Luiz Flávio Gomes: “É boa a chance da Corte Interamericana de
Direitos Humanos anular as condenações do mensalão e determinar novo
julgamento”
publicado em 7 de março
de 2014 às 20:39
Foto: Nelson Jr./SCO/STF
Luiz Flávio Gomes:
"Muitos ministros do STF -- por exemplo, Marco Aurélio e Joaquim Barbosa
--, depreciam o sistema interamericano de direitos humanos, dizem que ele não
vale nada; conclusões equivocadas e totalmente desatualizadas".
por Conceição Lemes
Em setembro de 2012, em
entrevista ao Viomundo,
advogado criminalista Luiz Flávio Gomes denunciou:
Ele referia-se à dupla-função de
Joaquim Barbosa, atual presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), no
julgamento da Ação Penal 470 (AP/470), o chamado mensalão: o de investigador e
o de juiz.
“Isso conflita com a
jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos”, alertou à época.
“O juiz fica psicologicamente envolvido com o que ele faz antes e aí está
contaminado para atuar depois no processo.”
E, como Luiz Flávio já
previa em 2012, a maioria dos réus do mensalão foi condenada por esse
dispositivo que ele considera da Idade Média.
Nós voltamos a conversar hoje sobre
a Corte Interamericana de Direitos Humanos e o julgamento da AP 470.
Viomundo — O STF infringiu
mesmo o que recomenda a Corte Interamericana de Direitos Humanos?
Luiz Flávio Gomes –
Com certeza. Entre as possíveis violações à jurisprudência do sistema
interamericano de direitos humanos, o STF praticou pelo menos duas.
Uma delas: o mesmo juiz que
investigou o caso, o ministro Joaquim Barbosa, presidiu o julgamento. Cumpriu
dois papeis: o de investigar e o de julgar. Isso ocorria na Idade Média, no processo
inquisitivo.
A outra violação: foi descumprida
a garantia do duplo grau de jurisdição, tal como reconhecido no julgamento da
Corte Interamericana de 2009, caso Barreto Leiva.
O senhor Barreto Leiva Barreto
foi julgado diretamente pela Corte Suprema venezuelana, sem direito ao duplo
grau de jurisdição. Ele levou o caso à Corte Interamericana de Direitos
Humanos, que reconheceu o direito dele ao duplo grau de jurisdição.
Viomundo – O Brasil é obrigado
a cumprir a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos?
Luiz Flávio Gomes – Pacta
sunt servanda: os pactos devem ser cumpridos.
Nenhum país é obrigado a assinar
tratados internacionais nem a reconhecer a jurisprudência do sistema
interamericano. Porém, depois de assumidos, devem ser cumpridos.
O Brasil assumiu a jurisdição do
sistema interamericano de direitos humanos em 1998. Está obrigado a respeitar
suas decisões. A jurisprudência da Corte é tranquila no sentido do sentido de
que o mesmo juiz não pode cumprir dois papeis — o investigativo e o judicial.
Veja o caso Las Palmeras, da Corte Interamericana. Quanto ao
duplo grau de jurisdição, veja o caso Barreto Leiva
O caso Las Palmeras foi
contra a Colômbia. Lá aconteceu algo igual ao que aconteceu aqui no mensalão.
Um juiz presidiu a investigação e depois participou do julgamento.
Esse caso foi para a Corte
Interamericana de Direitos Humanos, que disse: não pode. O
magistrado que cumpre o duplo papel de “parte” (investigador) e de juiz viola a
garantia do juiz imparcial. Em função disso, a Corte anulou totalmente o
julgamento realizado na Colômbia.
Outro exemplo é caso Araguaia. A
Corte Interamericana de Direitos Humanos mandou investigar e processar os
crimes da ditadura no Brasil.
Viomundo — Na cabeça de nós,
leigos, o juiz tem de ser imparcial. Na prática, não é o que vimos no
julgamento da AP 470. Qual a consequência dessa parcialidade?
Luiz Flávio Gomes – A
consequência da parcialidade do juiz — é o caso, por exemplo, de Joaquim
Barbosa, que presidiu a investigação preliminar, ficando subjetivamente
comprometido com o resultado do processo — é o descumprimento do artigo 8º da
Convenção Americana de Direitos Humanos, que pode levar a Corte Interamericana
a anular o processo do mensalão, determinando que outro seja feito.
Durante o processamento da
reclamação no Sistema Interamericano o réu continua cumprindo sua pena
normalmente. Os processos hoje na Comissão estão demorando de 1 a 2 anos. O
mesmo tempo se passa na Corte.
Viomundo — Na mensagem que
trocamos, o senhor me disse: nós vivemos num regime político-criminal regido
por um capitalismo primitivo… a Itália é outro mundo. Por favor, explique o que
isso significa.
Luiz Flávio Gomes – Olhando
o mundo capitalista de hoje, nos podemos distinguir, entre outros, estes três
modelos:
1. Capitalismo evoluído e
distributivo — Fundado na educação de qualidade para todos, boa ou
excelente renda per capita, pouca desigualdade. Estão nesse
grupo Dinamarca, Suécia, Bélgica, Holanda, Alemanha, Finlândia, Islândia,
Áustria, Austrália, Japão, Coreia do Sul, Cingapura, Suíça, Noruega etc.
2. O oposto é o capitalismo
selvagem (no caso brasileiro, extrativista e patrimonialista) –É
marcado pela carência de educação de qualidade, baixa renda per capita e
alta desigualdade. Praticamente todos os países da América Latina e África
seguem esse modelo.
3. O capitalismo intermediário —
É próspero, mas exageradamente concentrador: é o caso dos EUA.
No primeiro grupo, a média de
assassinatos é de 1,8 para cada 100 mil pessoas. No segundo grupo, a violência
é epidêmica: 10 ou mais assassinatos para cada 100 mil pessoas. O Brasil está
com 27,1 para cada 100 mil). No terceiro, a média é de 3 a 9 assassinatos para
cada 100 mil pessoas. Nos Estados Unidos estão com 4,7 por 100 mil.
Viomundo — Quais as diferenças
punitivas entre, por exemplo, o Brasil, Estados Unidos, Dinamarca, Holanda,
Noruega, Itália e Japão?
Luiz Flávio Gomes – Cada
um dos três modelos de capitalismo que mencionei acima conta com seu próprio
modelo político-criminal.
O capitalismo do grupo 1 prioriza
a prevenção do crime e ainda conta com um eficiente império da lei — baixa
impunidade.
O do grupo 2 não tem política
preventiva e o império da lei é paupérrimo — altíssima taxa de impunidade. No
caso do Brasil, não previne nem reprime extensamente.
O capitalismo do grupo 3 conta
com sistema preventivo mas não o prioriza. Em compensação, seu sistema penal
funciona razoavelmente. É o caso dos EUA.
Viomundo — Na prática, em que
isso resulta?
Luiz Flávio Gomes – O
grupo 1 não se caracteriza, em regra, pela crueldade das penas. São justas e
muitas vezes suaves, mas certas e praticamente infalíveis.
O grupo 2 se caracteriza pelas
penas duras e cruéis, mas que raramente são aplicadas.
O grupo 3 — caso dos EUA — tem
penas duras e são normalmente aplicadas. Se não é o mais duro sistema penal do
Ocidente, é um dos mais. Nem por isso tem as mais baixas taxas de
criminalidade. Lá tem quase três vezes mais homicídios do que nos países do
grupo 1.
Viomundo -- O
julgamento da AP 470 deve ser remetido à Corte Interamericana de Direitos
Humanos?
Luiz Flávio Gomes –De
forma direta, a Corte não interfere nos processos que tramitam num determinado
Estado membro sujeito à sua jurisdição. Isso porque a adesão é livre e
espontânea adesão). Porém, de forma indireta, sim.
Muitos ministros do STF –
por exemplo, Marco Aurélio e Joaquim Barbosa — depreciam a jurisdição
interamericana. Dizem que ela não tem nenhum valor.
Lendo esses infelizes comentários
deles, a sensação que se tem é de que a Corte ou a Comissão Interamericana
de Direitos Humanos não teria poderes para modificar o que foi decidido pelo
STF e que as sanções delas são basicamente indenizatórias.
Nada mais equivocado do que essas
conclusões, totalmente desatualizadas. São emanadas de juristas que
tiveram formação jurídica legalista, sem conhecerem os progressos do direito
internacional.
Continuam presos ao grande
jurista vienense Kelsen, que desenvolveu o sistema jurídico legalista. Estão
ultrapassados. Bastaria ver o que aconteceu com Maria da Penha, cujos direitos
foram reconhecidos pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, para
perceberem que o mundo está mudando.
Viomundo — Como o senhor bem
lembrou, há ministros do STF que desdenham da possibilidade de se levar o
processo do mensalão para a Corte Interamericana de Direitos Humanos, enquanto
o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, diz que o julgamento seguiu à
risca o que determina a Corte. E, aí?
Luiz Flávio Gomes — O
caso Barreto Leiva contra Venezuela mostra que a Corte, em sua
decisão de 17 de novembro de 2009, apresentou duas surpresas. A primeira é que
fez valer em toda a sua integralidade o direito ao duplo grau de jurisdição, ou
seja, o direito de ser julgado duas vezes, de forma ampla e ilimitada. A
segunda surpresa é que deixou claro que esse direito vale para todos os réus,
inclusive os julgados pelo Tribunal máximo do país, em razão do foro especial
por prerrogativa de função ou de conexão com quem desfruta dessa prerrogativa.
Esse precedente da Corte
Interamericana encaixa-se como luva ao processo do mensalão, que descumpriu a
jurisprudência da Corte Interamericana.
Viomundo — Na entrevista que
fizemos em 2012, o senhor disse que em função do desrespeito à jurisprudiência
da Corte Interamericana de Direitos Humanos o julgamento do mensalão poderia
ser anulado. O que acha agora com a ação já transitada em julgado e os réus na
cadeia?
Luiz Flávio Gomes – Eventual
reclamação ao sistema interamericano não impede que os condenados continuem
cumprindo suas sentenças. Mas é boa a chance de anulação dessas condenações em
razão da falta de imparcialidade do Joaquim Barbosa, que presidiu a fase de
investigação e o processo. E grande a chance de provocar um segundo julgamento,
por desrespeito ao duplo grau de jurisdição.