Por Mauro Santayana
Em seu
blog
15/05/2014
(Jornal do Brasil) -Tenho, por motivos que não vêm ao caso, amigos no
norte de Portugal, em pequena cidade com bela ponte romana que atravessa o Rio
Lima, perto de Vianna do Castelo.
Um dia, há muitos anos, estando por lá, em férias, resolvi sair em domingo
calmo, para dar uma volta. De repente, já à tarde, me vi sobre a velha ponte de
pedra, a alguns metros de pescador de meia idade, olhando as duas margens do
rio. Nessa época do ano, não chovia e a correnteza diminuía de força e de
tamanho.
Estávamos ali, em silêncio, quando, ao longe, vi aparecer massa compacta
de vira-latas, mais parecida a uma matilha de cães selvagens do que a animais
abandonados que tivessem fugido para o rio.
Quando se aproximaram, uns encostados aos outros, parecendo cercar alguma
coisa, começamos a ouvir uivos. Lancinantes.
Acho que fizemos desfavor aos lobos, ao domesticá-los. Ao conviver com os
homens, e se tornarem cães, eles aprenderam coisas boas e ruins, e talvez, das
más coisas, mais do que deveriam aprender.
Pensei em descer à areia escura, para ver o que ocorria; mas, como os
cães não deixassem de se mover, em direção à ponte, esperei que eles se
aproximassem.
Estavam cercando algo, porque o círculo quase perfeito que faziam evoluía
como um cardume de piranhas dentro da água, rodeando sua
presa.
À medida que os cães chegavam mais perto, os uivos iam se tornando
mais agudos e mais desesperados.
Vi então, no meio deles, um cão menor e mais franzino, que estava sendo
agredido pelos outros.
Os que estavam mais próximos rosnavam, e latiam com ódio para ele;
os outros fechavam sua passagem, quando tentava abrir caminho para
se afastar do grupo.
Em intervalos curtos, entre os latidos furiosos, mordiam seus flancos, o
rabo ou o focinho.
Apiedado, me aproximei do pescador e entabulei conversa:
- O que será que esse cão fez aos outros, para ser tratado assim? Nunca
vi uma coisa dessas. Será que pertence a outro bando, ou tentou
aproximar-se desse?
- Não, não, por aqui só há um grupo de cães, tenho certeza. Mas eles são
maus, fazem isso quase sempre, sem motivo.
- Mas por qual razão? – perguntei - eles agem como se soubessem o que
estão fazendo. Principalmente, os maiores, os mais agressivos.
- Eu acho que é uma questão de poder. E de medo.
- Medo de que?
- De que façam com eles o que eles estão a fazer agora a esse infeliz. Se
forem perversos, baterem mais, ferirem mais, rosnarem mais, conservam seu lugar
no grupo e os outros não se metem com eles. Eles não querem ter culpa como ele.
- Não querem ter culpa como ele? Mas se ele ao que parece, e como o
senhor mesmo disse ainda agora, não fez nada?
- Ele não tem nenhuma culpa, mas, pelos ganidos, parece que está a pedir
desculpas, como se tivesse, não lhe parece? É como se estivesse com esperança
de que, ao aceitar a culpa, qualquer culpa, eles terão pena dele e vão deixar
de mordê-lo. Mas não farão isso, o senhor não está a ver, pelo jeito deles?
O homem tinha razão.
Nunca, em minha vida, havia ouvido escapar de um cão sons tão tristes,
tão agudos, tão eloqüentes. Era como se pedisse para que parassem. Que o
deixassem ir embora. Que não sabia a razão de o terem escolhido, ou do por que
estava sofrendo tanto.
A essa altura os cães haviam passado por debaixo dos arcos da ponte em
que estávamos e seguiam para o leste.
O pescador me disse que eles iriam levá-lo para a primeira curva do rio,
que ficava fora das vistas da cidade.
Com o coração apertado, perguntei-lhe o que iriam fazer com ele.
- Vão matá-lo - respondeu o homem, lançando mais uma vez seu anzol na
água - e depois, comê-lo.
Lembrei-me desse episódio, que estava guardando para uma crônica, ao ler,
nos jornais, a história da morte bárbara da dona de casa Fabiane Maria de
Jesus, de 33 anos, amarrada e espancada por um grupo de assassinos, no bairro
de Morrinhos, na Baixada Santista, em Guarujá.
Uso a palavra assassinos porque, ao contrário do crime pretensamente
atribuído à sua vítima – de ter sequestrado uma criança para praticar magia
negra - o deles ficou provado pelo resultado: a morte, por linchamento,
de uma jovem mãe, a partir da divulgação, em site sensacionalista que
emula programas vespertinos de televisão, de um retrato falado que teria
servido para a “identificação” da vítima pelo grupo de psicopatas que a matou.
Temos tido, no Brasil, nos últimos meses, inúmeros exemplos desse tipo.
Como se não bastassem milhares de mortes de suspeitos, por auto de
resistência à prisão, ou em circunstâncias não esclarecidas, pela polícia,
pessoas consideradas aparentemente “normais”, estão fazendo “justiça”, ou
melhor, cometendo crime de tortura e homicídio, com as próprias mãos.
Descarregando seu ódio, seu recalque e suas frustrações, com porretes ou
pedaços de cano nas mãos.
Como cães enlouquecidos.
O linchamento é a festa dos assassinos, o playground, ou carnaval dos
psicopatas, o recurso mais covarde dos canalhas.
Nada o justifica.
Quem quer punir alguém por um crime, chama a polícia e o entrega à
justiça. Quem quer cometer um crime, usa a circunstância de o outro estar
cercado, inerme, em minoria - principalmente quando se trata de alguém mais
velho, muito jovem ou de uma mulher - para dar vazão aos seus instintos mais
baixos, se assenhoreando do corpo do outro, vibrando a cada pancada, a cada
paulada, a cada pontapé, bebendo do seu medo, da sua vulnerabilidade, de seu
pavor diante da iminência da morte.
Não existe nenhuma diferença entre matar uma criança em um ritual de
magia negra e participar do assassinato coletivo de uma mãe.
Os homicidas que humilharam, espancaram e mataram Fabiane Maria de Jesus,
devem ser encontrados e punidos, como devem ser os responsáveis pela divulgação
do retrato falado e do boato, que não tinham sequer a confirmação do
desaparecimento de qualquer criança no município. E que, provavelmente, queriam
apenas aumentar o número de visitantes do blog.
A punição maior deve vir da própria consciência dos culpados. Eles
mereceriam ouvir, de novo, a cada noite, a cada sonho, para sempre, os apelos
dramáticos de sua vítima. Ver, em sua mente, até o último de seus dias, o olhar
apavorado de Fabiane, clamando por sua vida.
É isso que nos dá vontade de desejar-lhes, esperando que, em um país que
está perdendo a razão em nome do combate à violência, em que não existe mais a
presunção de inocência, eles não venham, também, a ser linchados um dia. Se
chegar sua vez e seu momento, como chegou, para o cachorro castanho que vi,
cercado pelos outros, no areal do rio Lima.