Sexta-feira,
abril 04, 2014
Em cinegnose
por Wilson Roberto
Vieira Ferreira
Leitores desse blog chamaram
atenção para um estranho fenômeno semiótico apresentado pelo jornal “O Estado
de São Paulo” na edição de 31 de março, dia marcado pela lembrança dos 50 anos
do golpe militar de 1964.
No caderno “Metrópole” do jornal paulistano uma
sequência de duas páginas ímpares criou uma curiosa associação metonímica entre
uma matéria sobre intervenção militar no Complexo da Maré no Rio de janeiro e
um anúncio do HSBC onde um desenho artisticamente elaborado parece fazer um
comentário pontual do que lemos na página anterior: a cidade do Rio de Janeiro
à beira de um abismo e carregada por um tanque militar. Mais uma bomba
semiótica? Delírios conspiratórios? Ou uma “coincidência significativa”?
Desde as grandes manifestações de
rua de junho do ano passado sabemos que uma guerra semiótica está sendo travada
pelo domínio da opinião pública. Um domínio que não visa a persuasão política
ou disseminação ideológica, mas a explosão de verdadeiras bombas semióticas
para moldar a percepção: criar um clima de opinião de que o país atravessa um
estado de convulsão, caos e pré-insurgência civil.
Desde a morte do cinegrafista da
Band, Santiago Andrade, em protestos no Rio de Janeiro em fevereiro percebeu-se
um refluxo nas manifestações de rua. Protestos de rua turbinados por operações
semióticas da mídia foram desde então substituídos pela repercussão de pautas
que acabam se tornando supercondutores de manifestações de intolerância e de
fascismo difuso – forma de pensar onde qualquer tema é pensado a partir de
soluções finais, radicais e intervencionistas.
Por exemplo, a pesquisa do Ipea
repercutida pela mídia de que para o brasileiro “mulher direita” corre menos
risco de estupro e a lembrança dos 50 anos do golpe militar de 1964 incendiou a
imaginação conservadora nas redes sociais. A abordagem moralista sobre o
tema do estupro e os debates em torno do regime militar (golpe ou revolução? Ditabranda?
Ditacurta?) só tornaram o clima de opinião cada vez mais pesado.
A tal ponto que aqui e ali na
grande mídia surgiram atos falhos como o de César Tralli no telejornal SPTV da
Globo em pleno 31 de março sobre os 50 anos do golpe militar: “o que se imaginava
que seria um governo curto de exceção, se transformou numa longa ditadura...”
em uma implícita sugestão de que a intervenção militar foi necessária (medida
de exceção) e que a ditadura foi um acidente de percurso.
Também em pleno 31 de março, o
jornal O Estado de São Paulo, em duas páginas ímpares sequenciais,
nos oferece um sincronismo entre texto e imagem que produziu uma estranha
polissemia. Na primeira página do caderno “Metrópole” vemos a notícia que ocupa
página inteira: “Polícias e Marinha ocupam Maré e líderes do tráfico fogem para
Paraguai” onde se noticia a intervenção forças de segurança (Corpo de
Fuzileiros Navais, Polícia Militar e Civil) no complexo de favelas da Maré no
Rio de Janeiro, após décadas de domínio do tráfico e de milicianos. Na parte
central da matéria vemos a fotografia de um tanque que se desloca por rua de
favela do complexo.
O leitor após virar a página dá
de cara com a página 3 onde se vê um anúncio do banco HSBC que ocupa ¾ da
página. Uma imagem metafórica ocupa a parte central do anúncio onde vemos a
cidade do Rio de Janeiro sobre uma esteira rolante e a cidade de Nova York na
face oposta. O anúncio se trata do serviço HSBC Empresas que promete “encurtar
distâncias e abrir caminhos para novos negócios”, seja no Rio de Janeiro ou
Nova York, internacionalizando as perspectivas das empresas. É uma metáfora por
similaridade, onde a esteira rolante é a analogia icônica com a ideia de
encurtamento das distâncias nos negócios.
Porém, essa metáfora se
transforma em metonímia: quando o leitor vira a folha e passa para a página
três do caderno “Metrópole”, a metáfora do anúncio da HSBC é imediatamente
“contaminada” não só pela manchete da página um que trata da intervenção de
polícias e Marinha no Rio de Janeiro como também da fotografia central de um
tanque militar. A esteira rolante com os seus mecanismos de funcionamento
aparentes (necessários para criar a metáfora por similaridade) de repente
assume o aspecto de um tanque de guerra carregando a cidade do Rio de Janeiro.
Graças a esse efeito de
contaminação a imagem do anúncio do HSBC assume um complexo de significados:
intervenção militar (coincidentemente no dia dos 50 anos do golpe militar de
1964), Não Vai Ter Copa (o estádio do Maracanã ocupa destaque na imagem
sintética da cidade do Rio de janeiro) e uma inevitável associação com uma
situação de uma cidade que se movimenta para um abismo – um carro e um barco
parecem que já foram tragados...
O fusca em chamas de São Paulo ao lado das imagens do caos político na Ucrânia nos telejornais |
O tanque militar real da
fotografia da página um parece que ganha continuidade e movimento com a gestalt de
um tanque de guerra em que, por contiguidade, se transforma a esteira rolante
metafórica da página três. Surpreendentemente, a imagem do HSBC parece
sintetizar as situações de confronto reportadas na primeira página do caderno.
Jornalismo metonímico
Delírio? Paranoia? Devaneios
psicóticos de uma teoria da conspiração? Uma operação semiótica engenhosamente
pensada? Alguns leitores desse blog chamaram a atenção desse fenômeno da edição
de 31 de março do Estadão, e pediram para nós um parecer técnico a partir do
referencial da Semiótica.
De fato, acompanhando as bombas
semióticas disseminadas pela grande mídia desde o ano passado, percebe-se a
recorrência das metonímias na elaboração oculta de significados. Por exemplo,
nesse ano telejornais como o Jornal Nacional e o Jornal
da Band fizeram matérias sobre diversos protestos contra a Copa do
Mundo em diversos estados. As imagens das manifestações eram colocadas nos
mesmo bloco noticioso das manifestações de rua da Ucrânia e do Líbano. O efeito
evidente era de contaminação metonímica ao aproximar os protestos brasileiros
ao mesmo status de caos político e insurgência civil das notícias
internacionais.
Após essa série de manifestações
que culminaram com a imagem do fusca em chamas com uma família sendo retirada
às pressas, posteriormente em diversas vezes repetiu-se essa bizarra
organização da pauta noticiosa que tradicionalmente divide os blocos em
Nacional e Internacional.
Com certeza essa coincidência
metonímica é significativa e não pode passar despercebida como uma mera
coincidência ou paranoia de uma análise semiótica que misturaria má fé com
devaneios conspiratórios. Ainda mais na atual atmosfera política pesada onde
explicitamente a grande mídia assumiu o papel ativo de oposição política em um ano
eleitoral.
Os tanques entrando no Complexo da Maré: incendiando o imaginário dos adeptos de uma intervenção militar |
Poderíamos elaborar algumas
hipóteses para esse curioso fenômeno que o jornal O Estado de São Paulonos
ofereceu:
(a) Uma operação semiótica
deliberada. Sabendo-se que os espaços publicitários são antecipadamente
fechados pelo departamento comercial do veículo e que a redação já conhece de
antemão qual o espaço restante destinado aos textos, propositalmente a notícia
do Complexo da Maré foi colocado em uma página ímpar. Também repare o leitor
que a foto do tanque de guerra da página um praticamente está na mesma linha
visual da imagem metafórica do anuncio do HSBC na página três.
(b) O fenômeno em si seria neutro
e uma mera coincidência. O efeito polissêmico seria decorrente de um fator
externo: a atmosfera politicamente pesada.
(c) Uma coincidência significativa
ou sincromística. Como se por trás dos fatos da realidade se escondesse
uma estranha sintaxe que faz símbolos e significados convergirem em dados
momentos, criando eventos de forte impacto no contínuo midiático. Claro
que aí entraríamos na "parapolítica", um encontro da política,
esoterismo e misticismo como procuram fazer pesquisadores como Christopher
Knowles ou Loren Coleman no seu blog Twilight Language. Para eles, fatos como
esses seriam mais do que meras coincidências...