sábado, 3 de maio de 2014
por Ana Lucia Sorrentino
No domingo de
Páscoa entrei no Facebook e me deparei com uma charge que resumiu de uma só vez
tudo o que vem me aborrecendo terrivelmente já há um bom tempo: Jesus, ao
centro, dizendo que multiplicara pães e peixes e dera aos famintos. Ao seu
redor, uma turma de revoltados o chamava de comunista, de assistencialista, de
populista e de “petralha”. Referiam-se aos famintos como
“vagabundos” e gritavam contra o “bolsa-esmola”, defendendo o ensino da pesca
em lugar da doação de peixe. Por fim, mandavam Jesus ir para Cuba. Acima
da imagem, a frase: “Será que um dia a ficha cai?”.
Desde
que comecei a postar sobre o que me agrada na esquerda, vira e mexe alguém
invade o meu mural usando exatamente essas palavras para combater minha defesa
de um mundo menos desigual. Seus “argumentos” vão de xingamentos a gargalhadas,
que acabo deletando sumariamente, porque não há diálogo possível nesses termos.
Tenho
me perguntado todos os dias sobre o real motivo desse desproporcional ódio ao
PT e à esquerda, porque jamais senti isso com tanta intensidade como no último
ano. À medida que as eleições se aproximam, a animosidade contra o PT se
recrudesce de forma assustadora. Os que têm manifestado seu ódio tentam, muitas
vezes, justificar sua sistemática oposição ao governo recorrendo aos episódios
de corrupção que nada têm de diferente dos de governos anteriores, senão o fato
de que quando o acusado é petista a lei é moldada artificialmente com o
objetivo de mandá-lo para a cadeia, enquanto acusados direitistas se safam, até
porque os julgamentos são tão adiados que os crimes prescrevem. Mas estou me
convencendo de que o grande pedregulho no sapato de quem odeia o PT é a
redistribuição de renda. O olhar especial que o PT tem para os mais pobres e
seu esforço para diminuir a imensa e doentia desigualdade que vivemos.
Passei
meu domingo de Páscoa entre cristãos. Clima de confraternização em meio à
prosperidade. Orações, agradecimentos, fartura. Em certo momento escutei um
militante da direita dizer que “agora era torcer pro Brasil perder a Copa,
porque só o povo estando muito aborrecido com uma derrota na Copa pra não votar
na Dilma”. Considerei isso uma clara declaração de que o atual governo é muito
bem sucedido. Paradoxalmente, mais tarde, alguém citou um artigo da Veja,
demonstrando preocupação com a “terrível situação do Brasil”. Não pude me
conter: - Não leia a Veja, por favor. – pedi. Mas eu quis saber qual
seria, exatamente, a “terrível situação do Brasil”, porque não me parecia que
estavam se referindo ao Brasil em que vivo. De mais a mais, se a situação do
Brasil fosse tão terrível assim, não seria preciso perder a Copa para o povo
não votar na Dilma... Iniciou-se aí uma conversa que enveredou por
um caminho tortuoso de citações duvidosas de fatos substancialmente
irrelevantes que tentavam desenhar uma realidade que eu não reconhecia. E que,
por fim, me levou à inevitável pergunta: “mas, afinal, o que piorou na vida de
vocês nos últimos dez, onze anos?” Silêncio. Que alguém quebrou expressando
pleno repúdio a “todo e qualquer tipo de bolsa”. Por quê? – perguntei. As
pessoas em geral acham injusto o governo cobrar impostos dos mais afortunados e
redirecioná-los a miseráveis. E todas as vezes em que converso sobre isso
percebo que quase ninguém tem consciência do que é “estar abaixo da linha da
miséria”. Apoiam-se em casos pontuais de declarações infelizes dadas a jornais
tendenciosos sobre o bolsa-família “não dar nem pra comprar um jeans pra minha
filha” e desconsideram completamente que há gente que passa fome. E que quando
alguém não tem o que comer, não tem força nem para pensar em trabalhar. Quanto
mais para ir à escola, evoluir, aprender um ofício, procurar um emprego. Para
aprender a pescar é preciso ter força para segurar a vara. Para frequentar uma
escola é preciso ter algo para comer e algo para vestir. No mínimo.
Quando
falo sobre isso sinto que há uma enorme refratariedade no ar. Talvez porque só
consigamos ter empatia pelo que está muito perto de nós, não sei. Talvez porque
alguém da classe média consiga sentir mais dó de alguém que não tem dinheiro
para comprar um tênis de marca do que de alguém que não tenha um naco de pão
pra comer. Porque esta última realidade está tão distante da sua que o
reconhecimento é difícil.
Me
intriga especialmente o repúdio de cristãos à redistribuição de renda. Porque
se alguém tem Cristo como seu líder espiritual e se o idolatra como exemplo de
bondade e caridade, qual a lógica desse mesmo alguém refutar tanto a ideia de
que a riqueza deve ser minimamente redistribuída?
Questionaram-me
sobre se acho certo os impostos cobrados dos mais ricos serem transferidos para
os mais pobres. Sim, acho. Acho certa toda e qualquer ação que redistribua
renda. Perguntaram-me se acredito que o governo está fazendo isso. Sim,
acredito. Cada vez que se cobra mais impostos de ricos e menos de pobres, se
distribui renda. Cada vez que se aumenta o custo de serviços públicos para
bairros nobres e se diminui para a periferia, se distribui renda. Cada vez que
se direciona impostos que os mais ricos pagam para beneficiar os mais pobres
com o bolsa-família, bolsa-escola e outros programas do mesmo tipo, o governo
está redistribuindo renda.
Mas
parece-me que as pessoas não entendem um ponto crucial desses programas: quando
se redistribui renda, não é apenas o miserável que está sendo beneficiado.
TODOS estamos sendo beneficiados. Porque o governo está não só possibilitando
ao pobre que se alimente, frequente uma escola, procure um emprego, etc., mas
está transformando-o em um consumidor. Está injetando dinheiro no mercado.
Aquele
que até então não podia comprar comida para alimentar sua família, ou roupa, ou
seja lá o que for, passa a fazê-lo. E quando vai às compras está movimentando a
economia. Isso é garantia de que o dono do mercado ou da loja venderá mais,
conseguirá manter seu estabelecimento funcionando, precisará de mais empregados
para ajudá-lo e poderá consumir mais também. Esse empresário pagará seus
impostos e eles serão novamente redirecionados e assim cria-se um ciclo de mais
prosperidade. Além disso, aquele que recebe o benefício sai de uma situação da
qual jamais sairia se não recebesse alguma ajuda, porque sabemos muito bem que
quanto menos se tem, menos chance de sair dessa situação se tem também.
Ninguém, ou quase ninguém, dá emprego a um mendigo. Em última instância, se for
pra sermos altruístas egoístas, temos que concordar que um mendigo a menos, um
assaltante a menos, um flanelinha a menos nas ruas sempre representará uma
melhoria nas vidas de todos nós.
Também
já escutei, algumas vezes, que esse dinheiro que é entregue às famílias pobres
acaba não sendo usado para os fins a que se destina. Que a mulher que o recebe
entrega-o ao marido para que ele vá beber no bar. Mas esses programas têm
mecanismos de controle que conseguem, ao menos em parte, cobrar dos
beneficiados aquilo que ficou acordado. E, se em casos pontuais o marido for
beber no bar, ainda assim ele estará consumindo, ou seja, injetando dinheiro na
economia. Claro que não é o ideal, mas também não é o que ocorre massivamente.
Outra
crítica que sempre ouço sobre as políticas de transferência de renda é de que
elas produzem pessoas acomodadas, que se habituam a receber dinheiro do governo
e passam a não querer trabalhar. Eu não sei exatamente quais os parâmetros que
as pessoas têm para afirmar tal coisa. Mas, para mim, é absolutamente
inimaginável acreditar que alguém que receba, digamos, R$70,00 do governo para,
assim, completar uma renda mensal de R$140,00, possa suprir todas as suas
necessidades com isso, a ponto de não querer mais trabalhar. Para mim, soa como
piada. De mais a mais, embora o governo não estipule prazo determinado para
recebimento dos benefícios, mais de 1,7 milhão de famílias já devolveu o cartão
espontaneamente, o que vai contra a tese de que o governo está criando
vagabundos.
Por
fim, me perguntaram o porquê da ausência desses que defendem o bolsa-família em
ações como distribuição de café da manhã ou sopão aos mendigos, pelas ruas da
cidade. Eu respondi que acredito que quando se trabalha em prol de um programa
como o bolsa-família se faz muito mais do que isso. E quando cheguei à minha
casa, metabolizando tudo o que havia sido conversado nesse domingo cristão,
lembrei de uma frase de Paulo Freire que diz com mais precisão o que eu queria
dizer:
“Eu
sou um intelectual que não tem medo de ser amoroso, eu amo as gentes e amo o
mundo. E é porque amo as pessoas e amo o mundo, que eu brigo para que a justiça
social se implante antes da caridade.”
Nasci,
cresci, e virei mulher vendo a elite só lembrar de que os pobres existem quando
precisa deles para lhe prestar serviços a preços módicos ou quando tem que,
forçosamente, se deparar de frente com eles. Hoje, com as trocas de opiniões
nas redes sociais, percebe-se
claramente o quanto a elite está incomodada por ver uma hierarquia de
subjugação solidamente alicerçada pelo capital sair da zona de conforto e ter
que se repensar. A educação, a inclusão, a informação mais acessível a todos e
a consciência da cidadania são fatores que vêm competir com o simples poder
aquisitivo. E isso se conquistou com um governo de esquerda. Quero crer que
apenas a ignorância possa explicar essa resistência em enxergar que
um mundo menos desigual seria mais confortável para todos. Se não for por
ignorância, o que explicaria isso? Tenho medo de pensar em outra resposta.
Ana Lucia
Sorrentino
Alguns links interessantes para entender melhor: