Reação feroz dos conservadores
ao decreto de Dilma revela incapacidade de compreender sociedades atuais e
interesse de manter política como monopólio dos “representantes”
POR LADISLAU DOWBOR
21/06/2014
O texto na nossa Constituição é claro, e se trata nada menos do que do
fundamento da democracia: “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de
representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” Está
logo no artigo 1º, e garante portanto a participação cidadã através de
representantes ou diretamente. Ver na aplicação deste artigo, por
um presidente eleito, e que jurou defender a Constituição, um atentado à
democracia não pode ser ignorância: é vulgar defesa de interesses elitistas por
quem detesta ver cidadãos se imiscuindo na política. Preferem se entender com
representantes.
A democracia participativa em nenhum lugar substituiu a democracia
representativa. São duas dimensões de exercício da gestão pública. A verdade é
que todos os partidos, de todos os horizontes, sempre convocaram nos seus
discursos a que população participe, apoie, critique, fiscalize, exerça os seus
direitos cidadãos. Mas quando um governo eleito gera espaços institucionais
para que a população possa participar efetivamente, de maneira organizada, os
agrupamentos da direita invertem o discurso.
É útil lembrar aqui as manifestações de junho do ano passado. As
multidões que manifestaram buscavam mais quantidade e qualidade em mobilidade
urbana, saúde, educação e semelhantes. Saíram às ruas justamente porque as
instâncias representativas não constituíam veículo suficiente de transmissão
das necessidades da população para a máquina pública nos seus diversos níveis.
Em outros termos, faltavam correias de transmissão entre as necessidades da
população e os processos decisórios.
Os resultados foram que se construíram viadutos e outras infraestruturas
para carros, desleixando o transporte coletivo de massa e paralisando as
cidades. Uma Sabesp vende água, o que rende dinheiro, mas não investe em
esgotos e tratamento, pois é custo, e o resultado é uma cidade rica como São
Paulo que vive rodeada de esgotos a céu aberto, gerando contaminação a cada
enchente. Esta dinâmica pode ser encontrada em cada cidade do país onde são algumas
empreiteiras e especuladores imobiliários que mandam na política tradicional,
priorizando o lucro corporativo em vez de buscar o bem estar da população.
Participação funciona. Nada como criar espaços para que seja ouvida a
população, se queremos ser eficientes. Ninguém melhor do que um residente de um
bairro para saber quais ruas se enchem de lama quando chove. As horas que as
pessoas passam no ponto de ônibus e no trânsito diariamente as levam a engolir
a revolta, ou sair indignadas às ruas. Mas o que as pessoas necessitam é
justamente ter canais de expressão das suas prioridades, em vez de ver nos
jornais e na televisão a inauguração de mais um viaduto. Trata-se aqui, ao
gerar canais de participação, de aproximar o uso dos recursos públicos das
necessidades reais da população. Inaugurar viaduto permite belas imagens;
saneamento básico e tratamento de esgotos muito menos.
Mas se para muitos, e em particular para a grande mídia, trata-se de uma
defesa deslavada da política de alcova, para muitos também se trata de uma
incompreensão das próprias dinâmicas mais modernas de gestão pública.
Um ponto chave, é que o desenvolvimento que todos queremos está cada vez
mais ligado à educação, saúde, mobilidade urbana, cultura, lazer e semelhantes.
Quando as pessoas falam em crescimento da economia, ainda pensam em comércio,
automóvel e semelhantes. A grande realidade é que o essencial dos processos
produtivos se deslocou para as chamadas políticas sociais. O maior setor
econômico dos Estados Unidos, para dar um exemplo, é a saúde, representando
18,1% do PIB. A totalidade dos setores industriais nos EUA emprega hoje menos
de 10% da população ativa. Se somarmos saúde, educação, cultura, esporte,
lazer, segurança e semelhantes, todos diretamente ligados ao bem estar da
população, temos aqui o que é o principal vetor de desenvolvimento. Investir na
população, no seu bem estar, na sua cultura e educação, é o que mais rende. Não
é gasto, é investimento nas pessoas.
A característica destes setores dinâmicos da sociedade moderna é que são
capilares, têm de chegar de maneira diferenciada a cada cidadão, a cada
criança, a cada casa, a cada bairro. E de maneira diferenciada porque no
agreste terá papel central a água; na metrópole, a mobilidade e a segurança e
assim por diante. Aqui funciona mal a política centralizada e padronizada para
todos: a flexibilidade e ajuste fino ao que as populações precisam e desejam
são fundamentais, e isto exige políticas participativas. Produzir tênis pode
ser feito em qualquer parte do mundo, coloca-se em contêiner e se despacha para
o resto do mundo. Saúde, cultura, educação não são enlatados que se despacham.
São formas densas de organização da sociedade.
Eu sou economista, e faço as contas. Entre outras contas, fizemos na
Pós-Graduação em Administração da PUC-SP um estudo da Pastoral da Criança. É um
gigante, mais de 450 mil pessoas, organizadas em rede, de maneira participativa
e descentralizada. Conseguem reduzir radicalmente, nas regiões onde trabalham,
tanto a mortalidade infantil como as hospitalizações. O custo total por criança
é de 1,70 reais por mês. A revista Exame publica um estudo
sobre esta Organização da Sociedade Civil (OSC), porque tenta entender como se
consegue tantos resultados com tão poucos recursos. Não há provavelmente
instituição mais competitiva, mais eficiente do que a Pastoral, se comparada
com as grandes empresas, bancos ou planos privados de saúde. Cada real que
chega a organizações deste tipo se multiplica.
A explicação desta eficiência é simples: cada mãe está interessada em que
o seu filho não fique doente, e a mobilização deste interesse torna qualquer
iniciativa muito mais produtiva. Gera-se uma parceria em que a política pública
se apoia no interesse que a sociedade tem de assegurar os resultados que lhe
interessam. A eficiência aqui não é porque se aplicou a última recomendação dos
consultores em kai-ban, kai-zen, just-in-time, lean-and-mean, TQM e
semelhantes, mas simplesmente porque se assegurou que os destinatários finais
das políticas se apropriem do processo, controlem os resultados.
As organizações da sociedade civil têm as suas raízes nas comunidades
onde residem, podem melhor dar expressão organizada às demandas, e sobre tudo
tendem a assegurar a capilaridade das políticas públicas. Nos Estados Unidos,
as OSCs da área da saúde administram grande parte dos projetos, simplesmente
porque são mais eficientes. Não seriam mais eficientes para produzir automóveis
ou represas hidroelétricas. Mas nas áreas sociais, no controle das políticas
ambientais, no conjunto das atividades diretamente ligadas à qualidade do cotidiano,
são simplesmente indispensáveis. O setor público tem tudo a ganhar com este
tipo de parcerias. E fica até estranho os mesmos meios políticos e empresariais
que tanto defendem as parceiras público-privadas (PPPs), ficarem tão indignados
quando aparece a perspectiva de parcerias com as organizações sociais. O seu
conceito de privado é muito estreito.
Eu, de certa forma graças aos militares, conheci muitas experiências pelo
mundo afora, trabalhando nas Nações Unidas. Todos os países desenvolvidos têm
ampla experiência, muito bem sucedida, de sistemas descentralizados e
participativos, de conselhos comunitários e outras estruturas semelhantes. Isto
não só torna as políticas mais eficientes, como gera transparência. É bom que
tanto as instituições públicas como as empresas privadas que executam as
políticas tenham de prestar contas. Democracia, transparência, participação e
prestação de contas fazem bem para todos. Espalhar ódio em nome da democracia
não ajuda nada.