podemos chamar de voluntários os artistas que por natureza são anti-indústria, portadores de um combate feroz contra a ideologia do capital, ou estão fora das telinhas e páginas nacionais em razão de se encontrarem à margem do centro, e o centro no Brasil cultural significa Rio-São Paulo. Para dar nomes aos que conheço, lembro rápido: Abelardo da Hora, maior escultor brasileiro, mas os brasileiros não sabem; Rodolfo Mesquita, um desenhista de traços que ferem, dono de uma rebeldia indigerível no circuito; Ismael Caldas, pintor dos pintores, cujas pinturas são quadros de reflexões, que não se esgotam nunca; Guita Charifker, aquarelista madura, imensa, cujas composições fazem a gente sonhar em paz…. Isso para ficar nas artes plásticas, na imediata lembrança. Mais: bem que mereceria uma análise do quanto a expulsão do olimpo do Brasil se dá por região geográfica, profunda ignorância estética e ideologia política. 

Mas vamos a outro ponto da entrevista:
“… É claro que a poesia de protesto ou de sátira política é a mais ostensiva, mas há outras modalidades menos enfáticas e igualmente resistentes. Hoje, o poeta crescido na pós-modernidade vive uma condição peculiar, sem horizonte existencial ou político que lhe dê estímulos para lutar. Em lugar da forte e densa negatividade dialética de um Brecht ou de um Drummond, de um João Cabral e de um Ferreira Gullar, o poeta tende a cair em um niilismo cinzento, sinal da sua paralisia como homem público. Predominam as expressões de humor e melancolia”.

Na verdade, a ideologia – no sentido que lhe dá Alfredo Bosi – sofreu ou ganhou um deslocamento, das rodas de intelectuais para os encontros de brasileiros postos à margem de políticas públicas. Isso me vem à lembrança por saber da poesia marginal do Recife, de uma criação e contundência que o Brasil nem imagina existir, assim como a poesia dos saraus na periferia daí mesmo de São Paulo. O que dizer desses novos criadores, eles perderam a razão de luta? Mas no passo acima creio que um dos nossos maiores críticos se refere à poesia maior, dita de extração culta, como em Drummond, principalmente em A rosa do povo, como em João Cabral, que não encontra seguidores que os negue pela superação. Se assim é, ainda assim. Há criadores cultos, de grande poesia, que o Brasil não conhece e por isso imagina viver em um vazio cultural. Para falar do que sei (perdoem o ato falho, pois deveria falar somente do que sei), lembro Alberto da Cunha Melo, que Alfredo Bosi cultiva e consagrou em avaliação crítica. Lembro Nei Duclós, lá mesmo no Sul (lá, porque escrevo a partir da periferia), que faz grande poesia em prosa e verso.

 Mas continuemos até outro ponto. 
Diante da pergunta, boa pergunta de Rosane Pavam:
“É injusto ou incorreto esperar da literatura brasileira um nível de excelência obtido no passado por meio de seus grandes escritores, como Graciliano Ramos, ou, antes dele, Machado de Assis?”.

Assim responde Alfredo Bosi:
“Se é verdadeira a afirmação de Goethe ‘O belo é raro’, poderemos dizer o mesmo das grandes obras de ficção, como as criadas por Machado de Assis e Graciliano Ramos. Raras, mas possíveis em qualquer tempo. Mas não será ocioso lembrar que os dois romancistas mencionados foram autodidatas. Hoje, certamente os meios de instrução superior são muito mais acessíveis aos jovens de talento. Fiquemos à espera de criadores do mesmo nível. Há boas promessas. Quem viver verá”.

Grande Bosi. Ótimo. No passo acima, o crítico fala com a experiência de mundo e com a maturidade filosófica, por saber que o real é inesgotável. Ele sabe que a vida não para, não se repete, nem mesmo nos reflexos. Quem pensa que o mundo da cultura acabou, assim pensa a partir dos textos das revistas brasileiras. Mas a imprensa muito longe se encontra da terra criadora do Brasil. Quem quiser saber o novo do Brasil, há de alcançá-lo por meios marginais, pela web, por exemplo, porque a criação está fora do circuito. O lugar insubstituível da literatura, como o lugar da reflexão sobre o destino humano, está fora do circuito de modo absoluto.

Para ficar no que julgo ser a expulsão mais eloquente das páginas e da telinha, escrevo que o lugar insubstituível da literatura, como o lugar da reflexão sobre o destino humano, na grande imprensa é que está fechado. Daí vem um vazio de onde não se ouve nem um gemido. Para a mídia, a criação está morta. É impossível, tornou-se quimera acordar um dia e ler nas páginas de qualquer jornal ou revista do Brasil, em um cantinho no chão da folha, algo como estas linhas de Manuel Bandeira:

Poema só para Jaime Ovalle

Quando hoje acordei, ainda fazia escuro 
(Embora a manhã já estivesse avançada). 
Chovia. 
Chovia uma triste chuva de resignação
Como contraste e consolo ao calor tempestuoso da 
noite. 
Então me levantei, 
Bebi o café que eu mesmo preparei. 
Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e
fiquei pensando… 
– Humildemente pensando na vida e nas mulheres
que amei.

Ou mesmo como, para encerrar, o que uma vez falou Alberto da Cunha Melo, ao declarar o bem maior e mais duradouro que um diamante, e por isso mesmo sem preço e sem mercado:

“O PRESENTE
O que hoje recebes
e não podes pegar, guardar
em panos e papéis laminados,
é imperecível,
presente onipresente.
Estás com ele na chuva
e não temes que se desfaça.
Estás com ele na multidão
e não o escondes dos mutilados.
O que não existe para os homens
deles estará protegido,
o que os homens não veem
não poderão espedaçar.
Eis o que não te denuncia
porque não tem face
nem volume para ser jogado no mar.
Eis o que é jovem a cada lembrança
porque não tem data
e série, para envelhecer.
O que hoje recebes
não pode ser devolvido”.
***
 UMA RESPOSTA PARA ALFREDO BOSI E O VAZIO DA CULTURA
Suely Farah | 05/02/2013 às 13:47 | Resposta
Do que perdemos, ao ponderar sobre este vazio, é a capacidade de estar junto, de escolher um ponto de consideração e destaque, de nos reconhecer como uma comunidade linguística, com referências de comum importância. Há tanto o que fazer, há o possível, agora, ao alcance da mão. Terão, no entanto, essa visão do amplo varejo, no cotidiano da cidade, os que conduzem as cidades? Sonho em rever, por exemplo, o espaço das bibliotecas da cidade, como espaço de convívio, de discussão, em trabalhos conjuntos com as escolas públicas, com as universidades, com filmes para ver e comentar, com palestras, encontros, lançamento de vídeos, livros, com exposições, com visitas monitoradas a espaços culturais, com oficinas de fazeres, com audições, saraus com… Há tanto o que fazer e as pessoas estão famintas de convívio, embora ainda nem saibam que padecem dessa fome. Lembra-me a frase de Artur, ao provar um gole do graal – minha alma estava sedenta de si mesma? Que sei eu do que falo e vou falando, por pura necessidade de dizer? Falta-nos o espaço e a oportunidade de conviver publicamente. Quem nos usurpa esse direito básico de ocupar a praça e que nos intoxica com o veneno da alienação, do consumo do inútil, do supérfluo, da bebida que não sacia a sede e mais a açula, como um martírio de Tântalo? E você, Urariano, acredita que é possível reinventar o convívio? É possível ainda estarmos juntos e, com-versando, ressignificar a cidade? Será?


ALFREDO BOSI
Nasceu em São Paulo, em 1936. Cursou Letras Neolatinas na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e estudou Filosofia da Renascença e Estética na Facoltà di Lettere de Florença. Lecionou Literatura Italiana na USP, onde defendeu doutoramento sobre a narrativa de Pirandello e livre-docência sobre poesia e mito em Leopardi. Desde 1971 é professor titular da área de Literatura Brasileira da USP. De 1996 a 1999 foi professor convidado na École des Hautes Études en Sciences Sociales e diretor do Instituto de Estudos Avançados entre 1997 e 2001. Desde 2003, é membro da Academia Brasileira de Letras. É autor de, entre outros livros, O pré-modernismo(1966); História concisa da literatura brasileira (1970), O conto brasileiro contemporâneo (1975), O ser e o tempo da poesia (1977), Céu, inferno (1988), Dialética da colonização (1992),Literatura e resistência (2002), Brás Cubas em três versões (2006) eIdeologia e contraideologia (2010), os três últimos pela Companhia das Letras.

Urariano Mota
É natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Vermelho. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e de O filho renegado de Deus (Bertrand Brasil, 2013), uma narração cruel e terna de certa Maria, vítima da opressão cultural e de classes no Brasil. Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.



Publicado em 05/02/2013