Brutalidade contra Dirceu é uma
tentativa de nos convencer de que não adianta reagir.
Num país que levou um mais de 40 anos para constituir uma Comissão
da Verdade para apurar os crimes do passado do regime militar, talvez seja o
caso de pedir a abertura de um novo item de sua pauta para investigar ataques
aos direitos humanos que tem sido cometidos nos dias de hoje. O primeiro nome é
José Dirceu.
O caso é exemplar. Embora nunca tenha recebido, em forma
definitiva, uma sentença em regime fechado, o esforço para impedir Dirceu de
respirar o oxigênio que só se encontra fora de uma prisão foi reforçado.
Tudo se move para impedir que ele possa sair à rua, caminhar como uma
pessoa durante oito horas por dia, trabalhar como um cidadão, conversar
com homens e mulheres que não são nem carcereiros, nem advogados, nem parentes
tensos, de olhos úmidos, nas horas tensas de visita.
Como se fosse um delírio, assistimos a um ato de terrorismo que não
ousa dizer o seu nome, mas não pode ser definido de outra forma.
Ou como você vai definir um pedido de grampo telefônico que envolve
o palácio da Presidência da República, o Congresso? Vamos fingir que não
é um ataque à privacidade de Dilma Rousseff, constranger 513 parlamentares,
humilhar onze ministros, apenas para maltratar os direitos de Dirceu?
Vamos encarar os fatos. É um esforço -- delirante? quem sabe?
-- para rir do regime democrático, gargalhar sobre a divisão de poderes,
atingir um dos poderes emanam do povo e em seu nome são exercidos.
Pensando em nossos prazos históricos, eu me pergunto se vale à pena
deixar para homens e mulheres de 2050 a responsabilidade de coletar informações
para apurar fatos desconhecidos e definir responsabilidades pelo
tratamento abusivo e injusto que tem sido cometido contra Dirceu.
Sim, Dirceu foi um entre tantos combatentes que a maioria de nós não pode
conhecer pelo nome nem pelo rosto, lutadores corajosos daquele Brasil da
ditadura.
Depois de ajudar a liderar um movimento de estudantes que impediu, por
exemplo, que o ensino brasileiro fosse administrado por pedagogos do governo
norte-americano, Dirceu tomou parte da vitória do país inteiro pela democracia.
Sem abandonar jamais uma ternura pelo regime de Fidel Castro que ninguém é
obrigado a partilhar, mostrou-se um líder político capaz de negociar com
empresários, lideranças da oposição e governantes estrangeiros.
Hoje ele se encontra no presídio da Papuda, impedido de exercer direitos
elementares que já foram reconhecidos pelo ministério público e até pelo
serviço Psicossocial. Trabalha na biblioteca. Já se ofereceu para ajudar na
limpeza.
Sua situação é dramática, mas ninguém precisa esperar até 2050 para
tentar descobrir que há alguma coisa errada, certo?
Basta caráter. Em situações políticas determinadas, este pode ser o
dado decisivo da situação politica. Pode favorecer ou pode prejudicar os
direitos das vítimas e também iluminar a formação das novas gerações. Os
direitos humanos elementares, as garantias sobre a vida e a liberdade, costumam
depender disso com frequência.
Vejam o que aconteceu com o general José Antônio Belham. Em 1971, ele
exibia a mais alta patente na repartição militar onde Rubens Paiva foi morto
sob torturas.
Quando precisou explicar-se, 43 anos mais tarde, Belham afirmou que não
se encontrava ali. Estava de ferias. Acabou desmentido de forma vergonhosa.
Consultando suas folhas de serviços, a Comissão da Verdade concluiu que o
general não era verdade. Ele não só estava lá como recebera os proventos
devidos pelo serviço daqueles dias.
Esse é o problema. Ninguém é obrigado a ser herói. Como ensina
Hanna Arendt, basta cumprir seu dever. Caso contrário, a pessoa se deixa
apanhar numa situação que envergonha a mulher, os filhos, os netos – sem falar
nos amigos dos filhos, nos amigos dos netos. Nem sempre é possível livrar-se do
vexame de prestar contas pela própria história.
Lembra daquele frase comum em filmes de gangster, quando o herói
recebe uma advertência criminosa: “você vai se arrepender de estar vivo?”
Isso também pode acontecer com pessoas que não tem caráter.
Imagine como vai ser difícil, para homens e mulheres de 2050,
explicar seu silêncio diante de tantos fatos que envolvem o tratamento
dispensado a Dirceu. Ele foi cassado em 2005 por “quebra de decoro
parlamentar”, essa acusação que, sabemos há mais de meio século, é tão
subjetiva que costuma ser empregada para casos de vingança e raramente serviu
para fazer justiça -- porque dispensa provas e fatos, vale-se apenas de
impressões e convenções sociais que, como se sabe, variam em função de tempo e
lugar, de pessoa, de geração e até classe social.
Em 2012, não se encontrou nenhuma prova capaz de envolver Dirceu no
esquema de arrecadação e distribuição de recursos financeiros para as campanhas
do PT. A necessidade de garantir sua punição de qualquer maneira explica a
importação da teoria do domínio do fato. Inventaram uma quadrilha porque era
preciso condenar Dirceu como seu chefe mas o argumento não durou dois
anos. Depois que o STF concluiu que não havia crime de quadrilha, ficou difícil
saber qual era a atuação real de Dirceu nessa fantasia.
Pensa que o Estado brasileiro pediu desculpas, numa daquelas solenidades
que nunca receberão a atenção merecida, com as vítimas dos torturadores do
pós-64? Pelo contrário. O sofrimento imposto a Dirceu aumentou, numa
forma perversa de punição.
Numa sequencia da doutrina Luiz Fux, que disse no STF que os acusados
devem provar sua inocência, coube-lhe tentar provar o que não falou ao celular
com um Secretário de Estado da Bahia.
Foi invadido em sua privacidade, desrespeitado em seus direitos
humanos. Para que? É um espetáculo didático.
Como cidadão, tenta-se fazer Dirceu cumprir a função de ser humilhado em
publico – ainda que boa parte do público não se dê conta de que ele próprio
também está sendo ultrajado. Através desse espetáculo, tenta-se enfraquecer
quem reconhece seu papel político, quem reconhece uma injustiça – e
precisa ser convencido de que não adianta reagir para tentar modificar essa
situação.
Não poderia haver lição mais reacionária, própria daqueles homens que
fogem da Comissão da Verdade com mentirinhas e desculpas vergonhosas.
Não se engane: o esforço para inocular um sentimento de fraqueza em
cidadãos e homens do povo é próprio das ditaduras. Fazem isso pela força -- e
pela demonstração de força, também.
Outra razão é política. Tenta-se demonstrar que o sistema penitenciário do
governo do Distrito Federal – cujo governador é do PT, como Dirceu e todos os
principais réus políticos dessa história, você sabe -- não é capaz de cuidar
dele, argumento sob medida para que seja conduzido a uma prisão federal, onde
não poderá cumprir o regime semiaberto.
Este é o objetivo. Vai ser alcançado? Não se sabe.
Animal consciente dos estados de opressão, o que distingue os
homens dos vegetais – e de alguns animais inferiores – é o reconhecimento da
liberdade.
O que se quer é encontrar uma falta disciplinar grave, qualquer
uma, que sirva como pretexto para revogar os direitos de Dirceu.
Pretende-se obter uma regressão de sua pena e conseguir aquilo que a Justiça
não lhe deu, apesar do show – o regime fechado.
Isso acontece porque o projeto, meus amigos, é o ostracismo – punição
arcaica, típica dos regimes absolutistas. Você lembra o que disse Joaquim
Barbosa:
"Acho que a imprensa brasileira presta um grande desserviço ao país
ao abrir suas páginas nobres a pessoas condenadas por corrupção. Pessoas
condenadas por corrupção devem ficar no ostracismo. Faz parte da pena".
Imagine a maldade que é deixar tudo isso para os homens e mulheres de
2040. Imagine as páginas nobres da imprensa, dos jornais, das revistas. Pense
como vai ser difícil, para os leitores do futuro, entender o que Joaquim
Barbosa quis dizer com isso.
Mais uma vez teremos uma página horrenda da história e cidadãos perplexos
a perguntar: como foi possível? O que se queria com tudo aquilo?
E, mais uma vez, num sinal de que se perdeu todo limite, vamos
pedir desculpas. As futuras gerações merecem um pouco mais, concorda?
Não precisam encarar esta derrota colossal de todos que lutaram
com tanta coragem pela democracia.