Gérson, o Canhotinha de Ouro
Vivemos em um país em que muitas
vezes os valores se invertem, cidadãos imorais se tornam paladinos da
moralidade, enquanto cidadãos de ilibada moral e reputação caem na vala comum.
Até herói vira bandido e vice-versa. É dentro desse contexto que agora
refuto – de tanto cansar de esperar pelo tempo e por mudança de comportamento
popular em vão – o estigma, a injustiça, a cruz que carrega o cidadão Gerson Oliveira
Nunes, o meia Gerson, também conhecido como “canhotinha de ouro”, grande
maestro do tricampeonato mundial conquistado pela seleção brasileira de
futebol, na memorável campanha no México, em 1970, profissional irrepreensível
e cidadão exemplar, que teve a infelicidade de estrelar um comercial de cigarro
com frases impensadas, não calculadas, mas nunca maldosas no seu sentido mais
amplo, muito menos frases criminosas.
Estávamos na década de 70, na
recém conquista da copa pela seleção encantadora dos nossos sonhos, estávamos
também ainda vivenciando a ditadura e dentro das propagandas perniciosas que se
faziam era também permitida a de cigarros, que para dizer a verdade, na dita
época: “fumar era chique, fumar estava na moda”. Entretanto, o infeliz vídeo/comercial
gravado por uma empresa de propagandas e apresentado nas redes televisivas e
radiofônicas iria mudar para sempre a trajetória moral do notável Gerson.
O dito filme propaganda é
iniciado associando – com justiça – a imagem de Gerson como “Cérebro do time
campeão do mundo da Copa do mundo de 70″ sendo narrado pelo entrevistador de
terno e microfone em mão. Tal cena se passa em um sofá de uma sala de visitas,
oportunidade em que o dito entrevistador pergunta ao herói atleta o porquê da
sua escolha pela marca Vila Rica, recebe um cigarro de Gerson e o acende
enquanto ouve a resposta, que é finalizada com a frase que “fulminou” para
sempre a sua moralidade:
“Por que pagar mais caro
se o Vila me dá tudo aquilo que eu quero de um bom cigarro? Gosto de levar
vantagem em tudo, certo? Leve vantagem você também, leve Vila Rica!”.
Pronto isso bastou, isso
ressoou como sendo uma confissão explicita que o nosso herói era um homem sem
princípios ou escrúpulos, um imoral, um salafrário, um fraudador, um corrupto,
enfim um criminoso dessa espécie capaz de fazer de tudo para obter vantagem nos
seus intentos.
Reconhecendo o erro de
interpretação popular causado, o produtor propagandista posteriormente refez o
comercial na tentativa de obter mudança de comportamento com um segundo anuncio
gráfico que dizia: “levar vantagem não é passar ninguém para trás, é
chegar na frente”. Mas essa frase não pegou, a primeira já estava grudada
tal qual uma desgraçada sanguessuga a sugar a moralidade do ilustre Gerson.
E o pior, tais frases foram imaginariamente transformadas em lei popular,
a lei dos inescrupulosos.
Assim, o grande Gerson, carrega,
desde então, o estigma da suposta lei que enunciou, deturpada, talvez no
inicio, pelo seu conteúdo subliminar de incentivo ao vício do cigarro, mas logo
usada para exprimir traços bastante característicos e pouco lisonjeiros do
caráter midiático nacional, associados à disseminação da imoralidade e ao
desrespeito a regras de convívio para a obtenção de vantagens.
A lei de Gerson funciona como
mais um elemento na definição da identidade nacional e o símbolo mais explícito
da nossa falta de ética. Na arraigada cultura brasileira, a famigerada lei de
Gérson é uma norma não-escrita, não oficial, segundo a qual a pessoa que gosta
de levar vantagem em tudo segue-a no sentido negativo de se aproveitar de todas
as situações em benefício próprio, sem se importar com questões éticas, morais
ou legais.
Francamente arrependido das suas
palavras Gérson tentou por muito tempo se desvencilhar da fama de patrocinador
dos espertalhões, patrono dos corruptos, professor dos desonestos,
propagandista dos canalhas… Mas não teve jeito. A lei de Gérson pegou, grudou e
ficou. Crucificaram-no, como antes já crucificaram outros inocentes. Cravaram-no
em uma cruz pelas suas palavras, não pelos seus atos. Atos esses já devidamente
comprovados, que são e sempre foram de um homem honrado, moral, cumpridor dos
seus deveres, das verdadeiras leis vigentes e também preocupado com o bem estar
e com o futuro daqueles mais necessitados.
O cidadão Gerson (para os
hipócritas, insensatos, maledicentes, ignorantes…) execrado e crucificado como
sinônimo de ardil, na verdade, além de ser defensor da moralidade e dos bons
costumes é Diretor do “Projeto Gerson” e Presidente de Honra do Instituto
Canhotinha de Ouro, com sede na cidade de Niterói (mas atuante noutros
municípios do Rio de Janeiro), e atende cerca de 3.000 crianças e adolescentes
que vivem em situação de risco social, por vezes tirando-os das ruas, dos sinais
de trânsitos a esmolar, das marquises, das drogas, fornecendo-lhes esportes,
alimentação, planos médico e odontológico, acompanhamentos pedagógico,
nutricional e psicológico.
Tais planejamentos e projetos,
sem dúvidas, além de tudo, ocupam o tempo ocioso das crianças e adolescentes
que deles fazem parte. Fornece-lhes cidadania, e também dá oportunidade do
primeiro emprego aos jovens maiores de 16 anos de idade, vez que há convênios
entre o citado Instituto e várias empresas dos municípios onde atua, enfim,
oferece-lhes uma nova oportunidade para as suas vidas que quase sempre
descambariam para a criminalidade. Além desses pontos positivos que só
merecem aplausos e reverências de todos, o Instituto Canhotinha de Ouro, há
cinco anos consecutivos, vem realizando um intercâmbio sócio-esportivo com
grupos de meninos e meninas, vindos de Utah , nos Estados Unidos da América, o
que tem proporcionado aos seus alunos uma troca de experiências e contatos com
outros povos e culturas, ou mesmo o alcance de futuras e melhores
oportunidades técnicas e profissionais a tais brasileirinhos.
Precisamos então enterrar de vez
a famigerada lei de Gerson, resgatá-lo dessa cruz. Colunistas, jornalistas e
fazedores de opinião pública em geral deveriam se unir, parar de usar a
desnecessária e sem sentido “lei de Gerson”. Deveriam trocá-lo por sujeitos que
realmente tenham contas a acertar com a Justiça, pois esses inexpressivos
cidadãos, na verdade seguem o conceito alienígena de Maquiavel, não do triunfante
Gerson que além de ser detentor de todos esses elencados atributos altamente
positivos, é nosso glorioso herói/maestro do tricampeonato da paixão maior dos
brasileiros. Seus passes longos, precisos e milimétricos cantaram e encantaram
o mundo e nos fizeram viver alegrias em tempo de triste ditadura.
Por: Archimedes Marques
Publicado em 14/01/2014 por Rostand Medeiros
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