Acordo firmado entre o governo FHC
e os EUA para a cessão de parte do território de Alcântara só se assina de
cócoras.
sex, 30/05/2014 - 09:54
Sugerido
por Assis Ribeiro
Da
Carta Capital
Por Roberto Amaral
Às vezes pequenos gestos, ou gestos aparentemente pequenos, são a medida de grandes políticas, em cujo rol incluo a política externa independente estabelecida a partir do primeiro dia do governo Lula. Ela remonta às formulações de Afonso Arinos e San Tiago Dantas, continuadas por Hermes Lima, Evandro Lins e Silva e Araújo Castro. Dela, uma de suas fundamentais iniciativas foi o defenestramento de Washington (é só um exemplo de outras remoções necessárias aos interesses nacionais) do embaixador brasileiro que lá se encontrou a serviço da subserviência. Serviço que prestava, ressalte-se, gratuitamente, por pura sabujice e satisfação interna, assim como age todo colonizado em frente ao seu senhor colonizador, máxime quando todo poderoso. Franz Fanon – leitura reatualizada como neocolonialismo– trabalhou muito bem essa categoria de dominado que assume por prazer a ideologia (donde o discurso) do dominante, reproduzindo-o como passiva correia de transmissão. Aliás, esses pobres diabos não reconhecem seu próprio papel ideológico, e, como se não soubessem o que é ideologia, classificam como ideológico tudo aquilo que não segue o catecismo no qual aprenderam os mandamentos do servilismo. Para eles, por exemplo, toda ação de defesa dos interesses do país – o nacionalismo, vá lá— é carregada por uma pulsão ideológica, e a única formulação ideológica que conhece é a do esquerdismo. O entreguismo, não. Esse é puro sentimento ou ciência.
Antigos embaixadores de carreira, particularmente os que andaram por
Washington, Londres, Paris e Berlim, que serviram com denodo à lastimável
política externa de FHC, aproveitam-se da aposentadoria merecida para, na
imprensa que lhes abre espaços generosos, combater, os interesses nacionais, a
pretexto de fazerem oposição à atual política externa brasileira por eles
estigmatizada como ideológica, e ideologia cai no dicionário dos adjetivos
pejorativos. Como se a própria crítica não fosse uma ideologia a serviço de um
interesse.
Em espaço latifundiário num grande jornal paulista, o candidato a
ministro das Relações Exteriores em eventual governo do ex-governador mineiro
(o que é em si uma ameaça), reclama da recusa do Congresso Nacional em
ratificar o Acordo firmado entre o governo FHC e os EUA para a cessão de parte
da soberania brasileira sobre o território de Alcântara, no Maranhão, para a
instalação de uma base de lançamentos de foguetes. Acusa o governo Lula de
haver agido por ‘razões ideológicas’. Ora, o ex-embaixador, convenientemente,
esquece-se de dizer que a ratificação do Acordo fôra rejeitada por 23 dos 25
integrantes da Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara
dos Deputados, em rara demonstração de convergência suprapartidária naquela
Casa, fundamentada em primoroso voto do então deputado Waldir Pires.
O ex-embaixador, que, aliás, e por coerência, preside a Câmara de
Comércio Brasil-EUA, não se dá ao trabalho de explicar que sorte de acordo era
este firmado por FHC. Para suprir sua omissão, informemos algumas de suas
características, negadas aos seus leitores. Vejamos.
O acordo leonino previa a possibilidade de veto político (sem necessidade
de justificativa) dos EUA a lançamentos, brasileiros ou não, a partir do Centro
de Lançamento de Alcântara, empreendimento brasileiro em território brasileiro,
hoje uma base da Força Aérea Brasileira.
(art.III, A); proibia nosso país de cooperar (entenda-se como tal aceitar
ingresso de equipamentos, tecnologias, mão-de-obra ou recursos financeiros) com
países não membros do Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis –Missile
Techonology Control Regime-MTCR.
(art. III, B); proibia o Brasil de incorporar ao seu patrimônio
‘quaisquer equipamento ou tecnologia que tenham sido importados para apoiar
Atividades de Lançamento.
(art. III, C); proibia o Brasil de utilizar recursos decorrentes dos
lançamentos no desenvolvimento de seus próprios lançadores.
(artigo III, E); obrigava o Brasil a assinar novos acordos de
salvaguardas com outros países, de modo a obstaculizar a cooperação tecnológica.
(art.III, F); proibia os participantes norte-americanos de prestarem
qualquer assistência aos representantes brasileiros no concernente ao projeto,
desenvolvimento, produção, operação, manutenção, modificação, aprimoramento,
modernização ou reparo de Veículos de Lançamento, Espaçonaves e/ou Equipamentos
Afins.
(art. V, 1); concedia a pessoas indicadas pelo governo dos EUA a
exclusividade do controle, vinte e quatro horas por dia, do acesso a Veículos
de Lançamento, Espaçonaves, Equipamentos Afins, dados Técnicos e ainda o acesso
às áreas restritas referidas no artigo IV, parágrafo 3, bem como do transporte
de equipamentos/componentes, construção/instalação, conexão/desconexão, teste e
verificação, preparação para lançamento, lançamento de Veículos de Lançamento/Espaçonaves,
e do retorno dos equipamentos e dos dados Técnicos.
(art.VI, 2); negava aos brasileiros e fazia concessão exclusiva aos
servidores dos EUA do livre acesso, a qualquer tempo, ao Centro de
Lançamento para inspecionar Veículos etc.
(art.VI, 3); exigia do governo brasileiro a garantia de que todos os
representantes brasileiros portariam, de forma visível, crachás de
identificação enquanto estiverem cumprindo atribuições relacionadas com
Atividades de Lançamento; referidos crachás, porém, seriam emitidos
unicamente pelo governo dos EUA, ou por Licenciados Norte-Americanos (art. VI,
5).
Este é um típico acordo de lesa-pátria que só se assina de cócoras e só
pode sentir-se bem em firmá-lo um governo cujo chanceler se dispôs a tirar os
sapatos para ingressar no sagrado solo dos EUA.
Tenho a honra de, como Ministro da Ciência e Tecnologia, na digna
companhia dos ministros Celso Amorim (Itamaraty) e José Viegas (Defesa),
haver solicitado ao governo da República a retirada desse acordo do Congresso.
O objetivo era cuidar da soberania nacional, nosso dever funcional que não
alcança determinados embaixadores, e assegurar, no futuro, a possibilidade de o
Brasil possuir um Programa Espacial Autônomo. Projeto ao qual, claramente, sem
tergiversações, sempre se opuseram e se opõem os EUA. Assim, já no distante
1997 -- trata-se apenas de um exemplo, um em cem--, nos primórdios do Projeto
Cyclone-IV, decorrente do acordo Brasil-Ucrânia (que o embaixador malsina
simplesmente porque ele inviabilizou ou atrasou o acordo com os EUA), a
FIAT-Avio, que dele participava, desligou-se ao ser notificada de que os EUA
não viam com bons olhos o programa espacial brasileiro. (‘Para que os
brasileiros querem ter um programa espacial próprio se podem comprar nossos
serviços de lançamento?’). Quando da homologação pelo Congresso brasileiro do
Acordo com o Brasil, a Ucrânia foi informada de que os EUA não ofereciam óbices
à cooperação, ‘mas continuavam entendendo que o Brasil não deveria ter programa
espacial próprio’. (Tenho cópia deste documento.) E enquanto não tem, depende
dos lançadores e dos satélites dos EUA e da China. O Brasil despende, por
lançamento realizado em sitio de terceiros, algo entre 25 e 50 milhões de
dólares.
Nosso atual programa compreende satélites lançados lá fora: dos EUA – um
satélite pequeno, mas cujo lançamento nos custou 100 milhões de reais; a classe
dos CBERS – satélites construídos por Brasil e China, mas lançados da China,
com seu veículo Longa Marcha; e outros, fabricados para nós no Canadá, ainda
nos EUA e na França, e lançados todos da base de Kourou, na Guiana Francesa.
O acordo rejeitado era e é só e tão só um instrumento a mais, que se
associava às pressões diplomáticas desde cedo levadas a cabo, pois, como todo
mundo sabe, sabem até as esculturas de Bruno Giorgio que embelezam os jardins
do Itamaraty, os EUA possuem vários centros de lançamentos e não carecem do
nosso. Seu objetivo era e é simplesmente inviabilizar nosso projeto de
desenvolvimento autônomo, ou fazer com que o Centro de Lançamentos de
Alcântara, uma vez construído, não fosse nosso, mas deles, ou que, na
última das hipóteses, estivesse sob seu absoluto controle.
Este é o cerne da questão. As distorções ideológicas ficam por conta do
embaixador amuado pela perda do posto.
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