Uma história sobre spam
Os robôs vomitadores de spam se
tornaram tão tirânicos que chegam a ter o mundo nas mãos ao reduzir milhares de
computadores a armas cúmplices de um cérebro desequilibrado.
por Finn Brunton
em diplomatique
03 de Abril de 2014
Ilustração: Alpino
No momento de redigir este artigo, pensei nas dificuldades do tradutor em
reescrevê-lo em francês [o texto original foi redigido em inglês]. “Spam”, meu
tema de pesquisa há muitos anos, remete a um conjunto heteróclito de
neologismos estranhos usados ao mesmo tempo pela informática, pela engenharia
de proteção, pelo direito penal, pelo crime (amador e organizado) e pela
poesia. São palavras e expressões como “filtro bayesiano” (a arte de contornar
ou corromper os filtros antispam de caixas de correio eletrônico), “botnets”
(redes de “máquinas zumbis”) ou “click baits” (links concebidos para estimular
o desejo do internauta de clicá-los). Não raro, essa linguagem altamente
especializada se parece mais com onomatopeias de quadrinhos do que com
designações da rede mundial de computadores: “sping” (contração de spam e
“ping”, que designa um chamado de um computador a outro), “splog” (contração de
spam e blog). Tentar descrever a indústria do spam é, no fundo, importar gírias
de bandidos e quadrilhas para a tecnosfera do século XXI.
Esse problema da língua começa com a própria palavra “spam”, vocábulo que
até os especialistas têm dificuldade em definir com exatidão. Aplica-se à
imensa maioria – mais de 85% – dos e-mails ou mensagens trocados no mundo, que
aterrissam na lixeira antes mesmo de serem vistos por seus destinatários. São
bilhares de tweets, publicações no Facebook, SMS, blogs, comentários, sites,
contribuições na Wikipédia e outras formas de expressão on-line. Por terem
alimentado esse fluxo colossal, indivíduos foram presos, empresas condenadas a
fechar suas portas, sites riscados dos mecanismos de busca, países colocados
brevemente em quarentena. O spam remodelou profundamente a internet, seus
sistemas e serviços, mas também o comportamento dos usuários.
Em outros tempos, antes da invenção da internet, estudantes
norte-americanos se reuniam em porões para manipular terminais ligados a outros
computadores no país. Atuavam à noite, porque durante o dia as máquinas eram
usadas em projetos de laboratório de custo alto. Fãs de ficção científica e
humor nonsense, passavam horas concebendo programas, criando jogos ou formas de
trocar mensagens cheias de referências às esquetes da trupe britânica Monty
Python. Uma de suas cenas favoritas, veiculada pela BBC em 1970, tirava seu efeito
cômico de uma interjeição proferida pela servente e pela clientela viking de um
salão de chá: “Spam!”.
A piada transformou-se em uma bola de neve. Os estudantes apropriaram-se
da expressão como um código destinado a sabotar qualquer diálogo. Reprogramaram
seus computadores de forma que, em determinado momento de uma troca de
mensagem, a palavra “spam” aparecesse na tela de seu interlocutor e se
multiplicasse ao infinito, a ponto de invadir a plataforma de discussão e
afastar os eventuais participantes. Uma piada idiota, mas sem consequências, um
pouco como tocar uma vuvuzela no meio de uma conversa. Foi essa brincadeira que
deu origem ao termo “spam” como conhecemos hoje.
A palavra se difundiu nos anos 1980 e passou a designar de forma ampla
qualquer mensagem inútil, insignificante ou abusiva. Ganhou novo significado em
1994, quando dois advogados do Arizona (Estados Unidos) utilizaram o sistema
Usenet – ancestral da internet – para oferecer seus serviços a alguns milhares
de usuários espalhados pelo mundo. Tratava-se de vender aos estrangeiros uma
astúcia jurídica capaz de melhorar as chances de uma pessoa conseguir o green
card. No seio da comunidade de usuários do Usenet, a palavra “spam” tornou-se
sinônimo de mensagem de caráter comercial não solicitada, sentido mais próximo
ao que conhecemos hoje.
A diferença reside no fato de que a mensagem dos advogados convocava para
uma prestação de serviço real: seus destinatários podiam ligar para um número
de telefone e marcar um encontro. Nos primeiros anos de internet, as mensagens
definidas como spam também tinham essa característica: se desejassem, os
internautas podiam adquirir uma caixa de pílulas de emagrecimento, uma imitação
de relógio de luxo ou um aparelho para “aumentar o pênis”. Naquele tempo, o spam
já era desprezado, mas ainda correspondia a um serviço legítimo do ponto de
vista comercial. A rede mundial de computadores estava em plena expansão e o
setor comercial tinha todo o interesse em se mostrar confiável para abocanhar
sua fatia de consumidores. À exceção de alguns vigaristas que abusavam do meio
com mensagens do tipo “Senhor, temos US$ 1,2 milhão a serem repatriados da
Nigéria...”, os veiculadores de spam gostavam de se apresentar como
empreendedores escrupulosos que possuíam endereço, marca homologada e produtos
impecáveis, na mais pura tradição dos pioneiros comerciais. Mas quem
adivinharia que esses procedimentos marcariam uma idade de ouro
excepcionalmente breve, e relativamente decente, em comparação ao que se vê
hoje?
Atualmente, quando um spam chega a alguma caixa postal, Twitter ou aos
comentários de um blog, há grandes chances de você ser o primeiro ser humano a
abri-lo: ele é concebido e difundido por mecanismos totalmente automatizados,
nos quais a intervenção humana se limita a regular parâmetros. Assim, onde
estão e quem são os empreendedores que nos oferecem descontos e promoções em
sites pornôs?
Duas grandes mudanças aconteceram na década de 2000: de um lado, vários
países adotaram leis antispam que expõem os contraventores a multas ou penas de
prisão; de outro, surgiram vários sistemas de filtragem eficazes para correios
eletrônicos. Para estarem de acordo com a legislação, aqueles que gerenciam
spams precisaram incorporar diversas menções legais em suas mensagens: links
que permitam aos destinatários se desinscrever, e-mail para envio de
reclamações etc. Essas obrigações facilitaram os sistemas de filtragem porque
tornaram as fórmulas de identificação mais precisas. Os que respeitam as leis
conseguem se manter, enquanto os outros correm risco de desaparecer.
Para evitar preocupações judiciárias e contornar os filtros, há apenas
uma solução: mobilizar dezenas de milhares de computadores capazes de enviar
centenas de mensagens por minuto a partir de endereços dispersos por todo o planeta,
com o objetivo de produzir um tsunami de spam apto a burlar barreiras técnicas
e legais. Os remetentes precisavam construir uma máquina de spam mundial. E é
precisamente isso que eles fizeram.
O internauta começa bruscamente a receber mensagens com links estranhos
ou imagens que incitam cliques ingênuos, sem desconfiar que, ao clicar, confia
o controle de seu computador a um malfeitor instalado a milhares de
quilômetros. Enquanto a vítima preenche um formulário ou joga paciência, sua
máquina, que se transformou em “zumbi”, descarrega instruções, parâmetros e
listas de endereços, antes de tornar-se um veiculador de mensagens spam à razão
de dezenas por segundo, por meio de seu próprio computador. Em consonância com
outras “máquinas zumbis” da rede, o algoritmo cavalo de Troia introduzido na
máquina modifica, reescreve e redireciona as mensagens de forma a encontrar
brechas em filtros antispam.
Os robôs vomitadores de spam se tornaram tão tirânicos que chegam a ter o
mundo nas mãos ao reduzir milhares de computadores a armas cúmplices de um
cérebro desequilibrado. O sol jamais se põe em seu império: atentos à rotação
terrestre, impulsionam suas mensagens no ritmo da alternância entre o sono e a
vigília das populações. O projeto do emissor de spam é o mesmo do crime
organizado. Seus mecanismos não têm por objetivo vender objetos ou serviços, e
sim recolher números de cartão de crédito e senhas, abrir caminhos por entre as
contas bancárias dos internautas, paralisar os serviços da web, sobrecarregar
servidores, extorquir dinheiro e neutralizar adversários.
Hoje, somos todos cativos desse sistema. Sem dúvida, nossas defesas se
consolidam, nossos e-mails ajudam os sistemas de filtragem a triar o joio do
trigo, os motores de busca mantêm distantes dos resultados os sites e
comentários considerados spam, mas a infecção não para de se propagar.
Mais fundamentalmente, o spam nos convida a refletir sobre o papel da
internet. Responder a essa pergunta obriga a imaginar o que seria, para cada um
de nós, um uso legítimo, sensato e honesto da tecnologia. O spam é, de certa
forma, a face sombria da rede mundial de computadores; é o oceano que contorna
a pequena ilha onde vivemos.
Finn Brunton
é professor de Mídia, Cultura e Comunicação da New York University. Autor de
Spam. A shadow history of the Internet [Spam. Uma história sombria da
internet],MIT Press, Cambridge (Estados Unidos), 2013.