Foi preciso que o presidente de
um dos maiores bancos viajasse 8.940 kms, para encontrar um jornalista disposto
a ouvir e reportar uma outra visão do Brasil.
24 de Janeiro de 2014
Em iranews
por: Saul Leblon/
Carta Maior
Foi preciso que o presidente de um dos maiores bancos brasileiros
viajasse 8.940 kms para fora do país, um estirão aéreo de 11 hs até
Genebra, na Suíça, para encontrar um jornalista, o competente Assis Moreira,
correspondente do Valor Econômico, disposto a ouvir e reportar uma
visão da economia ausente na pauta do Brasil aos cacos,
que predomina nas páginas do seu próprio jornal.
Que isso tenha acontecido na carimbada paisagem de neve e ternos pretos
de Davos, onde se realiza o concílio das corporações capitalistas, diz
algo sobre o belicismo da emissão conservadora em azedar as
expectativas contra o Brasil e seu desenvolvimento.
Luiz Carlos Trabuco Cappio, presidente do Bradesco, não dirige uma
instituição socialista.
Segundo maior banco do país, o Bradesco acumulou até o 3º trimestre
de 2013 um lucro da ordem de R$ 9 bilhões, em boa parte pastejando
tarifas e juros no lombo de seus clientes.
Até aí, estamos na norma de um setor que ao primeiro alarme
da crise mundial deixou o Brasil falando sozinho.
Recolheu-se ao bunker dos títulos públicos (juro limpo, risco zero
de inadimplência) e deixou o pau quebrar do lado de fora.
Mais de 50% do financiamento da economia brasileira hoje é garantido
pelos bancos estatais – 15 pontos acima do padrão de mercado
pré-crise.
Não dispusesse de um sistema de bancos estatais, o país
seria arrastado à crise pela vocação pró-cíclica da lógica
financeira.
O Bradesco tem 26 milhões de correntistas; está espalhado por todo o
Brasil –sua rede de oito mil agências talvez só perca para a do Banco do
Brasil.
Um dos segmentos de maior expansão do banco no ano
passado foi a carteira imobiliária: o financiamento de
imóveis totalizou R$ 12,5 bi –crescimento de 33% no período, contra
11% do credito em geral.
Talvez essa capilaridade explique a dissonância.
O que disse Trabuco, em Genebra, destoa da água para o vinho dos
clamores emitidos pela república rentista, aferrada a circularidade do lucro
que não passa pela produção, nem pelo consumo.
No cassino, a regra de ouro é o descompromisso com a sorte do desenvolvimento
e o destino da sociedade –não raro, o confronto, em modalidades
conhecidas.
A saber: arbitragem de juros (leia ‘O governo invisível não quer Dilma’;
neste blog), especulação com papelaria e moedas (bolsas, volatilidade
cambial) e imposição de Selic gorda no financiamento da dívida pública.
Até mesmo pelo maior entrelaçamento geográfico com o
país real (se o Brasil der errado isso tem consequências) o dirigente do
Bradesco se obriga a um outra visão da economia e do governo.
Excertos da sua entrevista a Assis Moreira soam como mensagens de um
marciano em meio ao alarido do rentismo local:
(...) ‘O grande desafio que nós temos é fazer o capital produzir no
Brasil. É fazer o investimento estrangeiro ou capital privado nacional
funcionar para suprir os nossos fossos, principalmente de infraestrutura. O
Brasil não é um país pobre, é um país desigual. Não é um país improdutivo. Nós
temos problema de competitividade, mas o país é produtivo’.
(...) ‘ninguém quer ficar fora do Brasil. Porque a democracia brasileira,
o Judiciário, as instituições, a harmonia social, independente dos problemas
que possam existir, tem uma coesão. O Brasil tem um projeto de país’.
(...) ‘Houve uma época na economia brasileira em que tudo estava no curto
prazo. Agora, teve um alongamento. E foi positivo, porque o governo soube
aproveitar isso, que foi o alongamento da dívida interna. Hoje já temos
estoques importante de títulos de 2045, de 2050’.
(...) ‘O relatório do FMI foi até positivo em alguns aspectos, porque
olhou para a economia brasileira e viu um crescimento superior à média da
projeção dos economistas brasileiros. Isso é o reconhecimento da capacidade do
PIB potencial.
Com relação ao movimento de capitais, o FMI falou genericamente, sobre
migração [de capital]. O pior dos mundos seria um cenário em que os Estados
Unidos, Europa e Ásia mudassem o patamar dos juros, aí teríamos... Acho que a
fuga de capital no Brasil não se aplica’.
Isso na 4ª feira. Um dia antes, o mesmo jornal debruçava-se no colo
do mercado financeiro para anunciar a rejeição do governo invisível
do dinheiro à reeleição de Dilma.
A dificuldade em pensar o Brasil advém, muito, da inexistência de um
espaço ecumênico de debate em que opiniões como a de um Trabuco, ou
a de Luiza Trajano --a dona do Magazine Luiza, que desancou
ao vivo um gabola desinformado do pelotão conservador-- deixem de
ser um acorde dissonante no jogral que diuturnamente aterroriza: de
amanhã o Brasil não passa.
Os desafios ao passo seguinte do desenvolvimento brasileiro são reais.
De modo muito grosseiro, trata-se de modular um ciclo de ganhos de
produtividade (daí a importância de resgatar seu principal núcleo
irradiador, a indústria) que financie novos degraus de acesso
à cidadania plena.
A força e o consentimento necessários para conduzir esse novo
ciclo requisitam um salto de discernimento e organização social,
indissociável de um amplo debate sobre metas, ganhos, prazos,
sacrifícios e valores.
Não se trata apenas de sobreviver à convalescência do modelo
neoliberal.
Trata-se de distinguir se a crise global é uma ruptura ou o
desdobramento natural de um modelo cuja restauração é defendida por
rentistas, jornalistas e rapazes assertivos, desprovidos do recheio competente.
Antes de classificar como excrescência o que se assiste na Europa
--onde o ajuste neoliberal produziu 26,5 milhões de desempregados,
implodiu pilares da civilização e acumula déficits paralisantes, que a recessão
‘saneadora’ não permite deflacionar--, talvez fosse mais justo creditar à
razia o bônus da coerência.
O que o schumpeterismo ortodoxo promove no antigo berço do
Estado do Bem- Estar Social é radicalização do processo de ‘destruição
criativa’ que por três décadas esganou o rendimento do trabalho,
sacrificou soberanias, instituições e direitos, simultaneamente a
concessão de mimos tributários aos endinheirados.
Para clarear as coisas: não foi a crise que gerou o arrocho e a pobreza
em desfile no planeta --mas sim o arrocho e a desigualdade neoliberal que
conduziram ao desfecho explosivo, edulcorado agora por vulgarizadores
que, no Brasil, advogam dobrar a aposta no veneno.
A ordem dos fatores altera a agenda futuro.
Se a crise não é apenas financeira, controlar as finanças desreguladas é
só um pedaço do caminho.
O percurso inteiro inclui controlar a redistribuição do excedente
econômico, ferozmente concentrado nas últimas décadas na base do morde e
assopra --arrocho de um lado, crédito e endividamento suicida do outro.
O saldo está exposto no cemitério de ossos da crise mundial.
Genocídio do emprego, classe média em espiral descendente, mercados
atrofiados, plantas industriais carcomidas, anemia do investimento
e colapso dos serviços público e do investimento estatal.
Para quem acha que a coisa começou agora, o insuspeito Wal Street Journal
acaba de publicar reportagem com números pedagógicos sobre o esmagamento
da classe média no mundo rico, antes da crise.
Dados compilados por Emmanuel Saez, da Universidade da Califórnia em
Berkeley, e Thomas Piketty, da Escola de Economia de Paris’, diz o Wall
Street corroboram o desmonte social em curso nos países ricos.
Em 2012, os 10% mais ricos da população norte-americana ficaram com
metade de toda a renda gerada no país. Trata-se do percentual mais alto desde
1917.
Mas o ovo regressivo vem sendo chocado bem antes disso.
Estatísticas coligidas por Branko Milanovic, ex-economista do Banco
Mundial , adverte o Wall Street, mostram que, de 1988 a 2008, a renda
real dos 50% mais pobres nos EUA cresceu apenas 23%. Enquanto isso, a renda do
1% dos americanos no topo da pirâmide cresceu 113% no período –‘ um percentual
que outros estudos consideram subestimado’, lembra o jornal conservador. As
famílias dos 50% mais pobres na Alemanha e no Japão tiveram um desempenho ainda
pior. A renda real dos 50% mais pobres no Japão caiu 2% em termos reais.
“As desigualdades nacionais em quase todos os lugares, exceto na América
Latina, aumentaram", diz Milanovic ao Wall Street.
Pela ansiedade dos nossos falcões e a animosidade de seus gabolas
no debate das questões nacionais, tudo indica que eles não querem ficar para
trás.
Ao ouvirem notícias encorajadoras sobre o potencial do país desabafam
enfadados:
‘Brasil? Poupe-me...’
Leia mais em: