Barbosa, a
marionete do golpe, morreu pela boca.
por Miguel do Rosário
O escritor argentino Ricardo
Piglia, num de seus ensaios, propõe uma tese segundo a qual um conto oferece
sempre duas histórias. Uma delas acontece num descampado aberto, à vista do
leitor, e o talento do artista consiste em esconder a segunda história nos
interstícios da primeira.
Ministro Luís Roberto Barroso |
Esta é a razão do ridículo
destempero de Joaquim Barbosa. Esta é a razão pela qual Barbosa interrompeu o
voto do colega várias vezes e fez questão de, ao final deste, vociferar um
discurso raivoso e mal educado.
Barbosa sentiu o golpe.
Houve um momento em que Barbosa
praticamente se auto-acusou: “o que fizemos não é arbitrariedade”. Ora, o termo
não fora usado por Barroso. Barbosa, portanto, não berrava apenas contra seu
colega. Havia um oponente imaginário assombrando Barbosa, que não se encontrava
em plenário, mas ele sentiu sua presença enquanto ouvia Barroso ler,
tranquilamente, seu voto.
O oponente imaginário são os
milhares de brasileiros que vem se aprofundando cada vez mais nos autos da Ação
Penal 470, acompanhando os debates do Supremo Tribunal Federal, ajudando alguns
réus a pagar suas multas, dando entrevistas bem duras em que denunciam os erros
do julgamento, e constatando, perplexos, que houve, sim, uma série de erros
processuais e arbitrariedades.
Barroso contou duas histórias.
Uma delas, no primeiro plano, era seu voto. Um voto tranquilo e técnico. Só que
nada na Ação Penal 470 foi tranquilo e técnico, e aí entra a história
subterrânea, por trás do cavalheirismo modesto de Barroso.
E aí se explica a fúria de
Barbosa.
A história secreta contada por
Barroso, com uma sutileza digna de um escritor de suspense, de um Edgar Allan
Poe, com uma ironia só encontrada nos romances de Faulkner ou Guimarães Rosa, é
a denúncia da farsa.
Aos poucos, essa história
subterrânea virá à tona. Alguns observadores mais atentos já a pressentiram há
tempos.
O novo ministro, antes mesmo de
ingressar no STF, entendeu que há um muro de ódio e violência à sua frente,
construído ao longo de oito anos, cujos tijolos foram cimentados com
preconceito político, chantagens, vaidade e uma truculência midiática que só
encontra paralelo nas grandes crises dos anos 50 e 60, que culminaram com o
golpe de Estado.
Sabe o ministro que não é ele,
sozinho, que poderá desconstruir esse muro. Em entrevista a um jornal, o próprio
admitiu que estava assustado com a violência da qual já estava sendo vítima: o
médico de sua mulher, sem ser perguntado, disse a ela que não tinha gostado do
voto de seu marido, e suas filhas vinham sendo questionadas na escola por
colegas e professores.
O Brasil vive um tipo de fascismo
midiático cuja maior vítima (e algoz) é a classe média e os estamentos
profissionais que ela ocupa.
É a ditadura dos saguões dos
aeroportos, das salas de espera em consultórios médicos, dos shows da Marisa
Monte.
Nos últimos meses, eu tenho feito
alguns novos amigos, que tem me dado um testemunho parecido. Todos reclamam da
solidão. A mãe rodeada de filhos “coxinhas”. O pai que é assediado, às vezes
quase agredido, pelas filhas reacionárias. A executiva na empresa pública
isolada entre tucanos raivosos. Alguns, mais velhos, encaram a situação com bom
humor. Outros, mais jovens, vivem atordoados com as pancadas diárias que levam
de seus próximos.
No entanto, o PT é o partido
preferido dos brasileiros, ganha eleições presidenciais, aumenta presença no
congresso e pode ganhar novamente a presidência este ano, até mesmo no primeiro
turno.
Por que esta solidão se tanta
gente vota no partido?
Claro que voltamos à questão da
mídia, que influencia particularmente as camadas médias da sociedade, à
esquerda e à direita. A maioria da classe média tradicional, hoje, independente
da ideologia que professa, odeia o PT, idolatra Joaquim Barbosa, e lê os livros
sugeridos nos cadernos de cultura tradicionais.
Eu conheço um bocado de artistas.
Hoje são quase todos de direita, embora a maior parte se considere de esquerda.
Todos odeiam Dirceu, sem nem saber porque. E me olham com profunda perplexidade
quando eu tento argumentar. Como assim, parecem me perguntar, com olhos onde
vemos rapidamente nascer um ódio atávico, irracional, como assim você não odeia
Dirceu?
Eu tento conversar, com a mesma
calma de Barroso, mas não adianta muito. Eles reagem com agressividade e
intolerância.
Pessoas em geral pacatas se
transformam em figuras raivosas e vingativas. O humanismo, que tanto fingem
apreciar nos europeus, mandam às favas ao desejar que os réus petistas
apodreçam no pior presídio do Brasil.
Eu mesmo costumo usar os mesmos
termos de Barroso. “Respeito sua opinião”, eu digo. Às vezes até procuro
elogiar o interlocutor, numa tentativa ingênua e canhestra de quebrar a casca
de ódio que impede qualquer diálogo. Não adianta. Qual um bando de Barbosas,
eles respondem, quase sempre, com grosserias e sarcasmos.
Quantas vezes não vivi a mesma
situação de Barroso? Às vezes, inclusive, aceitei teses que não acreditava,
violentei-me, num esforço desesperado para transmitir uma pequena divergência,
uma singela ideia que foge ao script da mentalidade de um interlocutor cheio de
certezas.
Entretanto, a serenidade estóica
e elegante de Barroso significou uma grande vitória para nós, os solitários, os
que arrostamos as truculências diárias da mídia e de seu imenso, quase
infinito, exército de zumbis.
Porque encontramos um igual.
Encontramos alguém que sofre, que
tenta expor uma ideia diferente, e recebe de volta uma saraivada de golpes de
quem não aceita ser contestado.
Não confundamos, contudo,
elegância com covardia. Não se pode exigir a um homem que derrube sozinho uma
muralha desse calibre. Esse trabalho não é de Barroso. Será um esforço
coletivo, que já estamos empreendendo. Barroso encontrará forças em nossas
ideias.
Mesmo que ele tenha de fazer
algum recuo estratégico, como aliás já fez, ao condenar Genoíno, será para
avançar em seguida.
Mas a função de um juiz do STF
não é defender uma classe. Não é defender a rapaziada que frequenta o show da
Marisa Monte e lê os editoriais de Merval Pereira. Não é se tornar celebridade
ou “justiceiro”. A função de um juiz é ser justo e defender tanto as razões do
Estado acusador quanto os direitos dos réus.
Quando Getúlio deu um tiro em si
mesmo, ele deixou um recado, no qual há referências algo misteriosas a “forças”
que se desencadearam sobre ele.
Como que antevendo o que
continuaríamos a enfrentar, durante muito tempo, o velhinho ainda tentou, em
sua dolorosa despedida, nos consolar:
“Quando vos humilharem, sentireis
minha alma sofrendo ao vosso lado.”
E cá estamos, Getúlio, diante das
mesmas forças obscuras. Diante da mesma truculência, das mesmas
arbitrariedades, que dessa vez encontraram voz na figura, trágica ironia, de um
negro. Do primeiro negro que nós, o povo, nomeamos para o STF, mas que preferiu
se unir aos poderosos de sempre, aos donos do dinheiro, aos barões da mídia, à
turma do saguão do aeroporto…
É positivamente curioso como os
ministros da mídia demonstram auto-confiança, arrogância, desenvoltura. Gilmar
Mendes, Barbosa, Marco Aurélio Mello, dão entrevistas como se fizessem parte de
uma raça superior. São campeões de um STF triunfante, que prendeu os
“mensaleiros”.
Enquanto isso, os outros
ministros agem com humildade, discrição, prudência. Barroso lê seu voto com voz
quase trêmula, e pede reiteradas desculpas por cada mínima divergência. Nunca
se ouviu um ministro pedir tantas vênias como Barroso. Nunca se viu um juiz
fazer tantos elogios àquele mesmo que o destrata sem nenhuma preocupação quanto
à etiqueta de um tribunal.
Mas o que Barroso pode fazer? Não
faríamos o mesmo? A situação de Barroso é quase a de um sertanejo humilde,
argumentando em voz baixa diante de seu patrão.
Sintomático que Luiz Fux, que
aderiu também à Casa Grande, tenha citado Lampião para designar a “quadrilha
dos mensaleiros”. O mundo dá tantas voltas, e retorna ao mesmo lugar. Virgulino
Ferreira da Silva, o terror do Nordeste, o maior dos facínoras, quem diria,
seria comparado a José Dirceu! É o tipo de comparação que não dá para ouvir sem
darmos um sorriso triste e malicioso.
Não foi Virgulino igualmente o
maior herói do sertão? Não foi ele o maior símbolo das injustiças e
arbitrariedades que se abatiam, dia e noite, sobre um povo sofrido e miserável?
Evidentemente, não existe
comparação mais idiota. Dirceu é um homem de paz, que acreditou na democracia e
na política. Lampião foi um bandido que desistiu de qualquer solução política
ou pacífica para seus problemas.
Mas também Fux, sem disso ter
consciência, trouxe à baila uma história subterrânea, soterrada sob sua postura
covarde de um juiz submetido aos barões de sempre: Lampião provou ao Brasil que
não existe opressão sem resistência, mesmo que na forma de banditismo. Esta é a
lei mais antiga da humanidade. A resistência e o heroísmo nascem da opressão e
da arbitrariedade, como um filho nasce da mãe e do pai.
A campanha de solidariedade aos
réus petistas foi a prova disso. Mas não vai parar aí. Ao chancelar uma farsa
odiosa, arbitrária, truculenta e, sobretudo, mentirosa, o STF produziu milhares
de Virgulinos. Só que não são Virgulinos por serem bandidos ou violentos. São
Virgulinos exatamente pela razão oposta: a coragem de lutar de maneira pacífica
e democrática.
É a coragem, sempre, a grande
lição que o mais humilde dos cidadãos dá aos poderosos. É a coragem que faz
alguém se insurgir contra a opinião do ambiente de trabalho, da família, do
condomínio, dos saguões dos aeroportos, e assumir uma posição política
independente, inspirada unicamente em sua consciência.
É a coragem, enfim, que faz os
olhos de Barroso irradiarem um brilho de confiante serenidade. Sua voz pode
tremer, mas não por medo. Treme antes pelo receio de escorregar um milímetro no
fio da navalha por onde caminha, entre o desejo de falar duras verdades a um
tratante e a determinação de manter uma elegância absoluta.
Barroso sequer consegue usar o
pronome “seu” ao se referir a Barbosa, com medo de cometer um deslize verbal.
Se Barbosa fosse uma figura serena, amiga, Barroso não teria esse escrúpulo.
Tratando-se de um oponente sem caráter, sem moderação, e ao mesmo tempo tão
incensado e blindado pela mídia, Barroso tem de tomar um cuidado máximo. Tem de
tratá-lo com respeito até mesmo exagerado. Barroso sabe que Barbosa é vítima de
megalomania e arrogância messiânica, que sofre de uma espécie de loucura, uma
loucura perigosíssima, porque protegida pelos canhões da imprensa corporativa.
Ao contestar tão ofensivamente o
teor do voto de Barroso, ao acusá-lo, de maneira tão vil, Barbosa disparou um
tiro no próprio pé. Ganhará, ainda, um bocado de palmas dos saguões
aeroportuários, mas haverá mais gente erguendo a sombrancelha, desconfiada de
tanta fanfarronice e falta de modos.
Barroso deixou que Barbosa
morresse como um peixe, pela boca.
Foi a vitória da serenidade sobre
o destempero, da delicadeza sobre chauvinismo, do respeito à divergência sobre
a intolerância.
por Miguel do Rosário on
27/02/2014 – 4:25 am