A crise ucraniana
acelera a recomposição do mundo.
12 de maio de 2014
A crise ucraniana evidenciou a magnitude da manipulação das opiniões
públicas ocidentais pelos grandes meios de comunicação, as cadeias de TV como a
CNN, Foxnews, Euronews e tantas outras, assim como pelo conjunto da imprensa
escrita alimentada pelas agências de imprensa ocidentais.
A maneira como o
público ocidental é desinformado é impressionante e, no entanto, é fácil ter
acesso a uma massa de informações de todos os quadrantes.
É muito preocupante ver como numerosos cidadãos do mundo se deixam
arrastar a uma russofobia nunca vista nos piores momentos da guerra fria.
A
imagem que nos dá o poderoso aparelho midiático ocidental, e que penetra no
inconsciente coletivo, é que os russos são “bárbaros atrasados” face ao mundo
ocidental “civilizado”.
O discurso muito importante que Vladimir Putin
pronunciou a 18 de Março na véspera do referendo na Crimeia foi literalmente
boicotado pelos meios de comunicação ocidentais, ao passo que dedicam um vasto
espaço às reações ocidentais, todas negativas naturalmente.
Contudo, na sua
intervenção Putin explicou que a crise na Ucrânia não fora desencadeada pela
Rússia e apresentou com muita racionalidade a posição russa e os interesses
estratégicos legítimos do seu país na era pós conflito ideológico.
Humilhada pelo tratamento que o Ocidente lhe deu desde 1989, a Rússia
despertou com Putin e começou a relançar uma política de grande potência
procurando reconstruir as linhas de força históricas tradicionais da Rússia
czarista e depois da União Soviética.
A geografia comanda muitas vezes a
estratégia.
Depois de ter perdido uma grande parte dos seus “territórios
históricos”, conforme a fórmula de Putin, e da sua população russa e não russa,
a Rússia atribuiu-se como grande projeto nacional e patriótico a recuperação do
seu estatuto de superpotência, de ator “global”, assegurando em primeiro lugar
a segurança das suas fronteiras terrestres e marítimas.
É precisamente isso que
o Ocidente, com a sua visão unipolar do mundo, lhe quer proibir.
Mas como bom
jogador de xadrez Putin tem vários lances de avanço graças a um conhecimento
profundo da história, da realidade do mundo, das aspirações de uma grande parte
das populações dos territórios anteriormente controlados pela União Soviética.
Ele conhece perfeitamente a União Europeia e o estado das opiniões públicas
ocidentais, pouco inclinadas a ver aumentar os orçamentos militares em período
de recessão econômica.
Ao contrário da Comissão Europeia, cujo projeto de
consolidação de um bloco político-econômico-militar euro-atlântico coincide com
o dos Estados Unidos, os cidadãos europeus na sua maioria não querem mais
ampliação da UE para Leste, nem com a Ucrânia, nem com a Geórgia, nem com
nenhum outro país da ex União Soviética.
Com suas gesticulações e suas ameaças de sanções a UE, servilmente
alinhada com Washington, mostra de fato que é impotente para “punir” seriamente
a Rússia.
Seu peso real não está à altura das suas ambições sempre proclamadas
de moldar o mundo à sua imagem.
O governo russo, muito reativo e malicioso,
aplica “respostas graduais”, tornando ridículas as medidas punitivas ocidentais.
Putin, altaneiro, dá-se mesmo ao luxo de anunciar que vai abrir uma conta no
Rossyia Bank de Nova York para ali depositar o seu salário!
Ele ainda não
mencionou a limitação no fornecimento de gás à Ucrânia e à Europa Ocidental,
mas todo o mundo sabe que tem esta carta na manga, o que constrange os europeus
a pensar numa reorganização completa do seu abastecimento de energia, o que
levará anos a concretizar.
Os erros e as divisões dos ocidentais põem a Rússia em posição de força.
Putin desfruta de uma popularidade excepcional tanto no seu país como junto às
comunidades russas dos países vizinhos e pode-se estar certo de que os seus
serviços de informação penetraram em profundidade os países anteriormente
controlados pela URSS e lhes dão informações em primeira mão sobre as relações
de força internas.
Seu aparelho diplomático dá-lhe argumentos sólidos para
retirar ao ocidente o monopólio da interpretação do direito internacional, em
particular sobre a questão espinhosa da autodeterminação dos povos.
Como se podia
esperar, Putin não deixa de mencionar o precedente do Kosovo para vilipendiar a
linguagem dúplice do ocidente, suas incoerências e o papel desestabilizador que
desempenhou nos Balcãs.
Neo-nazistas na Ucrânia. A propaganda midiática ocidental atingiu o
máximo após o referendo de 16 de Março na Crimeia.
A seguir, as vociferações
ocidentais subitamente baixaram de tom e o G7 na sua cimeira em Haia à margem
da conferência sobre segurança nuclear deixou de ameaçar excluir a Rússia do G8
como havia trombeteado alguns dias antes mas simplesmente anunciou “que não
participaria na cimeira de Sochi”.
Isto deixa-lhe a possibilidade de reativar a
qualquer momento este fórum privilegiado de diálogo com a Rússia, criado em
1994 a seu pedido expresso.
Primeiro recuo do G7. Obama por sua vez apressou-se a anunciar que não
haveria qualquer intervenção militar da OTAN para ajudar a Ucrânia, mas apenas
uma promessa de cooperação para reconstruir o potencial militar da Ucrânia,
composto em grande parte por material soviético obsoleto.
Segundo recuo. Serão
preciso anos para por de pé um exército ucraniano digno deste nome e
pergunta-se quem vai pagar a conta tendo em vista a situação catastrófica das
finanças do país.
Além disso, não se sabe exatamente qual é o estado das forças armadas
ucranianas depois de Moscovo ter convidado, aparentemente com algum êxito, os
militares ucranianos herdeiros do Exército Vermelho a reincorporarem-se no
exército russo respeitando as suas patentes.
A frota ucraniana já passou
totalmente ao controle russo.
Finalmente, outra marcha-atrás espetacular dos
Estados Unidos: haveria conversações secretas muito avançadas entre Moscovo e
Washington para fazer com que seja adotada uma nova constituição na Ucrânia,
para instalar em Kiev por ocasião das eleições de 25 de Maio um governo de
coligação em que os extremistas neo-nazis seriam excluídos e, sobretudo, para
impor um estatuto de neutralidade à Ucrânia, sua “finlandização” (recomendada
por Henry Kissinger e Zbigniew Brzezinsky), o que proibiria sua entrada na OTAN
mas permitiria acordos econômicos tanto com a UE como com a União Aduaneira
Euro-asiática (Rússia, Bielorrússia, Cazaquistão).
Se um tal acordo for
concluído, a UE será posta diante de um fato consumado e terá de resignar-se a
pagar a fatura da conversa a dois russos e americanos.
Com tais garantias Moscovo poderá considerar como satisfeitas suas
exigências de segurança, terá retomado o pé na sua antiga zona de influência
com o acordo de Washington e poderá abster-se de fomentar o separatismo de
outras províncias ucranianas ou da Transnitria (província da Moldávia povoada
de russos) reafirmando fortemente seu respeito pelas fronteiras europeias.
O
Kremlin oferecerá na mesma ocasião uma porta de saída honrosa a Obama.
Um golpe
de mestre para Putin.
Consequências geopolíticas da crise ucraniana.
O G7 não calculou que ao tomar medidas para isolar a Rússia, além do fato
de aplicar a si próprio uma “punição sadomasoquista” conforme a fórmula de
Hubert Védrine, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, precipitava ao mesmo
tempo um processo já bem avançado de profunda recomposição do mundo em
benefício de um grupo não ocidental dirigido pela China e pela Rússia reunidas
no seio dos BRICS.
Em reação ao comunicado do G7 de 24 de Março, os ministros
dos Negócios Estrangeiros do BRICS manifestaram imediatamente sua rejeição a
quaisquer medidas visando isolar a Rússia e aproveitaram para denunciar as
práticas de espionagem americanas voltadas contra os seus dirigentes e para
completar as coisas exigiram dos Estados Unidos que ratificassem a nova
repartição dos direitos de voto no FMI e no Banco Mundial, como primeiro passo
para uma “ordem mundial mais equitativa”.
O G7 não esperava uma réplica tão virulenta e rápida dos BRICS.
Este
episódio pode dar a pensar que o G20 de que o G7 e os BRICS são os dois pilares
principais, poderia atravessar uma crise séria antes da sua próxima cimeira em
Brisbane (Austrália) em 15 e 16 de Novembro, sobretudo se o G7 persiste em
querer marginalizar e sancionar a Rússia.
É mais ou menos quase certo que
haverá uma maioria no seio do G20 para condenar as sanções à Rússia, o que de
fato reverterá no isolamento do G7.
No seu comunicado os ministros dos BRICS
estimaram que decidir quem é membro do grupo e qual é a sua vocação cabe a todos
os seus membros “num pé de igualdade” e que nenhum dos seus membros “pode
unilateralmente determinar sua natureza e seu carácter”.
Os ministros apelam à
resolução da crise atual no quadro das Nações Unidas “com calma, elevação de
vista, renunciando a uma linguagem hostil, às sanções e contra-sanções”.
Uma
afronta para o G7 e a UE! O G7, que se colocou por si mesmo num impasse, é
prevenido de que deverá fazer concessões importantes se quiser continuar a
exercer uma certa influência no seio do G20.
Além disso, dois acontecimentos importantes anunciam-se nas próximas
semanas.
Por um lado, em Maio Vladimir Putin irá à China em visita oficial.
Os
dois gigantes estão a ponto de assinar um acordo energético de envergadura que
afetará sensivelmente o mercado mundial da energia, tanto no plano estratégico
como financeiro.
As transações não seriam mais feitas em dólar mas nas moedas
nacionais dos dois países.
Ao virar-se para a China, a Rússia não terá nenhum
problema para escoar sua produção gasista caso a Europa ocidental decidisse
mudar de fornecedor.
E no mesmo movimento de reaproximação a China e a Rússia
poderiam assinar um acordo de parceria industrial para a fabricação do caça
Sukhoi 25, fato altamente simbólico.
Por outro lado, aquando da cimeira dos BRICS no Brasil em Julho próximo,
o Banco de Desenvolvimento deste grupo cuja criação foi anunciada em 2012
poderia tomar forma e oferecer uma alternativa aos financiamentos do FMI e do
Banco Mundial, sempre reticentes em modificar suas regras de funcionamento,
para dar mais peso aos países emergentes e a suas moedas ao lado do dólar.
Finalmente, há um aspecto importante da relação entre a Rússia e a OTAN
pouco comentado na mídia mas muito revelador da situação de dependência em que
se encontra o ocidente no momento em que procede à retirada das suas tropas no
Afeganistão.
Desde 2002 a Rússia aceitou cooperar com os países ocidentais para
facilitar a logística das tropas no teatro afegão.
A pedido da OTAN Moscovo
autorizou o trânsito de material não letal destinado à ISAF (International
Security Assistance Force) por via aérea ou terrestre, entre Duchambém
(Tajiquistão), o Uzbequistão e a Estonia, através de uma plataforma multimodal
em Ulianovsk, na Sibéria.
Trata-se nada menos que o encaminhamento de toda a
intendência para milhares de homens que operam no Afeganistão, toneladas de cerveja,
vinho, camemberts, hambúrgueres, alfaces frescas, tudo transportado por aviões
civis russos, uma vez que as forças ocidentais não dispõem de meios aéreos
suficientes para sustentar uma deslocação militar desta envergadura.
O acordo
Rússia-OTAN de Outubro de 2012 ampliou esta cooperação à instalação de uma base
aérea russa no Afeganistão dotada de 40 helicópteros onde o pessoal afegão é
formado na luta anti-droga, à qual os ocidentais renunciaram.
A Rússia sempre
se recusou a autorizar o trânsito sobre o seu território de material pesado, o
que coloca um problema sério à OTAN no momento da retirada das suas tropas.
Com
efeito, estas não podem tomar a via terrestre Cabul-Carachi devido aos ataques
de que os comboios são objeto por parte dos talibans.
A via do Norte (a Rússia)
sendo impossível, os materiais pesados são transportados por avião de Cabul aos
Emirados Árabes Unidos, depois embarcados para os portos europeus, o que
multiplica por quatro o custo da retirada.
Para o governo russo a intervenção da
OTAN no Afeganistão foi um fracasso, mas sua retirada “precipitada” no fim de
2014 vai agravar o caos e afetar a segurança da Rússia e arrisca-se a provocar
um retorno do terrorismo.
A Rússia também tem importantes acordos com o ocidente no domínio do armamento.
O mais importante é sem dúvida aquele assinado com a França para a fabricação
nos arsenais franceses de dois porta-helicópteros num montante de 1,3 mil
milhões de euros.
Se o contrato for anulado no quadro das sanções, a França
deverá reembolsar os montantes já pagos mais as penalidades contratuais e
deverá suprimir vários milhares de empregos.
O mais grave será sem dúvida a
perda de confiança do mercado do armamento na indústria francesa como sublinhou
o ministro russo da Defesa.
Não se pode esquecer tão pouco que sem a intervenção da Rússia os países
ocidentais jamais teriam podido chegar a um acordo com o Irã sobre a não
proliferação nuclear, nem com a Síria sobre o desarmamento químico.
Estes são fatos que os meios de comunicação ocidentais silenciam.
A
realidade é que devido à sua arrogância, seu desconhecimento da história, do
seu desajeitamento, o bloco ocidental precipita a desconstrução sistêmica da
ordem mundial unipolar e oferece numa bandeja à Rússia e à China, apoiadas pela
Índia, Brasil, África do Sul e muitos outros países, uma “janela de
oportunidade” única para reforçar a unidade de um bloco alternativo.
A evolução
estava em marcha, mas lentamente e gradualmente (ninguém quer dar um pontapé no
formigueiro e desestabilizar bruscamente o sistema mundial), mas de repente
tudo se acelera e a interdependência muda as regras do jogo.
No que se refere ao G20 de Brisbane, será interessante ver como se
posiciona o México, após as cimeiras do G7 em Bruxelas no mês de Junho e dos
BRICS no Brasil no mês de Julho.
A situação é muito fluida e vai evoluir
rapidamente, o que vai exigir uma grande flexibilidade diplomática.
Se o G7
persistir na sua intenção de marginalizar ou excluir a Rússia, o G20 poderia
desintegrar-se.
O México, lançado nas redes do TLCAN e do futuro TPP deverá
escolher entre afundar com o Titanic ocidental ou adotar uma linha autônoma
mais conforme aos seus interesses de potência regional com vocação mundial
aproximando-se dos BRICS.
Autor: Pierre Charasse.
[*] Diplomata francês. Ocupou diferentes postos nas
Embaixadas da França na União Soviética, Guatemala, Cuba (1973-1983), México
(1989-1993). Conselheiro técnico no gabinete de Claude Cheysson, ministro das
Relações Exteriores e de Pierre Joxe, ministro do Interior (1984-86). Embaixador
no Uruguai (1993-1996), no Paquistão (2003.2005) e no Peru (2005-2008).
Embaixador itinerante encarregado da cooperação internacional contra a
criminalidade organizada e a corrupção (2000-2003).