Nestlé paga a município 1 centavo por litro de água vendido a R$ 2,20
por Marina Almeida
Abril 30, 2014
Em 1 de maio de 2014
Da varanda do
apartamento onde mora, Alzira Maria Fernandes olha para o Parque das Águas, em
São Lourenço (MG), com tristeza. “Só acha bonito quem não viu como era antes.
Eu frequentava muito ali. Era uma maravilha. Agora a Nestlé está acabando com
tudo.” A principal preocupação da aposentada não está nos jardins planejados
nem na mata nativa que o espaço, de 430 mil metros quadrados, abriga, mas no
que ele esconde em seu subsolo: nove fontes de raras águas minerais e gasosas,
com propriedades medicinais, que começaram a se formar há algumas dezenas ou
centenas de anos.
“Água nenhuma mais tem sabor. A fonte Magnesiana chegou a secar, agora
voltou, mas só cai uma tirinha, tirinha. E era bastante”, lamenta Alzira. No
sul de Minas Gerais, ela e um pequeno grupo de moradores de São Lourenço
acreditam que a exploração das águas para engarrafamento está afetando a
qualidade do líquido e a vazão nas fontes. Reunidos na associação Amar’Água,
eles tentam lutar contra a gigante multinacional e a legislação brasileira,
guiada pela lógica da exploração comercial desse recurso mineral.
Alzira hoje evita ir ao parque, “para não passar raiva”, mas se orgulha
de conhecer sua história. “Olha como era bonito. Até o presidente Getúlio
Vargas vinha aqui. E hoje está desse jeito…”, diz, ao mostrar fotos antigas, de
quando a cidade, surgida em torno de suas águas minerais, era um grande polo de
turismo e tratamentos medicinais no Brasil. Mas o saudosismo dá logo lugar ao
senso prático. Ela se esquece dos turistas de chapéus e saias rodadas e de suas
gavetas sai uma série de documentos que ela empilha sobre a cama. São pareceres
ambientais, estudos, laudos e ofícios sobre a exploração das águas minerais de
São Lourenço pela Nestlé.
A maior parte dos documentos é do processo de 2001 que o Ministério
Público Estadual moveu contra a empresa, depois de protestos da população sobre
alterações no sabor e na vazão das águas do parque. Na ocasião, foram
encontradas irregularidades na exploração de um poço, o Primavera – aberto sem
autorização e cuja água passava por um processo de desmineralização, proibido
pela legislação brasileira (link para a matéria com essa história). O poço foi
fechado, mas outras questões levantadas na época continuaram sem resposta –
como a falta de um estudo maior sobre a região, que permita determinar com
precisão a capacidade de reposição dos aquíferos e a quantidade segura de
extração de água para garantir a sustentabilidade do recurso.
Proteção cultural
“Uma água que cura as pessoas é um presente que a natureza nos oferece de
graça. É muito especial e o que está acontecendo aqui é um sacrilégio. Essa é
uma luta da sociedade civil, de quem está vendo o problema e não tem amarras”,
diz a terapeuta Nair Ribas D’Ávila, que é da Amar’Água e participa das
mobilizações contra a Nestlé desde 2001. Descontentes com a fiscalização
existente – realizada pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) e
pela Superintendência Regional de Regularização Ambiental (Supram) da
Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad),
responsável pelo licenciamento ambiental –, o grupo busca na cultura uma forma
de garantir maior controle e proteção à área.
A associação quer transformar o espaço num geoparque, uma área de
significativo patrimônio geológico que serve ao desenvolvimento local,
sobretudo pelo turismo, e também à proteção e à educação ambiental. “É pelo
subsolo que nós estamos lutando”, resume Alzira. Para isso, a Amar’Água entrou
com um pedido de tombamento do ‘recurso hídrico diferenciado’ no Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), do governo federal. A ideia
é, após essa fase, solicitar sua inclusão na Rede Mundial de Geoparques (Global
Geoparks Network) da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e
a Cultura (Unesco).
O percurso, no entanto, não deve ser simples. “A água é um bem muito
difuso. Também serve ao saneamento e ao abastecimento, por exemplo, por isso a
consecução prática deste projeto é mais complicada. Envolve diferentes órgãos,
como o Iphan e a Agência Nacional de Águas”, aponta o promotor Bergson Cardoso
Guimarães, que coordena 79 promotorias ambientais da região da Bacia do Rio
Grande, à qual São Lourenço pertence. Outra questão ainda sem resposta é se
esse tombamento impediria a extração de água para o engarrafamento.
Para o promotor, um passo importante, e mais simples, é o tombamento do
parque – o único sem nenhum tipo de proteção cultural entre as cidades do
chamado Circuito das Águas de Minas Gerais. As fontes foram descobertas numa
área particular que nunca passou para a iniciativa pública e, quando a Nestlé
adquiriu a Perrier, então proprietária da Companhia de Águas de São Lourenço,
em 1992, tornou-se também a responsável pelo parque. Guimarães acredita que a
fiscalização e a prestação de contas ao Instituto Estadual do Patrimônio
Histórico e Artístico de Minas Gerais (Iepha) seria uma forma a mais de
resguardar esse bem.
“Hoje é possível juridicamente a empresa destruir todo o parque, porque
não há um mecanismo que limite isso. O tombamento submete o bem a restrições,
garante a segurança contra a demolição e a obrigação de manter um bom estado de
conservação”, diz Marcos Paulo de Souza Miranda, da Promotoria de Justiça de
Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas Gerais, que entrou com o
pedido no Iepha. Ele explica que o mecanismo deve proteger os fontanários, o
balneário e o projeto urbanístico do parque, que tem valores culturais,
arquitetônicos e históricos de relevância. “Descobrimos, por exemplo, que essas
águas são utilizadas desde 1817 pelo menos, e não 1890 como se acreditava”,
revela.
Além da preservação do parque e do estímulo ao turismo que um bem tombado
pode trazer, a cidade também se beneficiaria com mais recursos do ICMS
Patrimônio Cultural, também conhecida como Lei Robin Hood. Essa lei garante
para os municípios mineiros com bens tombados um repasse maior do Imposto sobre
a Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).
Os moradores que se mobilizam contra a exploração da Nestlé, entretanto,
receiam que o tombamento só do parque se volte apenas para a preservação de
aspectos arquitetônicos e históricos, quando o que eles mais temem é a exaustão
do aquífero – o reservatório subterrâneo de águas.
Identidade
São Lourenço desenvolveu-se ao redor do Parque das Águas. Hoje, o lago
reflete os altos edifícios da Avenida Comendador Costa, onde o trânsito de
charretes turísticas se mistura com o de carros e motos da cidade. Lá dentro,
em suas novefontes, algumas dos anos 1930, é possível experimentar diferentes
tipos de água: magnesiana, alcalina, sulfurosa, ferruginosa e carbogasosa,
entre outras. Na Gruta dos Milagres, a imagem de Nossa Senhora dos Remédios,
encontrada no local em 1936, guarda centenas de mensagens de agradecimento às
curas alcançadas pelo uso das águas. Às portas do parque, em cestas de vime,
ambulantes vendem copinhos coloridos para os turistas provarem os sabores
característicos de cada água. Mas, nas ruas da cidade, é a garrafa de água São
Lourenço que dá forma aos orelhões públicos – sinal de um embate entre os usos
tradicional e comercial desse recurso natural.
No Vale do Rio Verde, não apenas a cidade cresceu em torno das águas como
também seus moradores, que aprenderam desde cedo a valorizá-las. O turismo
ainda emprega boa parte deles, mas sua relação com a região vai além do
trabalho e desenvolvimento econômico. Em São Lourenço, água mineral é saúde. A
palavra foi a primeira a ser citada como sinônimo do recurso natural por 64,08%
dos 412 moradores entrevistados por Alessandra Bortoni Ninis, que estudou o
tema em sua pesquisa de mestrado, defendido na Universidade de Brasília em
2006. Em seguida vieram vida (16,99%) e turismo (14,32%).
O estudo também mostrou uma forte relação da população com o consumo
desse recurso: 82% dos moradores tinham o costume de beber água mineral, 64%
deles diariamente. Poucos, no entanto, eram os que compravam garrafas ou galões
da bebida nos mercados: 85,44% deles buscavam a água nas fontes. “A cidade dá
um valor altíssimo a sua água, mas não tem acesso”, diz Alessandra,
referindo-se à entrada paga do parque. No município, há ainda uma fonte externa
que é a mais usada pela população local (60,19% dos entrevistados).
Atento a essa relação diferente da população com suas águas, identificada
no levantamento histórico realizado para o pedido de tombamento do parque, o
Ministério Público também deve recomendar o registro da utilização das águas
minerais na cidade – um mecanismo de preservação da tradição imaterial. “É
inédito o registro do uso da água como bem cultural imaterial no Brasil, talvez
até no mundo. Esse instrumento pode garantir o direito de eles manterem um
relacionamento diferenciado com essas águas, facilitando o acesso dos moradores
às fontes e à água do parque, por exemplo”, explica o promotor Miranda.
O registro de bens imateriais, segundo ele, é uma tendência
internacional. Em Minas, já foram registrados, por exemplo, o toque dos sinos
de São João del-Rei e o modo de fazer o queijo da Serra da Canastra. A
promotoria deve recomendar o registro após a conclusão do tombamento do parque,
que Miranda acredita estar concluído ainda este ano.
Polêmica
Para Alessandra, a proteção cultural talvez seja uma saída para a região.
“É preciso cuidado com esse patrimônio, que é mundial. Um lugar que concentra
nove tipos de água mineral é único. Esse pode ser também um mecanismo de
proteção da água mineral, já que não temos um eficiente para a água subterrânea
no Brasil”, diz.
A crítica à legislação – que trata o recurso como um minério,
regulamentado pelo Código de Mineração, e não segue às diretrizes da Política
Nacional dos Recursos Hídricos – também é feita pelo promotor Guimarães. “É
preocupante porque as leis muitas vezes são dominadas por um padrão econômico
de exploração e crescimento a qualquer custo. A água mineral não é só um
minério a ser explorado, é igualmente um bem sociocultural importante para a
identidade dessa comunidade”, diz o coordenador regional das promotorias de
Justiça e Meio Ambiente da Bacia do Rio Grande. (leia mais sobre a legislação
aqui).
Prefeito de São Lourenço pelo segundo mandato, José Sacido Barcia Neto
(PSDB), o Zé Neto, como é conhecido, é contrário a esses mecanismos que, para
ele, podem burocratizar a gestão. “O tombamento vai engessar melhorias no
parque.
Precisamos é de uma boa política de relacionamento com a Nestlé e com os
órgãos fiscalizadores.” Zé Neto se diz favorável apenas ao tombamento da
cobertura vegetal das áreas de recarga. “No aspecto fisiográfico, sim, acho que
tem de ter uma caracterização desse tombamento: um prédio naquela mata não
pode.”
Exploração
“Nestlé-free zone” (área sem Nestlé) diz o cartaz, com o sinal de
proibido sobre o logo da empresa, na porta da casa de Alzira. “Aqui não entra
mais nada da Nestlé. Proibi, e quando saio também nunca tomo água da Nestlé.
Tomo qualquer outra se for preciso.” Na disputa entre a multinacional e o grupo
de moradores, a dificuldade de acesso às informações da empresa alimenta sua
revolta. “A gente não tem controle de nada, não sabe quanto sai de água para o
engarrafamento, não sabe nem se eles pagam ICMS para cá.”
Entre os documentos que Alzira guarda em sua casa está a cópia de um
estudo sobre a região do Circuito das Águas, publicado, em 1998, pela Companhia
de Pesquisa de Recursos Minerais Serviço Geológico do Brasil (CPRM) – uma
empresa pública federal vinculada ao Ministério de Minas e Energia. Entre as
conclusões apontadas na época estava o rebaixamento contínuo dos níveis
estáticos das fontes. Ou seja, a distância entre a superfície do terreno e o
nível da água dentro do poço, antes de ser iniciado o bombeamento, tinha
aumentado. Com isso, a água da fonte alcalina, por exemplo, que antes brotava
na superfície, já estava a três metros do chão. Também mostrou que o nível da
água no aquífero, o nível piezométrico, havia sofrido rebaixamento.
O estudo ainda apontou que os aquíferos tinham produtividade limitada e
que, portanto, as demandas deveriam “limitar-se às adequações existentes”.
Também comparou a qualidade química e a vazão das águas de então com um estudo
realizado no início do século 20. Os resultados indicaram que houve diminuição
em peso dos principais componentes das águas, além de acentuada redução de
vazão em duas fontes de São Lourenço. Diz o documento: “possivelmente este
fenômeno esteja associado a ações antrópicas como desmatamento em áreas de
recarga e à superexploração dos aqüíferos através dos poços em explotação
[extração para fins econômicos] e dos novos poços perfurados”.
O promotor Guimarães conta que há muitos questionamentos em torno disso,
pois embora o estudo indique a exploração das águas como causa possível dos
problemas identificados, não afirma isso com certeza. A conclusão do documento
apontou a necessidade de estudos complementares, que permitissem um maior
conhecimento da dinâmica dos aquíferos, o controle de fontes potencialmente
contaminantes na região e a determinação das reservas de água mineral, com o
que seria possível estabelecer “um regime de exploração racional dos
aquíferos”.
“É uma área muito sensível, que possui uma condição geológica muito
particular, por isso a necessidade de um estudo maior e mais completo”, explica
Décio Antônio Chaves Beato, que é hidrogeológo da CPRM e trabalhou na pesquisa
de 1998. “O resultado das ações de hoje muitas vezes é percebido apenas no
longo prazo e, se descobrirmos o problema só muitos anos depois, talvez seja
tarde ou fique mais difícil de revertê-lo”, ressalta. Ele conta que um estudo
desse tipo pode levar até quatro anos. Outro risco, diz, vem do fato de a área
urbana da cidade estar muito próxima das fontes, por isso seria necessário um
grande controle ambiental na cidade.
Novo estudo
A pesquisa mais completa sobre a área, sugerida em 1998, nunca foi feita.
“Vamos ao parque e sentimos que a água está diferente. Precisamos de um estudo
que compare a qualidade da água hoje com o que era antes, para saber o que está
acontecendo, mas parece que isso não é óbvio”, contesta Nair, do Amar’Água.
O promotor Guimarães aponta outras questões importantes sobre a região
que precisariam ser esclarecidas, como a determinação de onde fica a área de
recarga de água dos aquíferos, das áreas que não podem ser urbanizadas por
conta disso e se há algum problema de contaminação. “Só que esses estudos ficam
caros e precisa haver uma demanda política para a CPRM, pois se trata de uma
empresa pública”, diz.
Em busca de apoio para a solicitação desse novo estudo, o grupo Amar’Água
entrou em contato com deputados mineiros. Em outubro, o relator do projeto do
novo Código de Mineração na Câmara, Leonardo Quintão (PSDB), protocolou um
ofício junto à CPRM solicitando que fosse verificada a possibilidade de
elaboração de um novo estudo. “Mas não tivemos mais retorno”, conta Alzira.
Quintão não atendeu às solicitações de entrevista da reportagem. Já o deputado
mineiro Gabriel Guimarães (PT), presidente da Comissão Especial do Novo Código
de Mineração, prometeu acompanhar a questão: “Esse é um pleito justo, legítimo,
e me comprometo publicamente a acompanhar o andamento desse estudo que é
fundamental para a preservação das águas e a sustentabilidade da região.”
“Segundo a Nestlé, ela extrai menos da metade do que está autorizada pelo
DNPM. Sem esse estudo, fica difícil, senão impossível, de dizer se há ou não
superexploração”, ressalta o promotor Pedro Paulo Barreiros Aina, que instaurou
a Ação Civil Pública contra a empresa em 2001 e também defende a necessidade de
um estudo novo. Ele explica como é definido o limite de explotação pelo DNPM:
“O órgão utiliza um teste de bombeamento para verificar quanto tempo o poço
leva para se recuperar depois de a água ser bombeada por um certo número de
horas”.
Procurada pela reportagem, a Nestlé informou, em resposta por e-mail, que
em 2013 extraiu apenas 44% do volume de água total autorizado pelo DNPM:
“Corresponde ao necessário para o atendimento da demanda de vendas, da
comunidade e do fontanário do parque”. O DNPM não atendeu às solicitações de
entrevista da reportagem, mas, de acordo com informações obtidas com o órgão
por meio da Lei de Acesso à Informação, a capacidade de vazão do poço aprovada
é de 10 metros cúbicos por hora, ou seja, 10 mil litros por hora, por um
período máximo de 12 horas por dia. Isso tanto para abastecer a indústria, o
bebedouro do Parque das Águas e o Fontanário Público (água gasosa).
A empresa não divulgou a quantidade extraída, mas segundo os cálculos
feitos pela reportagem, a quantidade deve ser de cerca de 1,6 milhão de litros
por mês, que correspondem a 44% dos 3,6 milhões de litros autorizados pelo
DNPM. Em um ano, a empresa deve retirar, portanto, uma média de 19 milhões de
litros de água.
Divulgação de pesquisas
Presidente da Comissão das Águas da Câmara Municipal de São Lourenço, o
vereador Agilsander Rodrigues da Silva (Partido Social Liberal – PSL), o Gil,
conta que, em 2010, foi feita uma avaliação do aquífero de São Lourenço pela
universidade suíça Neuchatel, promovida pela Nestlé. “Fiz um requerimento na
Câmara questionando esse estudo e pedindo para me mandarem, mas não tive acesso
a ele até hoje”. Para o vereador, falta à empresa dar mais publicidade e transparência
aos trabalhos e pesquisas que realiza. Ele ainda questiona o motivo de o estudo
ser feito por uma universidade estrangeira. “Por que não uma universidade
brasileira? Por que não a Universidade Federal de Itajubá, que tem um curso de
engenharia hídrica, ou a Unicamp, a USP, que têm um grau elevadíssimo de
pesquisa?”
A associação Amar’Água também solicitou acesso ao estudo pelo Conselho
Municipal de Conservação e Defesa do Meio Ambiente (Codema), mas o pedido foi
negado pelo DNPM por serem dados de “divulgação restrita e sigilosos”, como diz
a resposta enviada ao órgão a que Alzira teve acesso.
Segundo a assessoria da Nestlé, os resultados da pesquisa foram
divulgados em setembro de 2010 em reunião com o grupo “Amigos do Parque”. Ainda
segundo a empresa, a universidade suíça foi escolhida por ter reconhecimento
mundial no setor de águas e o estudo foi realizado para garantir a explotação
sustentável das águas para engarrafamento e devidamente validado pelas
autoridades fiscalizadoras. A empresa, no entanto, não enviou uma cópia do
estudo, como solicitado pela reportagem.
“A comunicação dessas empresas com a população é muito difícil. Elas se
respaldam muito no sigilo industrial para não divulgar certas informações.
Mesmo para a Justiça dificultam o acesso a certos dados”, pontua Guimarães. O
promotor conta que há um novo inquérito civil em curso, que analisa se as
reclamações da população sobre a exploração das águas procedem e o que pode ser
feito judicialmente. “Apuramos responsabilidades, se há dano ou perspectivas de
dano que possa ser evitado, de uma fonte se extinguir, por exemplo”, explica. O
inquérito está em fase de perícia técnica.
Afastando-se do Parque das Águas, dos cafés, restaurantes e lojas de
artesanato, doces e queijos que o cercam, vemos novos bairros em construção.
São residências de veraneio, condomínios e hotéis. Castelinhos em estilo
europeu que convivem com casas de campo brasileiras e habitações populares.
Cercado por sete colinas, o município de 41 mil habitantes e 58 quilômetros
quadrados quer crescer.
O turismo ainda é o principal motor da economia de São Lourenço, que tem
o segundo maior número de leitos em hotéis do estado, atrás apenas da capital,
Belo Horizonte. Mas São Lourenço diversificou suas atividades nos últimos anos
e hoje é também um polo regional de serviços de saúde, educação e comércio. “Na
última década, a cidade saiu da faixa de 600 pontos comerciais para 1.600. As
fábricas de doces e malhas se profissionalizaram. Hoje exportam, e o número de
turistas tem aumentado de 12% a 17% ao ano”, diz o prefeito Zé Neto.
Para o promotor Bergson Guimarães, no entanto, o descontrole da ocupação
das áreas de recarga – onde a água da chuva, que irá se tornar mineral, se
infiltra no solo – e o aumento das fontes de poluição podem ter consequências
até mais graves que a própria exploração comercial da água. “Sem conhecimento
técnico-científico dessa área, ela pode estar sendo impermeabilizada de forma
irresponsável”, diz.
O vereador Gil acredita que um estudo maior sobre a região, como o
solicitado à CPRM, seria importante inclusive para ajudar a redefinir o Plano
Diretor do município. “Precisamos atualizá-lo até para assegurar a qualidade de
vida em São Lourenço.
Já que somos um município muito pequeno, precisamos ter muito cuidado com
a expansão urbana. Com esse estudo em mãos, poderíamos mudar o foco dessa
discussão, porque teríamos como comprovar onde estão as áreas de recarga.” Ele
cita o caso do Conjunto Habitacional Santa Helena, construído em 2011. “Dizem
que está numa área de recarga, mas não temos essa certeza e teve autorização do
Codema”, explica.
Gerente do departamento de meio ambiente de São Lourenço e membro do
Codema, Janimayri Forastieri de Almeida Albuquerque diz que um laudo técnico
apontou que aquela área não tinha uma importância tão grande para a recarga,
ainda que fosse considerada. A construção do loteamento foi liberada com
algumas condicionantes, como o calçamento com paralelepípedos e bloquetes, de modo
a facilitar a infiltração de água na área.
“Ficamos preocupados se devemos ou não impedir que uma obra seja
construída porque não temos certeza sobre quais são as áreas de captação de
água”, conta. Para ela, é importante que seja feito um estudo em toda a região
e não só em São Lourenço: “Às vezes deixamos de crescer para poupar um lugar,
quando um município vizinho pode estar atacando uma área até mais importante
para a recarga. O estudo da CPRM pode esclarecer essa situação e nos dar
parâmetros para estabelecer parcerias de proteção dessas áreas.”
Poluição
Outros problemas do crescimento urbano são o lixo e o esgoto da cidade.
No município há água encanada para todos, mas o esgoto coletado ainda não é
tratado. Em construção, a Estação de Tratamento de Esgoto (ETE) deve ser
inaugurada em 2015, segundo o prefeito. Enquanto isso, os detritos de São
Lourenço são despejados no rio Verde, numa área a jusante – abaixo – de onde
ocorre a captação de água para as fontes, o que, segundo Janimayri, não traz grandes
impactos para a água mineral. “Não significa que estamos certos de jogar
esgoto, até porque precisamos despoluir o rio”, ressalta.
O professor Reginaldo Bertolo, do Instituto de Geociências da USP, lembra
que outro cuidado importante deve ser a eficiência da captação desse esgoto.
Como a pressão nesses encanamentos é mínima, quando não negativa – ao contrário
do que acontece com a água, que chega às casas com alta pressão –, é muito
difícil identificar vazamentos na rede de esgoto.
Já os resíduos sólidos urbanos são despejados num lixão desde 1989. “Como
não temos área rural, nem sem água, não temos um local passível de
licenciamento ambiental de aterro sanitário”, explica Janimayri. Para resolver
o problema, São Lourenço criou um consórcio com os municípios vizinhos e, em
parceria com a Secretaria de Estado de Desenvolvimento Regional, Política
Urbana e Gestão Metropolitana (Sedru), implantará uma usina de triagem e
compostagem com embolsamento. “Resumidamente, faremos a triagem, a compostagem
e o que sobrar de resíduo orgânico vai ser embalado. Depois de certo tempo,
essas grandes embalagens são abertas e o que está ali se tornou um composto
orgânico que pode ser usado em áreas de reflorestamento”, explica Janimayri.
Ela conta que essa é uma tecnologia ainda inédita no Brasil e seu início está
previsto para agosto deste ano. Já o lixão existente deve passar por um
processo de recuperação, uma exigência para o licenciamento ambiental.
Retorno
Pela exploração das águas minerais de São Lourenço, a Nestlé pagou ao
governo brasileiro R$ 515.107,07 em 2012. Em 2013, até o dia 13 de dezembro,
esse valor era de R$ 445.545,41, segundo dados obtidos com o DNPM pela Lei de
Acesso à Informação. “O lucro das empresas engarrafadoras é muito maior e elas
ainda reclamam da tributação, fazem questionamentos jurídicos”, relata
Guimarães.
Como essa água é considerada um recurso mineral, está sujeita a uma
contribuição chamada Compensação Financeira pela Exploração de Recursos
Minerais (Cfem), que é dividida entre União (12%), Estado (23%) e município
produtor (65%). Em 2013, São Lourenço deve ter recebido, portanto, cerca de R$
290 mil pela exploração que a empresa faz de suas águas.
O recurso é a única receita a que têm direito os municípios onde há
explotação de água mineral, além do ICMS. De acordo com a legislação, a Cfem
para a água mineral corresponde a 2% sobre o faturamento líquido da venda do
produto mineral.
“Fico preocupado porque o valor é muito pouco perto do que a água
representa para o Brasil e para o município”, diz o vereador Gil.
O prefeito Zé Neto concorda que a Cfem é pequena, mas ressalta que a
empresa também patrocina eventos da cidade, como o Festival de Inverno. “Às
vezes o apoio é na divulgação ou com distribuição de água mineral, outras vezes
financeiramente, mas não é essa a grande significação, os valores são muito
pequenos. O grande retorno social que eles podem fazer é manter o parque e
preservá-lo bem cuidado para atrair turistas”, defende.
Entre os eventos patrocinados pela empresa está a Comenda Ambiental
Estância Hidromineral de São Lourenço, em que são condecoradas, no Dia Mundial
da Água, personalidades que contribuíram para o desenvolvimento do meio
ambiente, da cultura e do turismo. Na entrega das medalhas de 2013, que incluiu
dois gerentes da própria Nestlé, o Amar’Água esteve presente, protestando. Em
suas camisetas pretas, um leão, símbolo das fontes do parque, chora.
“Os organizadores não gostaram, mas foi um protesto pacífico. Não tinham
o que fazer. E conseguimos várias assinaturas para nosso abaixo-assinado”,
lembra Letícia Rodrigues, que fez a ilustração das camisetas usadas pelo grupo.
A estudante de direito de 19 anos é a mais jovem participante do Amar’Água.
Ela, que era criança quando houve a primeira grande mobilização pelas águas de
São Lourenço, em 2001, conta que conseguiu alguns apoios na faculdade, ainda
que muitos desconheçam as discussões sobre água mineral. “Falta informação, e
alguns também não querem saber o que se passa”, diz.
No dia 22 de março deste ano, na entrega da Comenda das Águas, os
manifestantes estiveram presentes e foram novamente impedidos de entrar com
seus cartazes no espaço reservado ao evento, na praça em frente ao parque. Do
lado de fora, fizeram seu protesto.
PS do Viomundo: Utilizando os números da reportagem: em 2012
a Nestlé pagou pouco mais de 515 mil reais para extrair 19 milhões de litros de
água. Isso dá R$ 0,027, dos quais São Lourenço embolsou cerca de R$ 0,015. Ou
seja, o município embolsou pouco mais de um centavo de uma água que é vendida a
R$ 2,80 num supermercado do Higienópolis, em embalagem de 1,26 litro. Ou seja,
o litro sai a R$ 2,20. Coloque aí todos os custos embutidos e, ainda assim,
estamos certos de que é um lucro extraordinário! Como a água de São Lourenço é
famosa por ser de São Lourenço, o marketing está feito. Vamos combinar que
engarrafar água não exige a mais revolucionária das tecnologias e assim vocês
podem ter uma ideia de como o brasileiro é mesmo bonzinho com seus recursos
naturais!