As carrancas dos barcos do Vale
do São Francisco hoje perderam sua função inicial de proteção das embarcações
contra perigos concretos e imaginados do percurso do rio por uma função de peça
de comércio artesanal.
Por: Prof. Dr. Jayro Luna (Jairo
Nogueira Luna)- UPE/FFPG
28/05/2007
Algumas carrancas, quando
apresentadas pelo marchand, como de autoria deste ou daquele mestre artesão
mais reconhecido, alcançam no comércio de peças de artesanato internacional
valores consideráveis. Assim, no lugar de servirem como elemento protetor
contra maus espíritos e perigos do rio, que avisariam com três gemidos a
proximidade destes, bem como com suas feições agressivas afugentariam outros
espíritos, as carrancas, mais comumente têm sido utilizadas como peças
decorativas de cantos de salas e escritórios.
De fato, quanto à origem das
carrancas, seu aparecimento perde-se um pouco no tempo, os primeiros registros
de existência das carrancas aparecem na segunda metade do século XIX, segundo
Zanoni Neves:
“Na segunda metade do século XIX,
os barqueiros adotaram a figura, hoje conhecida como carranca. Um dos primeiros
cronistas a mencioná-la foi Durval Vieira de Aguiar em 1882: Na proa vê-se uma
carranca ou grifo de gigantescas formas, de modelos sem dúvida transmitidos
pelos exploradores dos tempos coloniais (1979, p. 33). Figura, figura de proa e
leão de barca são os termos ou expressões que os remeiros e outros ribeirinhos
utilizavam para se referirem às carrancas.”(Zanoni, 2006)
Alguns estudiosos mais ligados ao
âmbito das teorias menos comprováveis cientificamente e de caráter mais
polêmico, sustentam que esse seria um indício da passagem dos Vikings pelo
Brasil em época muito anterior ao descobrimento. Um dos defensores dessa tese é
Jacques Mahieu, que no livro Os Vikings no Brasil argumenta que existem vários
indícios dessa passagem, como inscrições na Amazônia, na Pedra da Gávea (RJ) e
as carrancas que seria um costume transmitido pelos Vikings. Tese ousada, mas
que peca pela ausência de dados comprováveis de qualquer uso de carrancas
anterior ao período de colonização do Vale do São Francisco.
De qualquer forma é inegável a
possibilidade de comparações entre aspectos funcionais, estéticos e culturais
das carrancas do São Francisco e as carrancas das galeras vikings.
Alguns artesãos se destacaram na
produção de carrancas, hoje, com o decréscimo e quase desaparecimento da
navegação ribeirinha assim como o fim dos gaiolas, a utilização das carrancas ganhou
uma função de artefato artístico artesanal, de modo que a flutuabilidade, bem
como a adaptabilidade da carranca ao barco tornou-se um aspecto mais
secundário.
Francisco Biquiba Dy Lafuente Guarany (1884-1987), ou simplesmente “Guarany”, destacou-se como o maior artista de carrancas. Guarany é bisneto de José Dy Lafuente, jesuíta espanhol, refugiado do Convento da Bahia que amasiou-se com uma negra africana de Moçambique, indo morar na cidade de Curacá, às margens do São Francisco, próximo a cidade de Juazeiro, onde passou a trabalhar como professor e constituiu sua família.
Ana das Carrancas é Ana
Leopoldina Santos, filha de artesã e agricultor, nasceu em 1923, em Santa
Filomena, distrito de Ouricuri, Pernambuco. Ana das Carrancas é um dos nomes mais
conhecidos quando se fala em carrancas do rio São Francisco.
Ubaldino, filho de Guarany, que
começou sua produção em 1972 é outro importante artesão de carrancas.
Mestre Davi (Davi José Miranda
Filho), um famoso carranqueiro de Pirapora perpetua, através da arte de talhar
a madeira, a história e a cultura dos povos ribeirinhos. Mestre Davi tornou-se
internacionalmente conhecido quando Jacques Cousteau levou uma carranca a todos
os cantos do mundo pelo barco "Calypso".
Dona Lurdes Barroso, carranqueira
também de Pirapora, é uma artista que demonstra habilidade no manuseio de
instrumentos como facão, machado e formão.
Expedito Viana, ainda de Pirapora
(MG) é outro importante artesão carranqueiro que preserva a arte de entalhar a
madeira. Expedito ficou conhecido quando confeccionou a majestosa estátua de
São Francisco de Assis, com 3,5 metros de altura, que se encontra na Avenida
Salmeron, na Praça do Posto Três Palmeiras.
Listamos aqui apenas alguns dos
nomes mais conhecidos no universo do artesanato de carrancas.
O que buscamos destacar nesse
nosso breve texto, porém, não é um painel dos artistas, nem tampouco a busca da
explicação da origem das carrancas. Nosso intento maior é uma observação acerca
do modo de produção das carrancas e um comentário acerca da natureza estética
dessas figuras.
As carrancas, em geral, são
feitas de madeira, assim como os barcos a que se destinavam. Com a utilização
de instrumentos para o corte e o talhe da peça de madeira (facão, machado e
formão) o artesão vai moldando a peça de maneira intuitiva. Não se tem o hábito
de se fazer um esboço ou desenho, mas diretamente na madeira o artista vai
compondo a cabeça da figura. Ana das Carrancas, de Ouricuri, por sua parte, usa
o barro extraído do próprio rio São Francisco para composição de suas figuras
de carranca. Sendo originalmente artesã ceramista, Ana compunha antes panelas,
potes, brinquedos, boi-zebus, cavalinhos e santos de barro, agora quando ela
passa a produzir carrancas também de barro o que ocorre é a transposição de uma
técnica para outra, uma vez que as ferramentas para composição já não serão as
mesmas, havendo pois destaque nesse caso para as próprias mãos no ato de moldar
o barro e o torno de oleiro, bem como o forno para cozimento.
Simbolicamente o material usado,
madeira ou barro, dá a dimensão da própria modificação da função de uso da
carranca. A de madeira tem com o barco, também de madeira, uma identificação
harmoniosa do material. Essa identificação, como que garante à cabeça de
carranca, colocada na ponta da proa, a condição de vigia, de cabeça do barco
personificado ou metamorfoseado num vivente, cuja cabeça é a carranca e o corpo
o próprio barco.
Nas galeras vikings era essa a
conotação que a estrutura do barco buscava, contendo algumas não só a cabeça de
carranca (em geral a cabeça de um dragão), como no outro extremo, a popa, se
colocava uma estrutura semelhante à calda do animal.
Ao se fazer a carranca de barro,
quebra-se essa harmonia de material, uma vez que o barro vindo do leito do próprio
rio agora mantém não com o barco, mas com o próprio rio sua identificação.
Nesse sentido, a carranca de barro como que se distancia da função de protetora
do barco para ser a representação do espírito do rio que pode proteger ou não a
embarcação em função da intenção do navegador ser aceita pelo rio ou não.
Assim, navegadores virtuosos, tementes a Deus, que navegam atendendo as
necessidades das populações ribeirinhas seriam protegidos, de outra forma,
navegantes gananciosos, astutos pela descoberta de riquezas teriam contra si o
espírito do rio. Porém, é fato, que a produção de carrancas de barro,
notadamente as de Ana das Carrancas têm uma função mais de peça decorativa
artística de colecionadores e admiradores da arte popular do que propriamente a
função de carrancas de embarcações.
As carrancas, em geral, são
apresentadas como figuras com bocas enormes abertas mostrando, por vezes,
dentes caninos proeminentes. Tal boca e dentes têm a intenção de conotar a
agressividade da figura, feroz na ação de proteção da embarcação, que ao cabo,
representa o próprio corpo do animal formado pelo conjunto barco-carranca.
Assim, metamorfoseado em animal aquático que desliza pelas águas do rio, sua
boa e seus dentes formam o primeiro aspecto dessa força animal e vital. Abrindo
a boca, supõe-se um rugido, ou em alguns casos, um canto de aviso aos espíritos
malignos da chegada da embarcação, bem como da força que a protege. Os olhos da
carranca, por sua vez, grandes também, conotam a noção de que tudo a carranca vê,
não apenas o mundo concreto, físico, mas principalmente o invisível, o
espiritual e mágico, o mundo dos espíritos.
No caso específico de Ana das
Carrancas, que costumeiramente vazava os olhos de suas carrancas de barro, numa
espécie de homenagem incorporada ao seu imaginário, devido ao fato de seu
marido, José Vicente, ser cego; tal característica dos olhos das carrancas de
Ana mostra ainda mais esse aspecto de visão de um mundo invisível, não
acessível aos olhos do mundo físico.
A cabeleira da carranca, marcante no caso das de Guarany, demonstra a força vital e guerreira da carranca, como se fosse uma juba caindo pelos lados do pescoço da figura. As cores formam outro aspecto importante da carranca. O vermelho usado em muitas figuras, assim como o negro e o branco reforçam as ideias expostas pelos olhos, cabelos, boca e dentes. São as cores mais usadas. Outras têm a coloração dourada também, algumas carrancas mais antigas têm a coloração desbotada, ou descascada, fruto da característica do pigmento, no mais das vezes, pouco resistente às intempéries, ou ainda, ao sol forte da região, descolorindo depois de algumas estações. Já as carrancas que são adquiridas por colecionadores, admiradores e turistas e que as colocam nas salas, nos escritórios, estas mantêm por mais tempo o vigor de suas cores, abrigadas que estão dos efeitos nocivos do sol e da água do rio.
De forma geral, as cabeças das
carrancas têm aspectos antropomórficos híbridos. As orelhas, por vezes, são de
leão ou cachorro, quando são de aspecto humanóide, são destacadas em tamanho
assim como a boca, os olhos e os dentes. A língua, quando é colocada na figura,
também têm o mesmo padrão de desproporcionalidade. Segue-se assim também as
sobrancelhas, o nariz e o queixo. Desse modo, o conjunto da figura impressiona
pela aglutinação de elementos desproporcionais que disputam o espaço da cabeça,
formando um conjunto de aspecto monstruoso, algo diabólico.
Nesse sentido, a proteção
declarada que a carranca oferece também apresenta um sentido invertido das
figuras de proteção religiosa usadas na náutica.
A cruz, a imagem de algum santo ou santa
(Nossa Senhora dos Navegantes, Santa Bárbara, Santo Olavo, Bom Jesus Protetor
dos Navegantes, entre outras), se caracterizam por uma imagem amistosa ou de bem-aventurança,
de aspecto protetor, ao passo que a carranca se contrapõe pela agressividade
nas suas formas monstruosas, agressivas.
Numa espécie de simbiose ou
sincretismo, a carranca típica do São Francisco interpõe-se como o artefato que
usa da força diabólica para uma missão de proteção ao navegante cristão. O mal
a serviço do bem. Signo, talvez, de uma associação entre a simbologia imagética
característica de mitologia africana ou mesmo ameríndia com a religiosidade
cristã.
Os aspectos africanos da carranca
aparecem mais ainda quando observamos as que têm cores fortes (como o vermelho
e o tom negro) com o fato das formas desproporcionais ou bem proeminentes como
é característico das peças em madeira do artesanato antropomórfico africano
banto, iourubá e/ou de nação de angola.
Sabemos que as primeiras
populações ribeirinhas do Rio São Francisco a partir do período da colonização
eram de característica negra ou índia, como atestam relatos do Padre Martinho
Nantes (séc. XVII), do viajante Sir Richard Burton (1867), de Saint-Hilaire
(séc. XIX), entre outros. Os remeiros ou barqueiros eram predominantemente de
característica negra, sendo até o período anterior à abolição da escravidão,
escravos que faziam o serviço de travessia e ligação entre as diferentes
cidades. Teodoro Sampaio traz informações mais detalhadas acerca da natureza
étnica dos remeiros.
Não se deve esquecer, porém, que
a cultura cabocla também incorporou elementos da cultura indígena, de modo que
a ideia de espíritos do rio e espíritos da mata possam ajudar ou prejudicar uma
travessia é também natural do imaginário ameríndio.
Os cabelos das carrancas, em
geral, grandes, mas também com predominância da cor negra e lisos ajustam-se
mais ao tipo étnico indígena sul-americano do que africano.
As carrancas são o resultado, a
nosso ver, de um cruzamento de influências do imaginário cristão português,
notadamente do âmbito dos navegadores e exploradores transposto para o cenário
da colonização do sertão, misturados sobremaneira com fortes doses do
imaginário africano e ameríndio.
O cristianismo deu o sentido de proteção, os elementos afro e ameríndio os aspectos estéticos e formais da carranca, como concretizações de figuras de espíritos malignos dominados pelo sentido cristão e postos a serviço da exploração das águas do rio.
O cristianismo deu o sentido de proteção, os elementos afro e ameríndio os aspectos estéticos e formais da carranca, como concretizações de figuras de espíritos malignos dominados pelo sentido cristão e postos a serviço da exploração das águas do rio.
Referências Bibliográficas:
MAHIEU, Jacques. Os Vikings no
Brasil. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1976.
NANTES, Padre M. 1979 Relação de
uma missão no rio São Francisco. São Paulo/Brasília, Cia. Editora Nacional/MEC/INL.
NEVES, Zanoni. “Os Remeiros do
São Francisco na Literatura” em: Revista de Antropologia. São Paulo, vol 46,
n.1, 2003.
fonte:Fonte:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-77012003000100004.
PARDAL, Paulo. Carrancas do São
Francisco, coleção Raízes. São Paulo, Martins Fontes, 2006.
SAINT-HILAIRE, A. 1975a Viagem
pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais. Trad. Vivaldi Moreira. Belo
Horizonte/São Paulo, Itatiaia/Edusp.
SAMPAIO, T. 2002 O rio São
Francisco e a Chapada Diamantina. São Paulo, Companhia das Letras.
Por: Jayro
Luna