terça-feira, 13 de maio de 2014

O repentino ressurgir Russo e as consequências geopolíticas da crise Ucraniana

A crise ucraniana acelera a recomposição do mundo.
  
12 de maio de 2014

A crise ucraniana evidenciou a magnitude da manipulação das opiniões públicas ocidentais pelos grandes meios de comunicação, as cadeias de TV como a CNN, Foxnews, Euronews e tantas outras, assim como pelo conjunto da imprensa escrita alimentada pelas agências de imprensa ocidentais. 
A maneira como o público ocidental é desinformado é impressionante e, no entanto, é fácil ter acesso a uma massa de informações de todos os quadrantes.
É muito preocupante ver como numerosos cidadãos do mundo se deixam arrastar a uma russofobia nunca vista nos piores momentos da guerra fria. 
A imagem que nos dá o poderoso aparelho midiático ocidental, e que penetra no inconsciente coletivo, é que os russos são “bárbaros atrasados” face ao mundo ocidental “civilizado”. 
O discurso muito importante que Vladimir Putin pronunciou a 18 de Março na véspera do referendo na Crimeia foi literalmente boicotado pelos meios de comunicação ocidentais, ao passo que dedicam um vasto espaço às reações ocidentais, todas negativas naturalmente. 
Contudo, na sua intervenção Putin explicou que a crise na Ucrânia não fora desencadeada pela Rússia e apresentou com muita racionalidade a posição russa e os interesses estratégicos legítimos do seu país na era pós conflito ideológico.



Humilhada pelo tratamento que o Ocidente lhe deu desde 1989, a Rússia despertou com Putin e começou a relançar uma política de grande potência procurando reconstruir as linhas de força históricas tradicionais da Rússia czarista e depois da União Soviética. 
A geografia comanda muitas vezes a estratégia. 
Depois de ter perdido uma grande parte dos seus “territórios históricos”, conforme a fórmula de Putin, e da sua população russa e não russa, a Rússia atribuiu-se como grande projeto nacional e patriótico a recuperação do seu estatuto de superpotência, de ator “global”, assegurando em primeiro lugar a segurança das suas fronteiras terrestres e marítimas. 
É precisamente isso que o Ocidente, com a sua visão unipolar do mundo, lhe quer proibir. 
Mas como bom jogador de xadrez Putin tem vários lances de avanço graças a um conhecimento profundo da história, da realidade do mundo, das aspirações de uma grande parte das populações dos territórios anteriormente controlados pela União Soviética. 
Ele conhece perfeitamente a União Europeia e o estado das opiniões públicas ocidentais, pouco inclinadas a ver aumentar os orçamentos militares em período de recessão econômica. 
Ao contrário da Comissão Europeia, cujo projeto de consolidação de um bloco político-econômico-militar euro-atlântico coincide com o dos Estados Unidos, os cidadãos europeus na sua maioria não querem mais ampliação da UE para Leste, nem com a Ucrânia, nem com a Geórgia, nem com nenhum outro país da ex União Soviética.
Com suas gesticulações e suas ameaças de sanções a UE, servilmente alinhada com Washington, mostra de fato que é impotente para “punir” seriamente a Rússia. 
Seu peso real não está à altura das suas ambições sempre proclamadas de moldar o mundo à sua imagem. 
O governo russo, muito reativo e malicioso, aplica “respostas graduais”, tornando ridículas as medidas punitivas ocidentais. 
Putin, altaneiro, dá-se mesmo ao luxo de anunciar que vai abrir uma conta no Rossyia Bank de Nova York para ali depositar o seu salário! 
Ele ainda não mencionou a limitação no fornecimento de gás à Ucrânia e à Europa Ocidental, mas todo o mundo sabe que tem esta carta na manga, o que constrange os europeus a pensar numa reorganização completa do seu abastecimento de energia, o que levará anos a concretizar.
Os erros e as divisões dos ocidentais põem a Rússia em posição de força. 
Putin desfruta de uma popularidade excepcional tanto no seu país como junto às comunidades russas dos países vizinhos e pode-se estar certo de que os seus serviços de informação penetraram em profundidade os países anteriormente controlados pela URSS e lhes dão informações em primeira mão sobre as relações de força internas. 
Seu aparelho diplomático dá-lhe argumentos sólidos para retirar ao ocidente o monopólio da interpretação do direito internacional, em particular sobre a questão espinhosa da autodeterminação dos povos. 
Como se podia esperar, Putin não deixa de mencionar o precedente do Kosovo para vilipendiar a linguagem dúplice do ocidente, suas incoerências e o papel desestabilizador que desempenhou nos Balcãs.
Neo-nazistas na Ucrânia. A propaganda midiática ocidental atingiu o máximo após o referendo de 16 de Março na Crimeia. 
A seguir, as vociferações ocidentais subitamente baixaram de tom e o G7 na sua cimeira em Haia à margem da conferência sobre segurança nuclear deixou de ameaçar excluir a Rússia do G8 como havia trombeteado alguns dias antes mas simplesmente anunciou “que não participaria na cimeira de Sochi”. 
Isto deixa-lhe a possibilidade de reativar a qualquer momento este fórum privilegiado de diálogo com a Rússia, criado em 1994 a seu pedido expresso.
Primeiro recuo do G7. Obama por sua vez apressou-se a anunciar que não haveria qualquer intervenção militar da OTAN para ajudar a Ucrânia, mas apenas uma promessa de cooperação para reconstruir o potencial militar da Ucrânia, composto em grande parte por material soviético obsoleto.
Segundo recuo. Serão preciso anos para por de pé um exército ucraniano digno deste nome e pergunta-se quem vai pagar a conta tendo em vista a situação catastrófica das finanças do país.
Além disso, não se sabe exatamente qual é o estado das forças armadas ucranianas depois de Moscovo ter convidado, aparentemente com algum êxito, os militares ucranianos herdeiros do Exército Vermelho a reincorporarem-se no exército russo respeitando as suas patentes. 
A frota ucraniana já passou totalmente ao controle russo. 
Finalmente, outra marcha-atrás espetacular dos Estados Unidos: haveria conversações secretas muito avançadas entre Moscovo e Washington para fazer com que seja adotada uma nova constituição na Ucrânia, para instalar em Kiev por ocasião das eleições de 25 de Maio um governo de coligação em que os extremistas neo-nazis seriam excluídos e, sobretudo, para impor um estatuto de neutralidade à Ucrânia, sua “finlandização” (recomendada por Henry Kissinger e Zbigniew Brzezinsky), o que proibiria sua entrada na OTAN mas permitiria acordos econômicos tanto com a UE como com a União Aduaneira Euro-asiática (Rússia, Bielorrússia, Cazaquistão). 
Se um tal acordo for concluído, a UE será posta diante de um fato consumado e terá de resignar-se a pagar a fatura da conversa a dois russos e americanos.
Com tais garantias Moscovo poderá considerar como satisfeitas suas exigências de segurança, terá retomado o pé na sua antiga zona de influência com o acordo de Washington e poderá abster-se de fomentar o separatismo de outras províncias ucranianas ou da Transnitria (província da Moldávia povoada de russos) reafirmando fortemente seu respeito pelas fronteiras europeias. 
O Kremlin oferecerá na mesma ocasião uma porta de saída honrosa a Obama. 
Um golpe de mestre para Putin.
Consequências geopolíticas da crise ucraniana.
O G7 não calculou que ao tomar medidas para isolar a Rússia, além do fato de aplicar a si próprio uma “punição sadomasoquista” conforme a fórmula de Hubert Védrine, antigo ministro dos Negócios Estrangeiros, precipitava ao mesmo tempo um processo já bem avançado de profunda recomposição do mundo em benefício de um grupo não ocidental dirigido pela China e pela Rússia reunidas no seio dos BRICS. 
Em reação ao comunicado do G7 de 24 de Março, os ministros dos Negócios Estrangeiros do BRICS manifestaram imediatamente sua rejeição a quaisquer medidas visando isolar a Rússia e aproveitaram para denunciar as práticas de espionagem americanas voltadas contra os seus dirigentes e para completar as coisas exigiram dos Estados Unidos que ratificassem a nova repartição dos direitos de voto no FMI e no Banco Mundial, como primeiro passo para uma “ordem mundial mais equitativa”.
O G7 não esperava uma réplica tão virulenta e rápida dos BRICS. 
Este episódio pode dar a pensar que o G20 de que o G7 e os BRICS são os dois pilares principais, poderia atravessar uma crise séria antes da sua próxima cimeira em Brisbane (Austrália) em 15 e 16 de Novembro, sobretudo se o G7 persiste em querer marginalizar e sancionar a Rússia. 
É mais ou menos quase certo que haverá uma maioria no seio do G20 para condenar as sanções à Rússia, o que de fato reverterá no isolamento do G7. 
No seu comunicado os ministros dos BRICS estimaram que decidir quem é membro do grupo e qual é a sua vocação cabe a todos os seus membros “num pé de igualdade” e que nenhum dos seus membros “pode unilateralmente determinar sua natureza e seu carácter”. 
Os ministros apelam à resolução da crise atual no quadro das Nações Unidas “com calma, elevação de vista, renunciando a uma linguagem hostil, às sanções e contra-sanções”. 
Uma afronta para o G7 e a UE! O G7, que se colocou por si mesmo num impasse, é prevenido de que deverá fazer concessões importantes se quiser continuar a exercer uma certa influência no seio do G20.
Além disso, dois acontecimentos importantes anunciam-se nas próximas semanas.
Por um lado, em Maio Vladimir Putin irá à China em visita oficial. 
Os dois gigantes estão a ponto de assinar um acordo energético de envergadura que afetará sensivelmente o mercado mundial da energia, tanto no plano estratégico como financeiro. 
As transações não seriam mais feitas em dólar mas nas moedas nacionais dos dois países. 
Ao virar-se para a China, a Rússia não terá nenhum problema para escoar sua produção gasista caso a Europa ocidental decidisse mudar de fornecedor. 
E no mesmo movimento de reaproximação a China e a Rússia poderiam assinar um acordo de parceria industrial para a fabricação do caça Sukhoi 25, fato altamente simbólico.
Por outro lado, aquando da cimeira dos BRICS no Brasil em Julho próximo, o Banco de Desenvolvimento deste grupo cuja criação foi anunciada em 2012 poderia tomar forma e oferecer uma alternativa aos financiamentos do FMI e do Banco Mundial, sempre reticentes em modificar suas regras de funcionamento, para dar mais peso aos países emergentes e a suas moedas ao lado do dólar.
Finalmente, há um aspecto importante da relação entre a Rússia e a OTAN pouco comentado na mídia mas muito revelador da situação de dependência em que se encontra o ocidente no momento em que procede à retirada das suas tropas no Afeganistão. 
Desde 2002 a Rússia aceitou cooperar com os países ocidentais para facilitar a logística das tropas no teatro afegão. 
A pedido da OTAN Moscovo autorizou o trânsito de material não letal destinado à ISAF (International Security Assistance Force) por via aérea ou terrestre, entre Duchambém (Tajiquistão), o Uzbequistão e a Estonia, através de uma plataforma multimodal em Ulianovsk, na Sibéria. 
Trata-se nada menos que o encaminhamento de toda a intendência para milhares de homens que operam no Afeganistão, toneladas de cerveja, vinho, camemberts, hambúrgueres, alfaces frescas, tudo transportado por aviões civis russos, uma vez que as forças ocidentais não dispõem de meios aéreos suficientes para sustentar uma deslocação militar desta envergadura. 
O acordo Rússia-OTAN de Outubro de 2012 ampliou esta cooperação à instalação de uma base aérea russa no Afeganistão dotada de 40 helicópteros onde o pessoal afegão é formado na luta anti-droga, à qual os ocidentais renunciaram. 
A Rússia sempre se recusou a autorizar o trânsito sobre o seu território de material pesado, o que coloca um problema sério à OTAN no momento da retirada das suas tropas. 
Com efeito, estas não podem tomar a via terrestre Cabul-Carachi devido aos ataques de que os comboios são objeto por parte dos talibans. 
A via do Norte (a Rússia) sendo impossível, os materiais pesados são transportados por avião de Cabul aos Emirados Árabes Unidos, depois embarcados para os portos europeus, o que multiplica por quatro o custo da retirada. 
Para o governo russo a intervenção da OTAN no Afeganistão foi um fracasso, mas sua retirada “precipitada” no fim de 2014 vai agravar o caos e afetar a segurança da Rússia e arrisca-se a provocar um retorno do terrorismo.
A Rússia também tem importantes acordos com o ocidente no domínio do armamento. 
O mais importante é sem dúvida aquele assinado com a França para a fabricação nos arsenais franceses de dois porta-helicópteros num montante de 1,3 mil milhões de euros. 
Se o contrato for anulado no quadro das sanções, a França deverá reembolsar os montantes já pagos mais as penalidades contratuais e deverá suprimir vários milhares de empregos. 
O mais grave será sem dúvida a perda de confiança do mercado do armamento na indústria francesa como sublinhou o ministro russo da Defesa.
Não se pode esquecer tão pouco que sem a intervenção da Rússia os países ocidentais jamais teriam podido chegar a um acordo com o Irã sobre a não proliferação nuclear, nem com a Síria sobre o desarmamento químico.
Estes são fatos que os meios de comunicação ocidentais silenciam. 
A realidade é que devido à sua arrogância, seu desconhecimento da história, do seu desajeitamento, o bloco ocidental precipita a desconstrução sistêmica da ordem mundial unipolar e oferece numa bandeja à Rússia e à China, apoiadas pela Índia, Brasil, África do Sul e muitos outros países, uma “janela de oportunidade” única para reforçar a unidade de um bloco alternativo. 
A evolução estava em marcha, mas lentamente e gradualmente (ninguém quer dar um pontapé no formigueiro e desestabilizar bruscamente o sistema mundial), mas de repente tudo se acelera e a interdependência muda as regras do jogo.
No que se refere ao G20 de Brisbane, será interessante ver como se posiciona o México, após as cimeiras do G7 em Bruxelas no mês de Junho e dos BRICS no Brasil no mês de Julho. 
A situação é muito fluida e vai evoluir rapidamente, o que vai exigir uma grande flexibilidade diplomática. 
Se o G7 persistir na sua intenção de marginalizar ou excluir a Rússia, o G20 poderia desintegrar-se. 
O México, lançado nas redes do TLCAN e do futuro TPP deverá escolher entre afundar com o Titanic ocidental ou adotar uma linha autônoma mais conforme aos seus interesses de potência regional com vocação mundial aproximando-se dos BRICS.
Autor: Pierre Charasse.
[*] Diplomata francês. Ocupou diferentes postos nas Embaixadas da França na União Soviética, Guatemala, Cuba (1973-1983), México (1989-1993). Conselheiro técnico no gabinete de Claude Cheysson, ministro das Relações Exteriores e de Pierre Joxe, ministro do Interior (1984-86). Embaixador no Uruguai (1993-1996), no Paquistão (2003.2005) e no Peru (2005-2008). Embaixador itinerante encarregado da cooperação internacional contra a criminalidade organizada e a corrupção (2000-2003).