domingo, 15 de junho de 2014

A polêmica saga do exoesqueleto que apareceu invisível



Junho 14, 2014 
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por Tatiana Nahas

O tapete colorido que forrou o gramado durante a cerimônia de abertura da Copa do Mundo de 2014 foi enrolado fatia a fatia. Os jogadores entraram em campo para o aquecimento. Urros para os brasileiros, vaias para os croatas. Locutores se esgoelando em estatísticas, escalações, comparações e superstições. E eu ansiosa esperando falarem do exoesqueleto. O pontapé inicial da copa, que seria dado por um paraplégico equipado com uma veste robótica comandada por seu cérebro, estava prestes a acontecer e nada de comentarem o que seria isso, de explicarem como funcionaria. A ciência estava prestes a participar do show da copa, mas estava claro que divulgação científica não entraria em campo.
Às 16h47 o pontapé cientifico foi narrado retroativamente na SportTV. Um vídeo ridiculamente rápido foi mostrado. O exoesqueleto estava no canto do canto do canto do gramado. Deu um toque pífio numa bola colocada junto a seu pé. E foi tudo. Nem dava para saber em que momento da abertura o tal pontapé ocorreu. Soube depois que na transmissão da Globo o episódio tinha aparecido em tela dividida, com Galvão Bueno falando da chegada do ônibus da seleção brasileira (veja vídeo da própria emissora). No final desse vídeo dá para ver que o tal pontapé ocorreu ainda durante a cerimônia de abertura:


Ou seja, o exoesqueleto não decolou como planejado (embora Nicolelis tenha comemorado com um “We did it!!!!” logo na sequência do feito). A FIFA, dona do show, decidiu que esse número não faria parte do espetáculo. E colocou-o para escanteio. Mas por que o espaço cedido foi essa aparição relâmpago num cantinho do campo bem longe das câmeras?
Corta para o passado recente. No início do ano, o Portal da Copa, do governo federal, apresentou uma reportagem sobre o projeto encabeçado por Nicolelis em que ele explica os trabalhos que estavam em curso, ressaltando as inovações do mesmo, e como seria o pontapé inicial:


Pouco depois, foi elaborado esse outro material em que Nicolelis mostra o exoesqueleto já pronto, descreve o que seria apresentado na abertura do mundial e apresenta sua visão sobre o papel social da ciência:



A expectativa do pontapé científico, porém, não se restringiu aos veículos “oficiais” de divulgação. O exoesqueleto de Nicolelis pouco a pouco ganhou os holofotes (mix de exemplos em veículos nacionais e internacionais: BBC Brasil;Daily MailThe GuardianO Globorevista PiauíDiscover MagazinePortal G1*Folha de São Paulo). Até o grupo Teatro Oficina fez sua referência ao pontapé que estava prestes a ocorrer – vídeo.



Mas tanto quanto realizar conquistas em ciência de ponta, Nicolelis gosta de apresentar seus belos resultados de pesquisa de maneira espetacular. Foi assim, por exemplo, quando em 2008 decidiu encenar o que chamou de a little moon walk. Uma macaca previamente treinanda corria em uma esteira elétrica em um laboratório na Duke University, nos EUA, enquanto os sinais elétricos captados de seus neurônios por meio de eletrodos conectados a um computador comandavam o movimento de um robô em esteira similar num laboratório na Kyoto University, no Japão. Imagens dos movimentos do robô eram projetadas para a macaca, que podia acompanhar em tempo real o desempenho de seu comandado. Num dado momento, a esteira da macaca foi desligada e os movimentos físicos dela pararam. Mas a macaca continuava a se mover em pensamento e a transmissão desses sinais neuronais para o robô fez com que esse seguisse o movimento.
O robô havia se tornado uma extensão do cérebro da macaca. O cérebro da macaca era capaz de controlar o movimento dos seus membros e também o “membro adicional” que havia incorporado a seus domínios. Foi um dos pontos altos da pesquisa na área de interfaces cérebro-máquina (mais sobre esse e outros trabalhos de Nicolelis aqui). E foi realmente sensacional! Lembro de uma palestra do neurocientista a que assisti em 2010 em uma escola de São Paulo em que ele, orgulhoso e divertido, contou o que respondeu quando perguntado porque tinha escolhido fazer o troço transcontinental, se a beleza e a importância do que ele conseguiu demonstrar com o experimento seriam as mesmas se robô e macaca estivessem na sala em frente à outra: “algumas coisas a gente faz… just for fun“.
Quem leu seu livro Muito além do nosso eu não se surpreende com essa atitude. Não se trata de um livro de divulgação científica, dada a densidade de muitos trechos mais acessíveis aos “iniciados”. Mas é um excelente livro para se compreender o processo de construção do conhecimento científico. Para tomar conhecimento de como uma descoberta leva a outra, como uma pergunta pode levar a outra descoberta, como a inovação tecnológica e a ousadia (“inovação mental”) são fundamentais para que novos passos sejam dados, como a comunicação científica especializada é imprescindível nesse processo de construção conjunta do conhecimento. No livro em que traça sua trajetória científica desde os tempos de estudante na Faculdade de Medicina da USP até o presente, Nicolelis acaba por contar muito da história da Neurociência.
Miguel Nicolelis
Nesse processo, põe especial ênfase nos homens que foram particularmente ousados e/ou “espetaculosos”. É o caso do neurofisiologista, filósofo e escritor americano John Cunningham Lilly, decidido a criar um novo paradigma que permitisse unir a neurofisiologia com a psicologia experimental. Artistas do futebol, como Mané Garrincha, e Santos Dumont, “o homem cujo corpo era um avião” e nitidamente seu grande ídolo, merecem referências constantes nessa narração. À página 321, Nicolelis escreve aquilo que talvez gostaria que fosse escrito hoje sobre o pontapé inicial de seu exoesqueleto:

Naquela fria manhã de outono, Alberto Santos Dumont, um brasileiro baixinho e impecavelmente trajado, desafiou o protocolo das descobertas científicas ao realizar um feito tão contrário à ortodoxia acadêmica da época que mesmo hoje ele causaria espanto nesses mesmos restritos circuitos.
Desta feita, porém, o iminente espetáculo foi cercado de críticas. Alguns exemplos: matéria na revista Piauí e na revista Ciência Hoje**. As críticas foram furiosamente rebatidas por Nicolelis em seu perfil no Twitter no esquema bate-boca de boteco. Só que as críticas não se restringiram aos “colonistas” da Falha de SP e do Estadinho, como foram ironizados por Nicolelis os jornalistas da Folha de São Paulo e do Estadão.  Vieram também de além-mar, lá do “primeiro mundo”, como nessa matéria do MIT Technology Review e nessa outra na Wired. O cerne da polêmica científica estava (está) em dois pontos principais: na inovação tecnológica do projeto Walk Again


e na espetacularização de achados científicos antes de sua revisão e aprovação por pares. Vejamos cada ponto.
A interface cérebro-máquina-cérebro – No contexto da neuroengenharia como um dos principais desdobramentos tecnológicos da Neurociência, o exoesqueleto criado no Projeto Walk Again não é o único existente que é comandado pelo cérebro do usuário (um exemplo aqui, outro aqui, outro aqui). Então qual a inovação do exoesqueleto de Nicolelis, cientista pioneiro nessa área de pesquisa? O feedback sensorial. A ideia é a seguinte: depois de passarmos por um período de aprendizado, nosso cérebro armazena uma espécie de programa motor que dá conta de controlar esses movimentos já aprendidos realizando apenas pequenas correções. Assim, andar é um dos programas motores que temos, bem como correr, saltar e, no caso da Daiane dos Santos, executar um duplo carpado. O mesmo programa motor é acionado a cada vez que caminhamos, mas como às vezes caminhamos na calçada cheia de desníveis ou na areia ou em uma superfície com obstáculos diversos, nosso cérebro vai corrigindo os movimentos do programa básico a partir do retorno sensorial (principalmente visual e tátil) que recebe. Essa correção é feita durante a própria execução dos movimentos sem nem nos darmos conta.
Assim, andar (de preferência sem tropeçar) envolve esse feedback sensorial para o cérebro, que não é contemplado pelas interfaces cérebro-máquina já desenvolvidas. Nicolelis tem o objetivo de desenvolver uma interface cérebro-maquina-cérebro. Para isso, o exoesqueleto do projeto Walk Again, que na verdade ainda é um protótipo disso, conta com sensores táteis nos pés do robô que encaminham essa informação para os braços do usuário do exoesqueleto (um resumo nesse infográfico). Porém, o retorno sensorial propiciado ainda precisa de muito aprimoramento para realmente ser caracterizado como feedback. Não permite correções de movimentos até porque o exoesqueleto ainda sequer é capaz de realizar muitos movimentos. Por enquanto está centrado em alguns programas básicos, como “comece a caminhar” e “pare de caminhar”. Nesse contexto, o que o feedback desse exoesqueleto proporciona ao usuário é a sensação de caminhada, a sensação de que é seu próprio pé que está tocando o chão e não o pé de um robô alheio a ele.
Isso não é pouca coisa, como podemos ver pela reação de uma moça paraplégica ao testar o exoesqueleto desenvolvido no projeto comandado por Nicolelis nesse vídeo divulgado por ele na página do projeto no Facebook. Mas ainda é algo distante de restabelecimento dos movimentos. Isso tudo é normal no processo de construção do conhecimento científico. Quer dizer que a pesquisa deu um passo e está caminhando para dar os demais.
Outro ponto: muito antes do feedback sensorial, importa como os sinais cerebrais são captados. Há duas formas principais: uma touca de eletrodos que cobre a cabeça do usuário e envia os sinais elétricos captados para o computador (ou seja, um registro eletroencefalográfico – ECG) ou um bloco de microeletrodos implantados diretamente no cérebro, como Nicolelis fez nos modelos animais com que vem trabalhando. Nicolelis, aliás, se especializou em desenvolver dispositivos desse tipo cada vez mais precisos, ou seja, que captam sinais concomitantes de números cada vez maiores de neurônios. O registro das tempestades cerebrais, como gosta de chamar, é um dos orgulhos de Nicolelis narrado em seu livro e em diversas palestras, como nessa TED-talk.
Além disso, sua equipe se destaca também no aprimoramento do sistema de leitura e interpretação desses sinais, conseguindo excluir cada vez mais ruídos ao mesmo tempo em que amplia o poder dos modelos matemáticos de analisar um número crescente de dados concomitantes. Mas ainda não está pronto para implantar em humanos, mais pesquisas são necessárias, como conta Nicolelis nessa entrevista à Scientific American pouco antes da abertura da Copa. Ou seja, a técnica escolhida para o pontapé inicial da copa tem a vantagem de ser não invasiva, mas a desvantagem de ser muito menos precisa, como já defendido pelo próprio Nicolelis.
Então, de novo: a pesquisa deu um passo e está caminhando para dar os demais. Mas será que esse primeiro passo era algo tão estonteante para ser alardeado da forma como Nicolelis vem fazendo? E, ainda que fosse, essa é uma boa forma de divulgar a ciência?


A ciência no palco – A postura de Nicolelis e de outros cientistas que flertam com a mídia é muito criticada por seus pares. O principal argumento contrário a isso é que a divulgação precoce de resultados científicos pode dar a impressão de “cura milagrosa” para muitos e até estimular absurdos como o “turismo de células tronco” que ocorre na China.  Mas é ruim que a ciência apareça para o público em grandes exibições? Essa matéria no The Atlantic faz uma boa ponderação a respeito, resgatando a relação mais próxima entre ciência e público que ocorria no início da Royal Society. Também já escrevi um pouco sobre isso na coluna de estreia na revista Quanta. Porém, uma coisa é aproximar a ciência do público, inclusive colocando-a num “palco” (um bom exemplo atual é o World Science Festival). Outra coisa é promover um espetáculo. Vide o exemplo vergonhoso da “bactéria do arsênio” que, como prematuramente alardeado pela Nasa, iria redefinir a química da vida (um belo apanhado dessa novela aqui e um resumo aqui).
Corta para hoje. O prometido espetáculo não foi muito espetacular. Após o chute tímido, muitas matérias vêm divulgando os passos do projeto Walk Again (um exemplo na mídia nacional  e outro na internacional). Ontem Nicolelis comemorou no Twitter que os vídeos do projeto passaram dos 2 milhões de visitas, sendo uma vitória o Brasil estar debatendo neurociência durante a Copa. E é mesmo. O que mais me alegrou ontem quando entrei na sala de aula foi encontrar os alunos comentando a abertura da Copa e o jogo do Brasil e muitos falando do paraplégico que tinha dado um pontapé usando um robô controlado pelo cérebro e querendo saber como aquilo funcionava.
Mas muitas interrogações continuam sendo lançadas, especialmente contrastando o que foi atingido até agora com o tanto que custou para os cofres públicos num país que não valoriza a ciência como deveria e, portanto, deixa uma fatia estreita do orçamento para a pesquisa:
O valor investido na construção do protótipo chama a atenção pela grandiosidade. É de três a dez vezes maior do que o valor que qualquer um dos 37 Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs) da área de saúde recebeu do CNPq nos últimos cinco anos, por exemplo. E R$ 13 milhões maior do que o valor total do último edital lançado pela Finep para o desenvolvimento de tecnologias de auxílio a deficientes (de R$ 20 milhões), que deverá beneficiar dezenas de projetos em todo o País. (texto do jornalista Herton Escobar no Estadão)
A Finep, agência de financiamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, colocou R$ 33 milhões no exoesqueleto. Nada errado nisso: trata-se de uma agência de inovação, cuja missão é justamente investir em projetos ousados, assumindo os riscos, que de resto são inerentes a todos os projetos científicos. Mas é inevitável comparar: o edital recentemente lançado por outras agências do mesmo ministério para a criação de Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia anunciou que proverá no máximo R$ 10 milhões para cada um dos grupos que vencerem uma acirrada concorrência. Como esses R$ 10 milhões se destinam a grupos que associam vários pesquisadores independentes, cada pesquisador contará com algo em torno de R$ 1 milhão para o seu projeto. Três a um foi a vitória da seleção brasileira; 33 a 1 foi a vitória de Nicolelis sobre a comunidade científica brasileira. (texto do neurocientista Roberto Lent no Globo)
acho que a impressão final é que os 33 milhões de reais da Finep aprovados pela Dilma para o Andar De Novo compraram, até agora, apenas 3 segundos de televisão. Espero que, no final, seja bem mais do que isso, claro. Mas devo dizer que o guindaste que, sustentado por dois ajudantes, possibilitou ao rapaz dar um toque na bola colocada aos seus pés de fato ficou muuuuuito aquém da expectativa tão alardeada. Por outro lado, que fique claro: tenho PLENA confiança no que Miguel é capaz de fazer. Isso ele já demonstrou em seus artigos científicos. No que isso dá quando aplicado às pressas para fazer propaganda para o governo, aí são outros quinhentos. (texto da neurocientista Suzana Herculano-Houzel em sua página no Facebook)
Paralelamente, Nicolelis começou um embate com a FIFA, que retrucou. No meio do bate-boca, um pouco do foco no ideal científico da coisa toda vem se perdendo.
Andar de novo. E também correr e dançar e escalar e recobrar o controle da bexiga urinária – Há muitas formas de reabilitação sendo pesquisadas. Algumas enfocam exoesqueletos, como é o caso de Nicolelis e outros exemplos linkados acima. Mas há ainda outras estratégias, como essa desenvolvida na Universidade de Berkley que propicia que o paraplégico vista um robô e recobre muitos movimentos. Ou essa prótese, desenvolvida na Escola Politécnica Federal de Lausanne, na Suíça, que oferece ao paciente a sensação de tato ao ser ligada aos nervos do braço. Ou essa outra técnica, desenvolvida na Unifesp, que usa um neromodulador implantado no corpo do paciente para estimular os nervos responsáveis pelos movimentos das pernas e pelo controle da bexiga e do reto. Ou essa perna biônica controlada pelo cérebro.
Minha predileta, porém, é a pesquisa encabeçada por Hugh Herr, do MIT. A TED-talk abaixo é emocionante. Nela, Herr apresenta resultados incríveis do desenvolvimento de membros robóticos cada vez mais funcionais e expõe a premissa que guia seu trabalho: “não consigo aceitar o fato de que o homem pode quebrar”. Parece claro que Nicolelis também tem isso em mente, só que acaba colocando muito de seu foco na quebra de recordes, em estar na ponta, em fazer o impossível. Penso que Herr mostra que tudo isso pode ser conseguido de forma mais bela. Porque competir é humano, mas melhorar as condições de vida das pessoas com beleza e serenidade é mais. Estou com os gregos e com Vinícius: beleza é fundamental!



Miguel Nicolelis
  1. Neurocientista
  2. Miguel Angelo Laporta Nicolelis é um médico e cientista brasileiro. É filho da escritora Giselda Laporta Nicolelis. Foi considerado um dos 20 maiores cientistas do mundo no começo da década passada, segundo a revista "Scientific American". Wikipédia

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TATIANA NAHAS  (CV Lattes)
Sou uma bióloga apaixonada pela biologia e pela multiplicidade inerente a esse campo do conhecimento. Fiz um mestrado em Neurociências e uma especialização em Divulgação Científica. Meu interesse é a comunicação da ciência, tanto por meio do ensino, quanto via divulgação científica.
Além de editar o Ciência na Mídia, participo da administração da versão em português doResearchBlogging, um site que agrega postagens de pesquisas revisadas por pares.
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*O endereço não existe na globo.com???

**http://cienciahoje.uol.com.br/noticias/2014/06/lance-polemico%20 -O item que você solicitou não existe neste servidor ou não pode ser servido.