Nos últimos
meses, recebemos aulas instrutivas sobre a natureza do poder do Estado e as
forças que impulsionam a sua política.
Por Noam Chomsky.
04/06/2014
Em cartamaior
A fonte da instrução, como é óbvio, é o conjunto de documentos relativos
ao sistema de vigilância da Agência Nacional de Segurança (NSA, pelas siglas em
inglês) dado a conhecer pelo valoroso lutador pela liberdade Edward J. Snowden,
habilmente resumidos e analisados pelo seu colaborador Glenn Greenwald no seu
novo livro No place to hide (Sem lugar para se esconder).
Os documentos revelam um projeto notável destinado a expor ao escrutínio
estatal informação vital a respeito de todas as pessoas que caiem nas garras do
colosso - à partida, de todas as pessoas integradas na moderna sociedade
eletrônica.
Nada tão ambicioso foi imaginado pelos profetas distópicos que descreveram
sombrios mundos totalitários.
Não é de pouca importância que o projeto esteja a ser executado num dos países
mais livres do planeta, e em radical violação da Carta de Direitos da
Constituição dos Estados Unidos, que protege os cidadãos de "perseguições
e capturas sem justificação" e garante a privacidade das suas
"pessoas, domicílios, documentos e pertences".
Por muito que o tentem os juristas do governo, não há forma de reconciliar
estes princípios com o assalto à população que revelam os documentos de
Snowden.
Também vale a pena recordar que a defesa dos direitos fundamentais à
privacidade contribuiu para desencadear a Revolução Americana. No século XVIII,
o tirano era o governo britânico, que reclamava o direito de imiscuir-se no lar
e na vida dos colonos americanos. Hoje, é o próprio governo norte americano que
reclama esta autoridade.
A Grã-Bretanha mantém a postura que impulsionou a rebelião dos colonos, ainda
que em escala mais limitada, pois o centro do poder deslocou-se no que respeita
aos assuntos mundiais. O governo britânico pediu à NSA para "analisar e
reter todos os números de telefones móveis e faxes, mensagens de correio
eletrônico e direções IP de cidadãos britânicos que capture na sua rede",
reporta o The Guardian a partir de documentos fornecidos por Snowden.
Os cidadãos britânicos (como outros clientes internacionais) ficarão, sem
dúvida, felizes por saberem que a NSA recebe ou intercepta de maneira rotineira
roteadores, servidores e outros dispositivos computacionais exportados desde os
Estados Unidos para poder implantar instrumentos de espionagem, como assinala
Greenwald no seu livro.
Conforme o colosso satisfaz as suas visões, cada toque numa tecla pode ser
enviado às cada vez mais amplas bases de dados do presidente Obama em Utah.
O constitucionalista da Casa Branca parece decidido a demolir os fundamentos
das nossas liberdades civis também noutros campos. O princípio da presunção de
inocência, que remonta à Carta Magna, há 800 anos, foi condenado ao esquecimento
há muito tempo.
Recentemente, o New York Times relatou a "angústia" de um juiz
federal que tinha que decidir se permitia ou não que alimentassem à força um
prisioneiro sírio em greve de fome em protesto contra o seu encarceramento.
Não se expressou "angústia" alguma sobre o fato de o homem estar há
12 anos preso em Guantánamo sem ter sido julgado, uma das muitas vítimas do
líder do mundo livre, que reivindica o direito de manter prisioneiros sem
acusação e de os submeter a torturas.
Essas revelações induzem-nos a investigar mais a fundo a política do Estado e
os fatores que a impulsionam. A versão normal que obtemos é que o objetivo
primário dessa política é a segurança e a defesa contra inimigos.
Essa doutrina sugere de imediato umas quantas perguntas: a segurança de quem e
a defesa contra que inimigos? As respostas são ilustradas de forma dramática
pelas revelações de Snowden.
A polícia deve assegurar a segurança da autoridade estatal e das concentrações
do poder doméstico, e defendê-los contra um inimigo muito temido: a população
nacional, que se pode converter num grande perigo se não é controlada.
Desde há muito tempo entende-se que ter informação sobre o inimigo é essencial
para o controlar. A esse respeito, Obama tem uma série de distintos
antecessores, ainda que as suas contribuições tenham chegado a níveis sem
precedentes, como hoje sabemos graças ao trabalho de Snowden, Greenwald e uns
quantos mais.
Para defender o poder do Estado e o da economia privada do inimigo doméstico,
essas duas entidades devem manter-se ocultas – enquanto que, em contraste
acentuado, o inimigo deve estar por completo exposto à autoridade do Estado.
Esse princípio foi explicado, de forma muito lúcida, pelo intelectual político
Samuel P. Huntington, que nos ensinou que o "poder se mantém forte quando
permanece na sombra; exposto à luz, começa a evaporar-se".
Huntington acrescentou uma ilustração crucial. Nas suas palavras, "é
possível que tenhamos que vender (a intervenção ou outra ação militar) de forma
a que se crie a impressão errônea de que estamos a combater a União Soviética.
Isso é o que os Estados Unidos têm feito desde a doutrina Truman", no
princípio da Guerra Fria.
A percepção de Huntington sobre o poder e a política do Estado era ao mesmo tempo
precisa e visionária. Quando escreveu essas palavras, em 1981, o governo de
Ronald Reagan empreendia a sua guerra contra o terror, que cedo se converteu
numa guerra terrorista assassina e brutal, primeiro na América Central mas que
depois se estendeu bem mais além para o sul de África, Ásia e Médio Oriente.
Desde esse dia em adiante, para levar a violência e a subversão além
fronteiras, ou aplicar a repressão e violação de garantias individuais dentro
do país, o poder do Estado procurou criar a impressão errônea de que combatemos
os terroristas, ainda que existam outras opções: barões da droga, mulás loucos
empenhados em ter armas nucleares e outros ogros que supostamente nos querem
atacar e destruir.
Ao longo do processo, o princípio básico persiste. O poder não se deve expor às
claras. Edward Snowden converteu-se no criminoso mais procurado por não
entender esta máxima essencial.
Em suma, deve existir transparência plena para a população mas nenhuma para os
poderes que se devem defender desse horrível inimigo interno.
Fonte: www.jornada.unam.mx/2014/06/01/index.php?section=opinion
Tardução de Mariana Carneiro para o Esquerda.net
Créditos da foto: Arquivo