General Castello Branco conspira,
dias antes do 31 de Março. Ações de provocação estimuladas pela embaixada dos
EUA foram essenciais para que cúpula do exército aderisse ao golpe.
Adesão militar ao golpe não
foi natural. Para construí-la, EUA atuaram três anos, em ambiente de Guerra
Fria, a pretexto de “evitar uma nova Cuba”.
31/03/2014
Por Luiz Alberto Moniz
Bandeira
A partir da
vitória da Revolução Cubana, em 1960, as atenções dos Estados Unidos
voltaram-se mais e mais para a América Latina. A Junta Interamericana de Defesa
(JID), por sugestão dos Estados Unidos, aprovou a Resolução XLVII, em dezembro
daquele ano, propondo que as Forças Armadas, consideradas a instituição mais
estável e modernizadora no continente, empreendessem projetos de “ação cívica”
e aumentassem sua participação no “desenvolvimento econômico e social das
nações”. Pouco tempo depois, em janeiro de 1961, ao assumir o governo dos
Estados Unidos, o presidente John F. Kennedy (1961 – 1963) anunciou sua
intenção de implementar uma estratégia tanto terapêutica quanto profilática,
com o objetivo de derrotar a subversão, onde quer que se manifestasse. E o
Pentágono passou a priorizar, na estratégia de segurança continental, não mais
a hipótese de guerra contra um inimigo externo, extracontinental (União
Soviética e China), mas a hipótese de guerra contra o inimigo interno, isto é,
a subversão. Essas diretrizes, complementando a doutrina da contra-insurreição,
foram transmitidas, através da JID e das escolas militares no Canal do Panamá,
às Forças Armadas da América Latina, região à qual o presidente Kennedy
repetidamente se referiu como the most critical area e the
most dangerous area in the world ["a área mais crítica" e
"a área mais perigosa no mundo"].
O surto de
golpes desfechados pelas Forças Armadas no continente a partir de então
decorreu não somente de fatores domésticos, mas, sobretudo, da mudança na
estratégia de segurança do hemisfério pelos Estados Unidos. O objetivo da intervenção
das Forças Armadas no político era o alinhamento às diretrizes de Washington
dos países que se recusavam a romper relações com Cuba.
Embora golpes de
Estados fossem quase rotineiros na América Latina, os que ocorreram a partir de
1960 não decorreram das políticas nacionais. Antes, constituíram batalhas da
Terceira Guerra Mundial oculta [hidden World War Three], um fenômeno de
política internacional, resultante da Guerra Fria. E aí era necessário criar as
condições objetivas, tanto econômicas quanto sociais e políticas, que
compelissem as Forças Armadas a desfechá-los. A essa tarefa, a CIA se dedicou,
através de spoiling operations, operações de engodo, uma das quais
consistia em penetrar nas organizações políticas, estudantis, trabalhistas e
outras para induzir artificialmente a radicalização da crise e favorecer a
derrubada do governo por meio de um golpe militar.
No Brasil, desde
que os comandantes das Forças Armadas não conseguiram impedir que o
vice-presidente João Goulart, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB),
assumisse o governo, em agosto de 1961, em virtude da renúncia do presidente
Jânio Quadros, a CIA começou a dar assistência aos diversos setores da oposição
que conspiravam para derrubá-lo. Em 1962, a CIA gastou entre US$ 12 milhões e US$
20 milhões financiando a campanha eleitoral de deputados de direita, através de
organizações que seus agentes criaram, como o Instituto Brasileiro de Ação
Democrática (Ibad) e a Ação Democrática Parlamentar. O número de deputados cuja
campanha essas e outras frentes da CIA elegeram não compensou. Mas as spoiling
operations prosseguiram.
Em meados de
1963, o Pentágono tratou de elaborar vários planos de contingência a fim de
intervir militarmente no Brasil caso o presidente João Goulart, reagindo às
pressões econômicas dos Estados Unidos, inflectisse mais para a esquerda,
ultranacionalista, no estilo do governo do presidente Getúlio Vargas.
Mais ou menos à
mesma época, em 13 de junho de 1963, a Embaixada do Brasil em Washington, sob a
chefia do embaixador Roberto Campos, enviou ao Itamaraty o documento Política
Externa Norte-Americana – Análise de Alguns Aspectos, anexo 1 e único ao Ofício
nº 516/900 (Secreto), no qual comentou que as pressões do Pentágono estavam a
levar os Estados Unidos a reconhecer e a cultivar “relações amistosas com as
piores ditaduras de direita”, pois “do ponto de vista dos setores militares de
Washington tais governos são muito mais úteis aos interesses da segurança
continental do que os regimes constitucionais”.
Os agentes da
CIA, entrementes, executavam as mais variadas modalidades de operações
políticas (PP), covert actions [ações encobertas] e spoiling
actions. Em 12 de setembro de 1963, cabos, sargentos e suboficiais,
principalmente da Aeronáutica e da Marinha, liderados pelo sargento Antônio
Prestes de Paulo, sublevaram-se, em Brasília, e ocuparam os prédios da Polícia
Federal, da Estação Central da Rádio Patrulha, da Rádio Nacional e do
Departamento de Telefones Urbanos e Interurbanos. O movimento serviu como
provocação e contribuiu para colocar a oficialidade das Forças Armadas a favor
do golpe de Estado. A campanha da CIA prosseguiu, instigando greves tanto nas
cidades como nas fazendas, e com outras ações, cada vez mais radicais, para que
caracterizassem uma guerra revolucionária, denunciada pelo deputado Francisco
Bilac Pinto, da UDN, em vários discursos na Câmara Federal, nos quais acusava o
presidente Goulart de apoiá-la. E, a fim de que se afigurasse uma insurreição
comunista em andamento, entre 25 e 27 de março de 1964, José Anselmo dos
Santos, conhecido como “cabo Anselmo”, mas na verdade um estudante
universitário infiltrado entre os marinheiros pelo Centro de Informações da Marinha
(Cenimar) em colaboração com a CIA, liderou centenas de marinheiros, que
decidiram comemorar o aniversário da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros
Navais, desacatando a proibição do ministro da Marinha, almirante Sílvio Mota,
e correram para a sede do Sindicato dos Metalúrgicos, no Rio de Janeiro, a fim
de comprometer os trabalhadores com o movimento. Os fuzileiros, enviados para
invadir o sindicato, desalojar e prender os marinheiros, terminaram por aderir
ao motim. O Exército teve de intervir para sufocá-lo.
O episódio visou
a encenar uma repetição da revolta no encouraçado Potemkin, que desencadeou na
Rússia a revolução de 1905. Esse motim agravou os efeitos da revolta dos
sargentos e empurrou o resto dos oficiais legalistas para o lado dos conspiradores.
As Forças Armadas não podiam aceitar a quebra da hierarquia e da disciplina.
Goulart já havia perdido então quase todo o respaldo militar. Entre 31 de março
e 1° de abril, ele ouviu de muitos oficiais superiores que eles não estavam
contra seu presidente, mas “contra o comunismo”, fantasma que servia como
pretexto ao golpe.
Quatro dias
antes do golpe, o embaixador dos Estados Unidos, Lincoln Gordon, telefonou a
Washington e demandou o envio de petróleo e lubrificantes para facilitar as
operações logísticas dos conspiradores, além do deslocamento de uma força
naval. Em 30 de março, a estação da CIA no Brasil transmitiu a Washington,
segundo fontes em Belo Horizonte, que “uma revolução levada a cabo pelas forças
anti-Goulart terá curso esta semana, provavelmente em poucos dias”, e marcharia
para o Rio de Janeiro. No mesmo dia, no momento em que o presidente João
Goulart discursava para os sargentos no Automóvel Club, o secretário de Estado,
Dean Rusk, leu para o embaixador Lincoln Gordon, por telefone, o texto do
telegrama n° 1.296, sugerindo que, como os navios carregados de armas e
munições não podiam alcançar o Sul do Brasil antes de dez dias, os Estados
Unidos poderiam enviá-las por via aérea. Ele receava que naquelas poucas horas
houvesse uma acomodação, o que seria deeply embarrassing para o governo
norte-americano.
O motim dos
marinheiros, em 26 de março, constituiu a provocação que o general Humberto de
Alencar Castello Branco esperava para induzir a maioria dos militares a aceitar
a ruptura da legalidade. O golpe estava previsto para depois da Marcha da
Família com Deus pela Liberdade, no Rio de Janeiro, marcada para 2 de abril e
financiada pela CIA. Porém, o general Olímpio Mourão Filho, comandante da IV
Região Militar, com sede em Juiz de Fora (MG), afoitou os acontecimentos.
Os militares
brasileiros, decerto, não teriam desfechado o golpe se não contassem com a
cobertura dos Estados Unidos. Porém, para que os Estados Unidos pudessem
fornecer ajuda militar, seria preciso dar aparência de legitimidade ao golpe. E
por telefone, de seu rancho no Texas, em 31 de março, o presidente Lyndon B.
Johnson deu luz verde ao secretário de Estado assistente para a América Latina,
Thomas Mann.
O golpe de
Estado estava consumado, coadjuvado pelo senador Auro de Moura Andrade, que
declarou, ilegalmente, a vacância da Presidência. O deputado Pascoal Ranieri
Mazzilli, o primeiro na linha de sucessão como presidente da Câmara Federal,
assumiu o governo. Não se observou nenhuma formalidade legal.
Não obstante, o
embaixador Lincoln Gordon recomendou ao Departamento de Estado o reconhecimento
do novo governo e o presidente Lyndon B. Johnson telegrafou imediatamente a
Mazzilli para felicitá-lo. O reconhecimento diplomático era um dos elementos
necessários para o estabelecimento da autoridade do governo. O objetivo da
pressa fora justificar o atendimento a qualquer pedido de auxílio militar por
parte do novo governo.
O golpe de
Estado que derrubou em 1964 o presidente João Goulart e se autoproclamou “Revolução
Redentora” tipificou o conjunto das operações que a CIA desenvolveu e
aprimorou. No seu diário, o agente da CIA Philip Agee, então alocado em
Montevidéu, assinalou que a queda de Goulart fora, “sem dúvida, devida
amplamente ao planejamento cuidadoso e a campanhas consistentes de propaganda
que remontaram pelo menos à eleição de 1962″. Goulart sabia-o. Ao chegar a
Brasília, em 1° de abril, ele disse ao deputado Tancredo Neves que a CIA havia
inspirado a sublevação, reiterando o propósito de não se render. E seguiu para
o Rio Grande do Sul onde percebeu que também não havia condições de
resistência.
A satisfação foi
tão grande em Washington que, em 3 de abril, às 12h26, o secretário de Estado
assistente para a América Latina, Thomas Mann, telefonou para o presidente
Lyndon B. Johnson: “Espero que esteja tão satisfeito em relação ao Brasil
quanto eu”. Johnson respondeu: “Estou”. Mann continuou: “Acho que é a coisa
mais importante que aconteceu no hemisfério em três anos”. Johnson arrematou:
“Espero que nos deem algum crédito em vez do inferno”.
Luiz Alberto Moniz Bandeira é
doutor em ciência política, professor titular de história da política exterior
do Brasil na Universidade de Brasília, autor de mais de 20 obras publicadas,
entre as quais O Governo de João Goulart - As Lutas Sociais no Brasil
(1961-1964) - Editora Unesp, Presença dos Estados Unidos no Brasil, Formação do
Império Americano (Da Guerra contra a Espanha à Guerra no Iraque) e A Segunda
Guerra Fria - Geopolítica e Dimensões Estratégicas dos Estados Unidos (Das
rebeliões na Eurásia à África do Norte e ao Oriente Médio).