Processada nos EUA por cumplicidade com fraudes que precipitaram a crise, a agência de risco S&P desembarca no Brasil para dizer se o governo é ou não confiável.
por: Saul
Leblon
07/03/2014
Incapaz de criar fatos que o resgatem da irrelevância propositiva, o
conservadorismo salta de um lado a outro à procura de um galho que lhe dê
alguma luz.
O resultado desanima até a condescendência da mídia amiga.
Entre a toga colérica, que rasgou a fantasia ética com a própria boca, e
as máscaras incendiárias, que mais assustam do que contagiam, o saldo aderna.
A oito meses das eleições, uma nova esperança está prestes a entrar em
campo.
Com poderes para dizer se o Brasil vai ou não ‘cumprir suas obrigações
fiscais’, se o ‘governo é ou não confiável’, ‘se a política econômica está ou
não no caminho certo’, a ilustre visita atende pelo nome de Standard &
Poor’s.
Fosse um bicho, teria a morfologia de um cão farejador.
Sendo uma agência de risco, desembarca seu focinho tecnocrático para
vasculhar até que ponto as contas do governo garantem o pagamento de juros aos
rentistas da dívida pública
É nessa condição de quem ostenta uma coleira conduzida por poderosas mãos
invisíveis –que também costumam asfixiar o pescoço de governos--
que os emissários da ‘S&P’ terão acesso às contas brasileiras.
Reuniões em Brasília já estão agendadas para essa finalidade.
O gênero dos economistas de bancos, tão previsível quanto seus power
points, também será ouvido, a exemplo das consultorias afinadas pelo
diapasão do Brasil aos cacos.
A semelhança com as missões do FMI, ou os atuais comitês interventores da
Troika, na Europa, não é coincidência.
O espírito é o mesmo.
Métodos e métrica, idem. E por uma razão muito simples.
Os interesses que movem os ternos negros em todo o mundo são os mesmos.
O apetite do capital rentista utiliza regularmente a matilha carimbadora
de ‘ratings’ para devolver governos e nações à disciplina dos bons supridores
de juros ao capital financeiro.
O capital pode ser volátil; as políticas fiscais, não.
Não importa a que custo para a sociedade.
É com base nessa tradição que o conservadorismo e seus jornalistas
isentos esperam que a S&P reforce o seu palanque espetando um
downgrade no coração da candidatura Dilma.
Ou seja, rebaixando a nota de risco que mede a capacidade de um Estado honrar
os títulos que financiam sua dívida.
A mídia isenta não concebe a hipótese de a ‘S&P’ decepcionar.
Em junho do ano passado, quase em sintonia com os protestos, a agencia,
com escritórios em 23 países já havia revisado a perspectiva
do país de "estável" para "negativa".
Não importa que as justificativas tenham sido desmentidas pelos fatos.
O PIB de 2013 cresceu mais do que estimava a torcida que agora aposta em um
novo empurrão par abaixo.
A taxa de expansão da economia brasileira, de 2,3%, foi o dobro daquela do
México, por exemplo, cuja nota de risco foi elevada no mês passado por
outra agencia, a Moody’s.
A do Brasil, ao contrário, caiu dois graus abaixo da classificação festejada
pelo ‘amigável’ presidente mexicano, Enrique Peña Nieto --
comprometido com as ‘reformas’, explica o jornalismo comprometido com os
interesses que delas se beneficiam.
O descontrole fiscal, ‘a gastança’ –o voluntarismo petista, diria FHC--
outra justificativa para o rebaixamento brasileiro, tampouco se confirmou.
O Brasil mantém uma relação dívida bruta/PIB estável; exibe
ademais uma das menores proporções de endividamento líquido (descontadas
as reservas internacionais) do mundo.
No ano passado ela caiu para 35% do PIB.
Era superior a 60% há dez anos; um legado de FHC que os festejos dos 20 anos
do Real omitiram distraidamente.
A elevada expectativa conservadora, bem como a tensão dentro do governo,
com a chegada dos paletós pretos, não encontra lastro na respeitabilidade
intrínseca da ‘S&P’.
No início de 2013, o Departamento de Justiça norte-americano abriu um processo
por fraude contra ela.
Foi o primeiro grande processo contra uma agência de risco por sua cumplicidade
com as práticas de mercado que resultaram na explosão da bolha imobiliário nos
EUA, em 2008, e que acionaria o gatilho da maior crise mundial do capitalismo
desde 1929.
A ‘S&P’, que ora vem cobrar rigor nas contas brasileiras e arguir as
autoridades quanto a consistência das metas fiscais para 2014, enfrenta
acusações por agir de forma algo discrepante em seu país.
Entre elas a de blindar com a nota mais alta (o almejado triplo-A)
papéis e investimentos financeiros congenitamente insolventes, como era o caso
das subprimes e seus derivativos de fragilidade ainda superior.
Investidores e fundos previdenciários que se orientam pelos parâmetros
supostamente ‘técnicos’ dos ratings emitidos pela ‘S&P’
empanturraram-se de material tóxico, imaginando-se a salvo da tempestade que já
se desenhava no céu.
‘(...) “[A S&P] conscientemente e com a intenção de defraudar,
participou e executou um esquema para enganar os investidores’ (...)
[passou a falsa ideia de que as suas classificações] “eram objetivas,
independentes e não influenciadas por conflitos de interesses”, acusa o
documento levado aos tribunais pelo Departamento de Justiça dos EUA, segundo
noticiou o New York Times.
Um grupo de 13 municípios australianos abriu processo idêntico contra
a agencia alegando prejuízos milionários pelas mesmas razões.
Estima-se que se uma única dessas ações fosse consumada, o precedente poderia
despejar na ‘S&P’, sobre cujas sentenças recai boa parte das esperanças
eleitorais do conservadorismo brasileiro, ajuizamentos da ordem de US$
200 bi.
Em 2011, na tentativa algo caricata de recuperar uma credibilidade rastejante,
a agencia rebaixou a nota de risco dos EUA.
O tiro saiu pela culatra.
Não faltou quem lembrasse que o rigor de seus técnicos foi muito inferior ao
concederem nota A –elevada segurança-- ao banco Lehman Brothers, cuja
falência, em setembro de 2008, rompeu o dique da crise mundial.
O endosso da ‘S&P” à instituição símbolo da ruinosa supremacia das
finanças desreguladas foi concedida em agosto, um mês antes da bancarrota.
Desconfia-se que já como parte da desesperada tentativa de continuar empurrando
títulos do Lehman na goela dos incautos, como forma de mitigar as perdas dos
grandes acionistas, diante da quebra inevitável.
Como corolário da impoluta trajetória ética e técnica recorde-se que o governo
norte-americano encontrou um erro de cálculo de ‘apenas’ US$ 2 trilhões nas
contas que orientaram a Standard & Poor’s a rebaixar o rating do
país.
Esse é a folha corrida por trás da missão reverenciada com ansiedade pelo
colunismo isento e as candidaturas pró-mercados.
A participação involuntária do governo Dilma nesse teatro de marionetes
merece reflexão à parte.
Não é um problema do economicismo latente do governo –ou da complacência
petista com o mercado, como se pode carimbar.
É mais grave que isso.
Decorre da paradoxal restauração de uma ordem iníqua apoiada nas ruínas de
seus próprias dogmas e promessas.
É como se o Muro de Berlim desabasse e nenhuma sola de sapato consumasse a
travessia, de um lado e outro.
O dique trincou, mas as águas congelaram diante da fenda.
A autoridade da ‘S&P’ emana dessa correlação de forças inercial
cristalizada desde 2008.
Seu poder de chantagem agora se amplia, com a reabertura das rotas de
fuga para as economias ricas, em ziguezagueante processo de recuperação.
De onde vem essa paralisia capaz de transformar a água em sua própria parede?
Vem da impotência anterior da democracia, que a tornou incapaz de renovar a
sociedade e o desenvolvimento mesmo em meio a uma crise sistêmica da ordem
neoliberal.
Desarmada pelas derrotas anteriores da esquerda, e a adesão de uma parte dela
ao cuore neoliberal, o sistema representativo deparou-se com a fenda do dique
sem dispor de canais de debate e organização para não só acolher como
estruturar um jorro de vontade mudancista.
As ruas se encheram de indignação na Espanha, por exemplo.
Mas as urnas elegeriam Mariano Rajoy, herdeiro da cepa franquista, que calafetou
a muralha com uma taxa de desemprego de 60% entre a juventude
espanhola.
A prostração democrática não é uma fatalidade diante de uma crise sistêmica.
Ela é um produto histórico. De decisões políticas. E rendições
ideológicas.
O campo progressista brasileiro tem nas eleições de outubro um poderoso
instrumento para demonstrar que não é necessário que seja assim.
A ‘Standard & Poor’s desembarca com respaldo dos mercados, da mídia e
do conservadorismo não apenas para chantagear o final do governo Dilma.
Mas para engessá-la no palanque de outubro.
No limite, desossar sua eventual reeleição.
O que significa frustrar o desejo mudancista do eleitor brasileiro,
majoritariamente associado à sua condução do processo.
Se a uma organização com os atributos da ‘S&P’ é facultado o
acesso a todas as informações de governo, ademais do tempo requerido de seus
principais técnicos e assessores, algo equivalente deve ser feito na direção
oposta.
Aquela que fortaleça a democracia, abrindo canais suplementares de participação
da sociedade na discussão do passo seguinte do seu desenvolvimento.
O programa de governo da candidata Dilma Rousseff é a ponte entre a prostração
democrática que favorece a chantagem dos mercados, e uma repactuação
consistente do futuro, feita de prazos e metas críveis para a
construção da cidadania plena no país.
O programa de governo da reeleição pode e deve ser construído em debate aberto
com a sociedade através da rede já existente de sites e blogs progressistas.
O casamento da democracia com o desenvolvimento não acontecerá à margem do
poder.
E não há nada mais poderoso do que uma plataforma de governo sedimentada em
debate amplo, convergindo para círculos e conferencias presenciais
da militância progressista.
Ilusão não é erguer pontes que materializem o horizonte de uma democracia
social.
Ilusão é achar que ela pode ser construída sem essas pontes.
Ou escorada exclusivamente na busca de anuência da ‘Standard &
Poor’s’ para as contas do país.