Junho 14, 2014
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por Tatiana Nahas
O tapete colorido que forrou o gramado durante a cerimônia de abertura da
Copa do Mundo de 2014 foi enrolado fatia a fatia. Os jogadores entraram em
campo para o aquecimento. Urros para os brasileiros, vaias para os croatas.
Locutores se esgoelando em estatísticas, escalações, comparações e
superstições. E eu ansiosa esperando falarem do exoesqueleto. O pontapé inicial
da copa, que seria dado por um paraplégico equipado com uma veste robótica
comandada por seu cérebro, estava prestes a acontecer e nada de comentarem o
que seria isso, de explicarem como funcionaria. A ciência estava prestes a
participar do show da copa, mas estava claro que divulgação científica não
entraria em campo.
Às 16h47 o pontapé cientifico foi narrado retroativamente na SportTV. Um
vídeo ridiculamente rápido foi mostrado. O exoesqueleto estava no canto do
canto do canto do gramado. Deu um toque pífio numa bola colocada junto a seu
pé. E foi tudo. Nem dava para saber em que momento da abertura o tal pontapé
ocorreu. Soube depois que na transmissão da Globo o episódio tinha aparecido em
tela dividida, com Galvão Bueno falando da chegada do ônibus da seleção
brasileira (veja vídeo da
própria emissora). No final desse vídeo dá para ver que o tal pontapé ocorreu
ainda durante a cerimônia de abertura:
Ou seja, o exoesqueleto não decolou como planejado (embora Nicolelis tenha
comemorado com um “We did it!!!!” logo
na sequência do feito). A FIFA, dona do show, decidiu que esse número não faria
parte do espetáculo. E colocou-o para escanteio. Mas por que o espaço cedido
foi essa aparição relâmpago num cantinho do campo bem longe das câmeras?
Corta para o passado recente. No início do ano, o Portal da
Copa, do governo federal, apresentou uma reportagem sobre
o projeto encabeçado por Nicolelis em que ele explica os trabalhos que estavam
em curso, ressaltando as inovações do mesmo, e como seria o pontapé inicial:
Pouco depois, foi elaborado esse outro material em que Nicolelis mostra o
exoesqueleto já pronto, descreve o que seria apresentado na abertura do mundial
e apresenta sua visão sobre o papel social da ciência:
A expectativa do pontapé científico, porém, não se restringiu aos
veículos “oficiais” de divulgação. O exoesqueleto de Nicolelis pouco a pouco
ganhou os holofotes (mix de exemplos em veículos nacionais e
internacionais: BBC Brasil;Daily Mail; The Guardian; O Globo; revista Piauí; Discover Magazine; Portal G1*; Folha de São Paulo).
Até o grupo Teatro Oficina fez sua referência ao pontapé que estava prestes a
ocorrer – vídeo.
Mas tanto quanto realizar conquistas em ciência de ponta, Nicolelis gosta
de apresentar seus belos resultados de pesquisa de maneira espetacular. Foi
assim, por exemplo, quando em 2008 decidiu encenar o que chamou de a
little moon walk. Uma macaca previamente treinanda corria em uma esteira
elétrica em um laboratório na Duke University, nos EUA, enquanto os sinais
elétricos captados de seus neurônios por meio de eletrodos conectados a um
computador comandavam o movimento de um robô em esteira similar num laboratório
na Kyoto University, no Japão. Imagens dos movimentos do robô eram projetadas
para a macaca, que podia acompanhar em tempo real o desempenho de seu
comandado. Num dado momento, a esteira da macaca foi desligada e os movimentos
físicos dela pararam. Mas a macaca continuava a se mover em pensamento e a
transmissão desses sinais neuronais para o robô fez com que esse seguisse o
movimento.
O robô havia se tornado uma extensão do cérebro da macaca. O cérebro da
macaca era capaz de controlar o movimento dos seus membros e também o “membro
adicional” que havia incorporado a seus domínios. Foi um dos pontos altos da
pesquisa na área de interfaces cérebro-máquina (mais sobre esse e outros
trabalhos de Nicolelis aqui).
E foi realmente sensacional! Lembro de uma palestra do neurocientista a que
assisti em 2010 em uma escola de São Paulo em que ele, orgulhoso e divertido,
contou o que respondeu quando perguntado porque tinha escolhido fazer o troço
transcontinental, se a beleza e a importância do que ele conseguiu demonstrar
com o experimento seriam as mesmas se robô e macaca estivessem na sala em
frente à outra: “algumas coisas a gente faz… just for fun“.
Quem leu seu livro Muito além do nosso eu não
se surpreende com essa atitude. Não se trata de um livro de divulgação
científica, dada a densidade de muitos trechos mais acessíveis aos “iniciados”.
Mas é um excelente livro para se compreender o processo de construção do
conhecimento científico. Para tomar conhecimento de como uma descoberta leva a
outra, como uma pergunta pode levar a outra descoberta, como a inovação tecnológica
e a ousadia (“inovação mental”) são fundamentais para que novos passos sejam
dados, como a comunicação científica especializada é imprescindível nesse
processo de construção conjunta do conhecimento. No livro em que traça sua
trajetória científica desde os tempos de estudante na Faculdade de Medicina da
USP até o presente, Nicolelis acaba por contar muito da história da
Neurociência.
Miguel Nicolelis |
Nesse processo, põe especial ênfase nos homens que foram particularmente
ousados e/ou “espetaculosos”. É o caso do neurofisiologista, filósofo e
escritor americano John Cunningham Lilly, decidido a criar um novo paradigma
que permitisse unir a neurofisiologia com a psicologia experimental. Artistas
do futebol, como Mané Garrincha, e Santos Dumont, “o homem cujo corpo era um
avião” e nitidamente seu grande ídolo, merecem referências constantes nessa
narração. À página 321, Nicolelis escreve aquilo que talvez gostaria que fosse
escrito hoje sobre o pontapé inicial de seu exoesqueleto:
Naquela fria manhã de outono, Alberto Santos Dumont, um brasileiro
baixinho e impecavelmente trajado, desafiou o protocolo das descobertas
científicas ao realizar um feito tão contrário à ortodoxia acadêmica da época
que mesmo hoje ele causaria espanto nesses mesmos restritos circuitos.
Desta feita, porém, o iminente espetáculo foi cercado de críticas. Alguns
exemplos: matéria na revista Piauí e
na revista Ciência Hoje**.
As críticas foram furiosamente rebatidas por Nicolelis em seu perfil no Twitter
no esquema bate-boca de boteco. Só que as críticas não se restringiram
aos “colonistas” da Falha de SP e do
Estadinho, como foram ironizados por Nicolelis os
jornalistas da Folha de São Paulo e do Estadão. Vieram também de
além-mar, lá do “primeiro mundo”, como nessa matéria do MIT Technology Review e
nessa outra na Wired. O cerne da polêmica
científica estava (está) em dois pontos principais: na inovação tecnológica
do projeto Walk Again
e na espetacularização de achados científicos antes de sua revisão e aprovação por pares. Vejamos cada ponto.
e na espetacularização de achados científicos antes de sua revisão e aprovação por pares. Vejamos cada ponto.
A interface cérebro-máquina-cérebro – No contexto da
neuroengenharia como um dos principais desdobramentos tecnológicos da
Neurociência, o exoesqueleto criado no Projeto Walk Again não é o único
existente que é comandado pelo cérebro do usuário (um exemplo aqui,
outro aqui, outro aqui). Então qual a inovação do
exoesqueleto de Nicolelis, cientista pioneiro nessa área de pesquisa? O
feedback sensorial. A ideia é a seguinte: depois de passarmos por um período de
aprendizado, nosso cérebro armazena uma espécie de programa motor que dá conta
de controlar esses movimentos já aprendidos realizando apenas pequenas
correções. Assim, andar é um dos programas motores que temos, bem como correr,
saltar e, no caso da Daiane dos Santos, executar um duplo carpado. O mesmo
programa motor é acionado a cada vez que caminhamos, mas como às vezes
caminhamos na calçada cheia de desníveis ou na areia ou em uma superfície com
obstáculos diversos, nosso cérebro vai corrigindo os movimentos do programa
básico a partir do retorno sensorial (principalmente visual e tátil) que
recebe. Essa correção é feita durante a própria execução dos movimentos sem nem
nos darmos conta.
Assim, andar (de preferência sem tropeçar) envolve esse feedback
sensorial para o cérebro, que não é contemplado pelas interfaces
cérebro-máquina já desenvolvidas. Nicolelis tem o objetivo de desenvolver uma
interface cérebro-maquina-cérebro. Para isso, o exoesqueleto do projeto Walk
Again, que na verdade ainda é um protótipo disso, conta com sensores táteis nos
pés do robô que encaminham essa informação para os braços do usuário do
exoesqueleto (um resumo nesse infográfico).
Porém, o retorno sensorial propiciado ainda precisa de muito aprimoramento para
realmente ser caracterizado como feedback. Não permite correções de movimentos
até porque o exoesqueleto ainda sequer é capaz de realizar muitos movimentos.
Por enquanto está centrado em alguns programas básicos, como “comece a caminhar”
e “pare de caminhar”. Nesse contexto, o que o feedback desse exoesqueleto
proporciona ao usuário é a sensação de caminhada, a sensação de que é seu
próprio pé que está tocando o chão e não o pé de um robô alheio a ele.
Isso não é pouca coisa, como podemos ver pela reação de uma moça
paraplégica ao testar o exoesqueleto desenvolvido no projeto comandado por
Nicolelis nesse vídeo divulgado por
ele na página do projeto no Facebook. Mas ainda é algo distante de
restabelecimento dos movimentos. Isso tudo é normal no processo de construção
do conhecimento científico. Quer dizer que a pesquisa deu um passo e está
caminhando para dar os demais.
Outro ponto: muito antes do feedback sensorial, importa como os sinais
cerebrais são captados. Há duas formas principais: uma touca de eletrodos que
cobre a cabeça do usuário e envia os sinais elétricos captados para o
computador (ou seja, um registro eletroencefalográfico – ECG) ou um bloco de
microeletrodos implantados diretamente no cérebro, como Nicolelis fez nos
modelos animais com que vem trabalhando. Nicolelis, aliás, se especializou em
desenvolver dispositivos desse tipo cada vez mais precisos, ou seja, que captam
sinais concomitantes de números cada vez maiores de neurônios. O registro das
tempestades cerebrais, como gosta de chamar, é um dos orgulhos de Nicolelis
narrado em seu livro e em diversas palestras, como nessa TED-talk.
Além disso, sua equipe se destaca também no aprimoramento do sistema de
leitura e interpretação desses sinais, conseguindo excluir cada vez mais ruídos
ao mesmo tempo em que amplia o poder dos modelos matemáticos de analisar um
número crescente de dados concomitantes. Mas ainda não está pronto para
implantar em humanos, mais pesquisas são necessárias, como conta
Nicolelis nessa entrevista à
Scientific American pouco antes da abertura da Copa. Ou seja, a técnica
escolhida para o pontapé inicial da copa tem a vantagem de ser não invasiva,
mas a desvantagem de ser muito menos precisa, como já defendido pelo próprio
Nicolelis.
Então, de novo: a pesquisa deu um passo e está caminhando para dar os
demais. Mas será que esse primeiro passo era algo tão estonteante para ser
alardeado da forma como Nicolelis vem fazendo? E, ainda que fosse, essa é uma
boa forma de divulgar a ciência?
Corta para hoje. O prometido espetáculo não foi muito espetacular. Após o
chute tímido, muitas matérias vêm divulgando os passos do projeto Walk Again
(um exemplo na
mídia nacional e outro na
internacional). Ontem Nicolelis comemorou no Twitter que
os vídeos do projeto passaram dos 2 milhões de visitas, sendo uma vitória o
Brasil estar debatendo neurociência durante a Copa. E é mesmo. O que mais me
alegrou ontem quando entrei na sala de aula foi encontrar os alunos comentando
a abertura da Copa e o jogo do Brasil e muitos falando do paraplégico que tinha
dado um pontapé usando um robô controlado pelo cérebro e querendo saber como
aquilo funcionava.
Mas muitas interrogações continuam sendo lançadas, especialmente
contrastando o que foi atingido até agora com o tanto que custou para os cofres
públicos num país que não valoriza a ciência como deveria e, portanto, deixa
uma fatia estreita do orçamento para a pesquisa:
O valor investido na construção do protótipo chama a atenção pela
grandiosidade. É de três a dez vezes maior do que o valor que qualquer um dos
37 Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs) da área de saúde
recebeu do CNPq nos últimos cinco anos, por exemplo. E R$ 13 milhões maior do
que o valor total do último edital lançado pela Finep para o desenvolvimento de
tecnologias de auxílio a deficientes (de R$ 20 milhões), que deverá beneficiar
dezenas de projetos em todo o País. (texto do jornalista Herton Escobar no Estadão)
A Finep, agência de financiamento do Ministério da Ciência, Tecnologia
e Inovação, colocou R$ 33 milhões no exoesqueleto. Nada errado nisso: trata-se
de uma agência de inovação, cuja missão é justamente investir em projetos
ousados, assumindo os riscos, que de resto são inerentes a todos os projetos
científicos. Mas é inevitável comparar: o edital recentemente lançado por
outras agências do mesmo ministério para a criação de Institutos Nacionais de
Ciência e Tecnologia anunciou que proverá no máximo R$ 10 milhões para cada um
dos grupos que vencerem uma acirrada concorrência. Como esses R$ 10 milhões se
destinam a grupos que associam vários pesquisadores independentes, cada
pesquisador contará com algo em torno de R$ 1 milhão para o seu projeto. Três a
um foi a vitória da seleção brasileira; 33 a 1 foi a vitória de Nicolelis sobre
a comunidade científica brasileira. (texto do neurocientista Roberto Lent no Globo)
acho que a impressão final é que os 33 milhões de reais da Finep
aprovados pela Dilma para o Andar De Novo compraram, até agora, apenas 3 segundos
de televisão. Espero que, no final, seja bem mais do que isso, claro. Mas devo
dizer que o guindaste que, sustentado por dois ajudantes, possibilitou ao rapaz
dar um toque na bola colocada aos seus pés de fato ficou muuuuuito aquém da
expectativa tão alardeada. Por outro lado, que fique claro: tenho PLENA
confiança no que Miguel é capaz de fazer. Isso ele já demonstrou em seus
artigos científicos. No que isso dá quando aplicado às pressas para fazer
propaganda para o governo, aí são outros quinhentos. (texto da neurocientista
Suzana Herculano-Houzel em sua página no Facebook)
Paralelamente, Nicolelis começou um embate com
a FIFA, que retrucou.
No meio do bate-boca, um pouco do foco no ideal científico da coisa toda vem se
perdendo.
Andar de novo. E também correr e dançar e escalar e recobrar o
controle da bexiga urinária – Há muitas formas de reabilitação sendo
pesquisadas. Algumas enfocam exoesqueletos, como é o caso de Nicolelis e outros
exemplos linkados acima. Mas há ainda outras estratégias, como essa desenvolvida na
Universidade de Berkley que propicia que o paraplégico vista um robô e recobre
muitos movimentos. Ou essa prótese,
desenvolvida na Escola Politécnica Federal de Lausanne, na Suíça, que oferece
ao paciente a sensação de tato ao ser ligada aos nervos do braço. Ou essa outra técnica,
desenvolvida na Unifesp, que usa um neromodulador implantado no corpo do
paciente para estimular os nervos responsáveis pelos movimentos das pernas e
pelo controle da bexiga e do reto. Ou essa perna biônica controlada
pelo cérebro.
Minha predileta, porém, é a pesquisa encabeçada por Hugh Herr, do MIT. A
TED-talk abaixo é emocionante. Nela, Herr apresenta resultados incríveis do
desenvolvimento de membros robóticos cada vez mais funcionais e expõe a
premissa que guia seu trabalho: “não consigo aceitar o fato de que o homem pode
quebrar”. Parece claro que Nicolelis também tem isso em mente, só que acaba
colocando muito de seu foco na quebra de recordes, em estar na ponta, em fazer
o impossível. Penso que Herr mostra que tudo isso pode ser conseguido de forma
mais bela. Porque competir é humano, mas melhorar as condições de vida das
pessoas com beleza e serenidade é mais. Estou com os gregos e com Vinícius:
beleza é fundamental!
Miguel Nicolelis
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TATIANA NAHAS (CV Lattes)
Sou uma
bióloga apaixonada pela biologia e pela multiplicidade inerente a esse campo do
conhecimento. Fiz um mestrado em Neurociências e uma especialização em
Divulgação Científica. Meu interesse é a comunicação da ciência, tanto por meio
do ensino, quanto via divulgação científica.
Além de
editar o Ciência na Mídia, participo da administração da versão em português doResearchBlogging,
um site que agrega postagens de pesquisas revisadas por pares.
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*O endereço não existe na globo.com???
**http://cienciahoje.uol.com.br/noticias/2014/06/lance-polemico%20 -O item que você solicitou não existe neste servidor ou não pode ser servido.