Seis médicas cubanas convivem na mesma casa em Guaíba, todas deixaram suas famílias a fim de realizar essa missão internacional |
Foto: Anderson Fetter / Agencia RBS
Itamar Melo, Júlia Otero e
Larissa Roso
Pouco depois das 7h, seis
mulheres saem de uma casa no centro de Guaíba para trabalhar. Vestem-se com
simplicidade e carregam a marmita do almoço. Uma delas segue a pé. As outras
ficam na parada de ônibus, com o vale-transporte à mão, rumo a cinco bairros
distintos, em viagens de até 40 minutos. A rotina é idêntica à de milhões de
trabalhadores, mas tem um aspecto surpreendente. As seis mulheres são médicas.
As seis profissionais do amado e odiado programa Mais Médicos representam um personagem novo, surgido no fim do ano passado em muitos rincões do país: o "doutor" cubano que vive modestamente, faz a faxina da casa e ganha um salário apertado, assim como muitos de seus pacientes no Sistema Único de Saúde (SUS).
O mapa de Cuba no RS
As novidades são sentidas no
consultório. Os pacientes costumam se supreender ao entrar na sala de Marlyn
Paneca Gómez, 47 anos, na unidade de saúde do centro de Guaíba. Encontram a
médica do outro lado da mesa, mas não acham uma cadeira diante do móvel, para
sentar. Como outros médicos cubanos, Marlyn gosta de colocar a cadeira do
paciente colada à sua.
— A mesa é uma barreira na
relação médico-paciente. Explico que preciso estar perto, tocar. Mas os
brasileiros não entendem. Não estão acostumados. Vão arrastando a cadeira.
Depois de um tempo, ela já está do outro lado da mesa — diz.
Marlyn é um dos 285 cubanos em
ação no Estado, aos quais vão se somar mais 138 em março. No Brasil, eles são
5,4 mil, o equivalente a 80% dos estrangeiros ou formados no Exterior que
participam do Mais Médicos. Ela fazia um curso preparatório no Espírito Santo,
em outubro, quando foi comunicada de que iria para Guaíba:
— Vi (na Internet) que era uma
cidade pequena, com um lago lindo. Gostei. Tem muitas coisas bonitas. Já
trabalhei na Venezuela e em Honduras, em lugares bem mais complicados, com
muita pobreza.
Em 1º de fevereiro, Marlyn e as
outras cinco compatriotas foram instaladas na casa do centro de Guaíba, um
imóvel mobiliado de 198 metros quadrados. As médicas aprovaram. A casa tem três
quartos (todos eles com split), três banheiros (incluindo banheira), uma
biblioteca (forrada de enciclopédias), um salão de festas recém-concluído (com
churrasqueira), uma cozinha ampla e todos os utensílios e equipamentos
necessários (desde louça até freezer e TV). A prefeitura alugou a casa por R$
5,5 mil e banca água, luz e internet.
— A casa é muito boa. E ainda tem
a vantagem de morarmos todas juntas, como uma família — elogia Maritza Cañada
Castillo, 41 anos, que já trabalhou no Paquistão, na Bolívia e na Venezuela.
A casa pertence a Carmen Tejada e
seu marido, Telmo, que viviam no imóvel até a chegada das cubanas e mantêm uma
oficina mecânica na parte da frente do terreno. Para aproveitar a oportunidade
de alugar a casa, mudaram-se em caráter provisório para a residência de uma
parente. Acabaram virando amigos das médicas.
— São seis pessoas novas na
família. Já combinei de levá-las a jantares e festas da paróquia. Também estou
organizando a inscrição delas em uma academia. Quando elas vieram conhecer a
casa, eu disse o que tinha ao redor: mercado, farmácia. Quando mencionei a
academia, ficaram animadas e disseram que queriam — conta Carmen.
Médicas levam marmitas para fazer
a refeição no trabalho
A rotina das médicas começa às
6h, quando uma delas levanta mais cedo para preparar o café. O toque cubano no
cardápio são as tortillas de ovo. Às 6h30min, as demais saem da cama e vão para
a mesa. Todas começam a trabalhar às 8h. Ao meio-dia, pegam a marmita, aquecem
a comida no micro-ondas e fazem a refeição no próprio posto, com outros
funcionários. O expediente termina às 17h.
Elas se reencontram por volta das
18h. É a hora de contar as experiências do dia, de bater papo, de estudar e de
mexer no tablet fornecido pelo governo federal.
— Elas não gostam de TV. São mais
ligadas na internet — conta Carmen.
A única que sai todas as noites é
Marlyn. Às 19h, ela ganha a rua e caminha por uma hora e 20 minutos pela beira
do Guaíba. Perdeu 10 quilos desde a chegada:
— Estou fazendo a preparação
cardiovascular para quando começar a academia.
Cada noite, uma das médicas faz o
jantar, que será também o almoço, levado na vianda. Nos fins de semana, elas
arrumam a casa e passeiam. Costumam pegar o catamarã até o centro de Porto
Alegre, onde combinam encontros com cubanos de outras cidades, olham lojas de
Guaíba ou arrumam o cabelo em algum salão. Amigos já as levaram à Serra e ao
Litoral.
— Elas adoraram Gramado. Acharam
lindo. Encantam-se por coisas que para nós são simples, como a facilidade de
encontrar produtos de higiene — diz a diretora de saúde de Guaíba, Fabiani
Malanga.
A vida social gira em torno de
amigos brasileiros, como os donos do hotel onde ficaram antes de alugar a casa.
Lá, foram protagonistas da festa de Ano-Novo.
— Tivemos uma noite cubana. Elas
trouxeram colegas de Eldorado do Sul e de Porto Alegre, prepararam pratos típicos
e colocaram música de Cuba. Dançaram até as 3h. São pessoas animadas — diz
Katia Sperotto, 46 anos, proprietária do hotel.
Uma das principais vitrines
eleitorais da presidente Dilma Rousseff, o Mais Médicos nasceu, no ano passado,
debaixo de ataques de entidades médicas. Para essas agremiações, não faltam
profissionais no Brasil. Além disso, o fato de os participantes do programa
terem sido liberados de revalidar seus diplomas no país representaria um risco
à qualidade do atendimento.
— É um projeto demagógico e
eleitoreiro. São profissionais que vêm ocupar espaço dos brasileiros. Eles são
oferecidos como um milagre, como se o governo tivesse uma varinha de condão
para tirar o atendimento médico de uma cartola. Já temos 400 mil médicos no
Brasil e mais 17 mil são formados ao ano — critica Maria Rita de Assis Brasil,
vice-presidente do Sindicato Médico (Simers).
Quando ficou claro que os médicos
trazidos do Exterior seriam basicamente cubanos, o tom das críticas se elevou e
foi reforçado por grupos políticos que viam no Mais Médicos uma forma
encontrada pelo governo de fazer populismo eleitoral e financiar a ditadura dos
irmãos Castro.
Enquanto os médicos de outras
nacionalidades participantes do programa recebem uma bolsa mensal de R$ 10 mil,
os cubanos ganham cerca de R$ 1 mil. O grosso do dinheiro vai para o governo de
seu país. Os mais exaltados definem o acerto como trabalho escravo. No início
do mês, a cubana Ramona Matos Rodríguez virou notícia ao abandonar o programa,
com apoio do deputado ruralista Ronaldo Caiado (DEM). Ela disse que vai acionar
o governo brasileiro na Justiça do Trabalho.
A atitude de Ramona é quase
isolada até o momento. De 89 profissionais que abandonaram o Mais Médicos sem
justificativa, só quatro vieram de Cuba — em um universo de mais de 5 mil. As
médicas de Guaíba, por exemplo, garantem que a participação no programa é
interessante do ponto de vista financeiro. Para começar, dizem, o salário que
recebiam em Cuba continua a ser pago a suas famílias. Elas reconhecem que a remuneração
de R$ 1 mil por mês é baixa, mas lembram que não é só isso que recebem. Do
valor entregue pelo governo brasileiro, outros US$ 600 são depositados em uma
conta bancária, que pode ser acessada quando voltarem ao seu país. Para os
críticos, trata-se de uma forma de Cuba manter os médicos como reféns,
obrigando-os a retornar para ter acesso ao dinheiro. Para os profissionais,
acaba sendo um belo pé de meia.
Os benefícios recebidos incluem
moradia, transporte e, no caso das cubanas de Guaíba, um auxílio mensal
individual de R$ 500 para alimentação — a soma ultrapassa os R$ 3 mil mensais.
— Os preços aqui são altos, mas
como existem vários auxílios fica vantajoso. Mas o mais importante é o lado
humanitário e o dinheiro que vai para Cuba, o que ajuda na economia e na saúde,
que é gratuita — defende Marlene Muñoz Sánchez, 43 anos.
Esse tipo de discurso, sincero ou
ensaiado, é característico dos cubanos. Eles se dizem agradecidos por ter
podido estudar Medicina gratuitamente em seu país e afirmam que não o fizeram
para ganhar dinheiro, e sim para ajudar. Diante da afirmação de que estão sendo
explorados e vivendo na pobreza, reagem. Para eles, o estranho não é os médicos
terem um padrão de vida simples, mas terem um padrão de vida superior ao das
outras pessoas.
— No Brasil a gente nota uma
grande distância social dos médicos para os pacientes — diz Diurbys Díaz Utria,
34 anos.
Contato por e-mail e pelo
Facebock com familiares
A relação com os médicos
brasileiros, aliás, não é tranquila. Os cubanos sentem-se incomodados com os
ataques.
— Com os funcionários dos postos,
a relação é muito boa, mas com parte dos médicos, não. Alguns nos receberam
bem, mas outros não falam conosco nem nos olham — diz Diurbys.
Essa hostilidade, somada à
deserção de Ramona, motivou muitos dos cubanos a evitar a imprensa. Dos 30
médicos de Porto Alegre e dos 10 de Canoas, por exemplo, nenhum topou falar com
ZH.
— Eles estão fugindo de
entrevista de tudo que é jeito. Não topam nada. No início, teve uma exposição
muito grande, e eles resolveram se preservar — diz Marcelo Bósio, secretário da
Saúde de Canoas.
À dificuldade vivida nos postos
de saúde, com os colegas brasileiros, soma-se uma maior, de caráter pessoal: a
distância da família. As seis cubanas de Guaíba têm filhos, alguns deles
pequenos, que ficaram com parentes. O contato é por Facebook e e-mail. Para
chamadas por vídeo, é preciso que o familiar em Cuba vá até um centro de
comunicação, o que não custa barato.
— É a parte mais difícil. Mas não
tenho tristeza. Toda manhã, quando acordo, abro o e-mail e tem um "bom
dia" do meu marido ou dos meus filhos — conta Marlyn.
A saudade é aliviada, dizem as
cubanas, pela recepção oferecida por pacientes e amigos brasileiros. Fabiani Malanga,
a diretora de saúde da cidade, afirma que é comum a prefeitura receber
reclamações sobre médicos locais. É raro alguém elogiar. Mas isso tem
acontecido em relação às cubanas. Há alguns dias, Marlyn voltou faceira para
casa, com um creme e um livro presenteados por um paciente.
ZERO HORA
Mais médicos 22/02/2014 |
14h02