Há quem morra acreditando que o fim do mundo está próximo. E há quem
viva crente de que será o beneficiário de riquezas inesperadas, conquistas
inauditas.
04/06/2014
Por Wanderley Guilherme dos Santos
Em cartamaior
Cartomantes, videntes, intérpretes de pesquisas eleitorais e, muito
especialmente, editorialistas e colunistas muito mais especialmente ainda, não
são interpelados sobre a inexatidão dos prognósticos e profecias com que
assustam ou embriagam seus clientes. Certo, vez por outra recebem leves
críticas pelo fiasco das previsões, sem serem acionados por charlatanice ou
falsidade ideológica. E a maioria dos viciados volta a procurar todos, e todas,
sempre que temem o futuro.
Convenhamos, é coisa de enorme fragilidade emocional acreditar que o que
lhe está desde já reservado, caso existisse de fato, se revela na manipulação
matreira de valetes de copas, azes de espada e as cobiçadas damas de alcova,
quero dizer, damas de outros, ou melhor, damas de ouros. Há modos de entender o
fenômeno sem a necessidade de convocar entidades sub metafísicas ou supra
psicanalíticas.
Há pouco, boatos de nobre origem alimentaram a expectativa de que os
computadores iriam desarranjar-se sem conserto com a passagem do século. De 1999
para 2000 ou deste para 2001, contudo, nada aconteceu. E nessa dúvida
cronológica já se encontra metade dos subterfúgios com que fracassados profetas
justificam o escandaloso vexame, a saber: a volubilidade do tempo e a pobreza
dos calendários. Esse negócio de contar o tempo não é fácil, como se comprova
por consulta ao Google ou à Wikipédia.
Papas e imperadores sempre desejaram
aprisionar em métricas comedidas aquelas anomalias da natureza disfarçadas de
micro milionésimos de segundos ou minutos e que, quando menos se espera,
viraram algumas horas, dia até, ocasionando “bolos” históricos e rupturas
matrimoniais. Calendários ditos Julianos, Gregorianos, lunares, sub-lunares,
solares, maias e astecas, é vasta a oferta do modo de contar o tempo. Steven J.
Gould, em Questioning the Millenium, faz erudita e bem humorada
recensão de todas as tentativas.
Pois é ao caráter fugidio do tempo que os profetas apelam para justificar
a decepção de suas apostas. Tratar-se-ia de erro de contagem nas mensagens
cifradas das cartas, nuvens, borras de café, vísceras de aves e teclados de
computador. Quem sabe o 1 era 2 e o 2, 3, e o dia do Juízo Final dos
computadores se dará na passagem do ano de 2 999 para 3 000? Isso, claro, se o
mundo não for destruído, antes, por herético conciliábulo entre reis, rainhas,
damas e valetes de heterogêneo e pecaminoso conjunto de naipes.
Ao explicar o normal andar dos dias oposto aos reboliços prometidos
por mais cuidadosa leitura do tempo, preservam a suposta dádiva da antevisão e
a reputação do visionário, culpando os cosmólogos por não traduzirem
corretamente os indícios emitidos pelo movimento e duração dos astros (Ponho
aqui “indício” de caso pensado, termo tornado célebre por juízes e repórteres
ao tomá-lo, tal como as cartomantes, por equivalente a “evidência”. Nos tempos
que correm, conforme o calendário Juliano ou Gregoriano, não importa, indício
quer dizer evidência, ou não, só quando convém, é evidente). No caso,
defendem-se os catastrofistas com a desculpa de que os indícios não apontavam
para evidências e, portanto, a data anunciada ficou comprometida. Pena só se
ter tomado ciência disso depois de queda nas bolsas, suicídios antecipados e
uísques tomados por conta. No próximo fim de mundo, ou de governo, asseguram,
não falharão.
A outra muleta de profetas do não acontecer chama-se, petulantemente,
dissonância cognitiva. Trocada em miúdos, a dissonância do mal arrumado profeta
refere-se ao óbvio descompasso entre o que ele vê e o mundo real dos
paralelepípedos e procissões religiosas. Se cismar de perceber nestas últimas a
obscenidade de ritos pagãos não há santo que os persuada do contrário.
Cantochões tomados por convites à devassidão, paramentos anunciando a
variedade de strip-tease que será apresentada, e por aí vai. Em suma, reinterpreta-se
o mundo para fazê-lo conferir com a pretensa cognição. Nas seitas milenaristas,
que anunciam o fim dos tempos, quando a desculpa não é o calendário que teria
sido mal composto, é a dissonância cognitiva, isto é, os sinais ainda não
teriam atingido sua forma derradeira e estaríamos ainda às vésperas dos grandes
acontecimentos.
Há quem morra acreditando que o fim do mundo está próximo. E há quem viva
crente de que será o beneficiário de riquezas inesperadas, conquistas inauditas
e glórias, e poder, prestígio e pesquisas. Andaço muito comum em períodos
eleitorais, levando os fiéis a permanente romaria entre a dissonância e o
calendário. Nada a fazer além de deixar o tempo passar e só tocar no assunto no
ano seguinte. A ressaca é longa.