Carta Aberta ao Excelentíssimo Ministro do Supremo
Tribunal Federal Sr. Gilmar Ferreira Mendes
Por Victor Hugo de Araujo Barbosa
A notícia “Doações ‘sabotam’ cumprimento de pena, diz Gilmar
Mendes a Suplicy” veiculada no Blog do Camarotti (http://g1.globo.com/platb/blog-do-camarotti/)
em 14 de fevereiro de 2014, informa que em carta enviada ao Senador Eduardo
Suplicy (PT-SP), Vossa Excelência teceu duras críticas aos indivíduos que
doaram valores para o pagamento das penas de multas de alguns dos condenados na
Ação Penal n. 470, filiados ao Partido dos Trabalhadores.
Através de cópia da missiva que o jornalista teve acesso,
percebe-se que em resposta a questionamentos formulados pelo Senador Eduardo
Suplicy, Vossa Excelência, sob a justificativa de se pautar pela Constituição
Federal e pelo respeito à República, suscitou a aplicação do princípio da
responsabilidade pessoal (ou da pessoalidade, ou da intranscendência) da pena,
prevista no artigo 5º, inciso XLV, de nossa Carta Constitucional, para
questionar a origem, a forma e a destinação dos valores doados aos apenados.
Em seguida, Vossa Excelência passa a demandar
esclarecimentos a respeito “do ressarcimento ao erário público das vultosas
cifras desviadas”, citando inclusive o nome de um dos réus (Delúbio Soares) de
forma pejorativa e irônica.
Por fim, concluindo a carta ao senador petista, Vossa
Excelência associa a realização das doações para o pagamento das penas de multa
a uma medida que contribui para a impunidade, declarando que elas sabotam e
ridicularizam o cumprimento das penas dos réus sentenciados.
Eminente Ministro, por ser Ministro do Supremo Tribunal
Federal, era de se esperar maior conhecimento técnico e maior rigor em suas
manifestações, sob pena de desinformar os jurisdicionados e, no mínimo, de
afrontar nosso direito.
Com toda a certeza Vossa Excelência tem conhecimento do
debate jurídico que existe a respeito da constitucionalidade da pena de multa.
Em virtude mesmo do dispositivo constitucional citado (artigo 5º, inciso XLV),
sabe-se que vigora em nosso ordenamento um valor que se irradia para todas as
leis penais, determinando que a pena a ser cumprida nunca deverá passar da
pessoa do condenado, isto é, só poderá ser cumprida por este. Tanto é assim
que, por exemplo, falecendo o réu, o processo ou a pena são extintas (art. 107,
inc. I, do Código Penal), não sendo seus sucessores responsabilizados a pagar a
pena de multa.
Ocorre que, em relação à pena de multa, absolutamente nada
assegura que será paga pela pessoa exclusiva do condenado.
Como assegurar que o réu pagará de seu próprio bolso a pena
de multa? Não há como, o que é uma evidente distorção ao princípio da
responsabilidade pessoal.
Luigi Ferrajoli, italiano que lançou as bases do garantismo,
raciocinou em sua obra Direito e Razão (p. 334) que “a pena pecuniária é uma
pena aberrante sob vários pontos de vista. Sobretudo porque é uma pena
impessoal, que qualquer um pode saldar”.
Pensemos na maioria esmagadora dos réus condenados em nosso
país, em geral pessoas de poucas posses, sem qualquer perspectiva de quitar
suas dívidas junto à Justiça. A quem recorrem? A seus familiares, a seus
amigos, ao traficante, ao agiota. Trocam uma pena por outra, muitas vezes. A
pena de multa, assim, não raro, passa da pessoa do condenado e estigmatiza aqueles
ao seu redor.
Vossa Excelência caçoa da boa-vontade de inúmeras pessoas
que por ideologia, por um ideal, por boa-fé, resolveram arcar com esse ônus
suportado por pessoas que foram julgadas num rito processual que causa espanto
a qualquer jurista mais comedido.
Nenhuma lei impede cidadãos de doarem valores a outro. Não
importa se a finalidade é pagar uma pena de multa. Não há lei proibindo esta
conduta humana. Logo, como Vossa Excelência sabe, por invocar inclusive o
“Império da Lei” em sua missiva, não é proibido aos doadores exercerem seu
devido direito.
Que se façam as apurações do manejo dessas doações. Aliás,
isso não será problema, ante o clima de desconfiança mccarthiana que Vossa
Excelência implantou nas instituições com sua declaração infundada (pois sem
lastro probatório algum) a respeito de possível lavagem de dinheiro nas
doações.
De qualquer maneira, como exposto, não há qualquer
fundamento que Vossa Excelência possa argumentar que impeça um brasileiro
inconformado com os rumos do julgamento da AP 470 em doar o quanto achar
necessário para o pagamento das penas de multa dos condenados filiados ao PT.
Para penas desproporcionais, já que completamente
desvinculadas do critério jurídico para a fixação das penas de multa (condição
financeira do réu), os doadores encontraram uma resposta razoável,
sacrificando-se para mostrar seu apoio aos condenados.
Eles não sabotam e ridicularizam a Justiça. Eles se
comprometem em conferir alguma justiça aos condenados, aquela mesma que faltou
e vem faltando aos sentenciados no tratamento que eles recebem de alguns de
seus julgadores.
* Victor Hugo de Araujo Barbosa, 25 anos, é assistente de
Juiz de Direito (1º grau), envolvido diariamente com a resolução de processos
criminais, sem transmissão na TV Justiça.
Gilmar Mendes |
- See more at:
http://www.ocafezinho.com/2014/02/14/leitor-manda-carta-aberta-a-gilmar-mendes/#sthash.JmzljqjY.dpuf