Marco Civil: se disserem que a lei é para censurar e espionar, não acredite.
16/03/2014 14:36
Por: Leonardo Sakamoto
Estão circulando mensagens pela
rede acusando o projeto do Marco Civil de querer implantar a censura e o
controle do governo sobre a internet no Brasil.
Peraí, de que trem você tá
falando, japonês? Vamos recapitular: a Câmara dos Deputados, novamente, está
para votar esse projeto de lei que tende a ser um divisor de águas entre a
internet que hoje conhecemos e o que querem fazer dela as operadoras de
telecomunicações no Brasil. O documento é uma espécie de “Constituição’’ da
internet, uma carta de princípios que prevê os direitos dos usuários e deveres
das prestadoras de serviço e do Estado”.
Dizer que o Marco Civil vai
implantar a censura e o controle do governo na internet é do mesmo naipe –
guardadas as devidas proporções, pelamordedeus – de dizer que a Lei Áurea veio
para tirar direitos das pessoas escravizadas. É uma inversão total, seja por
desconhecimento ou má fé.
Leia também:
É claro que ninguém quer o Estado
metendo o bedelho onde não é chamado e interferindo em nossa vida. Mas, várias
vezes, ele é necessário para garantir que a vida de todos seja um pouco mais
justa.
Por exemplo: se não houvessem
leis e normas, eu, que tenho 1,83 m de altura, poderia chegar com meu tacape e
levar a merenda de colegas menores e franzinos (#sakaboladão). Mas aceitamos
abrir mão do cada-um-por-si-e-o-Sobrenatural-por-todos para garantir uma
convivência pacífica.
Em outras palavras, se não
houvesse nada, seria a Lei da Selva.
Outro exemplo: do ponto de vista
trabalhista, muita gente reclama que a CLT engessa e atrapalha o
desenvolvimento econômico. O que, pasmem, eu concordo. Mas imagine como a vida
seria mais difícil sem férias remuneradas, 13o salário, adicional
insalubridade, licença-maternidade, auxílio-doença, limite de jornada de
trabalho, regras para operários não cozinharem em siderúrgicas ou congelarem em
frigoríficos? A corda iria estourar para o lado mais fraco, ou seja, você
trabalhador.
Seria tão mais legal que as
empresas e governos olhassem para os trabalhadores e dissessem: puxa, isso é
sacanagem contigo! Trabalhe menos se não você vai morrer. Mas também seria
ótimo se o meu Palmeiras tivesse um time competitivo. Como não dá para viver em
um mundo de ficção, é aquela coisa: ruim com algumas regras e leis, mas muito
pior sem elas.
Isso não se aplica, claro, a você
que nasceu em berço de ouro e trabalha por hobby. Mas aí eu me pergunto: por
que está lendo este blog mala neste dia tão bonito e não dando a volta ao mundo
em um catamarã?
Enfim, nem todo mundo nasce com
tudo à disposição. Para algumas pessoas, principalmente as mais pobres, a
sociedade pode ser bem sacana. Então, a necessidade de equilibrar um pouco as
coisas, com o Estado, esse opressor de uma figa, sendo forçado a garantir
direitos mínimos. Porque ao contrário de alguns que vêm comunistas e unicórnios
em todos os lugares, se deixar, o Estado favorece quem já tem.
Tem gente que discorda, diz que é
só o Estado sair de cena que as coisas se resolvem sozinhas, pois todo mundo
quer o bem de todo mundo. Ahã, senta lá, Claudia – e leva os seus Ursinhos
Carinhosos junto com você.
Pois bem, muitas vezes não é um
Sakamoto de tacape que vai roubar sua merenda a fonte de preocupação, mas sim
uma grande empresa que quer tungar você. Como topamos viver em sociedade,
aceitando abrir mão de entrar no prédio da empresa e encher de tabefe os gênios
que querem implantar consumidores de primeira e segunda classes, o jeito é
apelar para que o Estado faça essa mediação.
Como? Aprovando leis no Poder
Legislativo, julgando ações com base nelas no Poder Judiciário, fiscalizando o
seu cumprimento no Poder Executivo.
Agora imagine se não houvesse
leis que defendem os interesses dos consumidores. Que você comprasse aquela
geladeira linda e, ao chegar em casa, descobrisse que ela esquenta ao invés de
esfriar? Ou que encontrasse um rato, bêbado e morto, dentro da sua cerveja? Ou
que o carro que você comprou amputasse seu dedo na hora de mexer no
porta-malas? E não pudesse reclamar porque não a vida é assim mesmo e mais
sorte da próxima vez?
O Marco Civil protege o
consumidor da sanha das empresas que querem oferecer serviços de internet do
jeito que elas querem e não necessariamente do jeito que o consumidor ache mais
justo. Mas também protege o cidadão do autoritarismo de quaisquer governos de
plantão.
O artigo 9o do projeto do Marco
Civil garante a neutralidade da rede. Sem isso, as operadoras poderão vender
pacotes diferenciados aos usuários em função do tipo de serviço acessado na
rede. Mais ou menos assim: hoje você contrata o acesso à internet por uma
operadora pagando mais em função da velocidade do acesso (500 KB, 1 MB, 2 MB etc.).
No entanto, dentro da velocidade
contratada (que é uma peça de ficção, claro) não há diferença em função do
conteúdo ou das aplicações que trafegam nos cabos ou pelo ar. Ou seja, você, em
tese, conta com a mesma velocidade independentemente se estiver mandando um
e-mail ou vendo vídeo pornô. E pode exigir isso.
O que as teles querem fazer? Ter
o direito de bisbilhotar na sua navegação, ou seja, checar o que se passa na
sua vida, para saber que tipo de conteúdo e/ou serviço você está acessando a
fim de criar pacotes diferenciados de acesso. Assim, se quiser baixar ou subir
vídeos, por exemplo, terá que contratar um plano “plus-master-blaster”. Se
ficar só no pacote básico (bem no estilo TVs por assinatura), só vai poder
mandar e-mail e usar o Facebook. E lembre-se: parece que não, mas existe vida
na internet além da TL do Facebook.
Já o artigo 7o define uma série
de garantias à nossa privacidade. Ou seja, regras para que o governo não fique
bisbilhotando a vida dos outros (Obama, lê eu aqui!). É justamente o contrário
de um controle governamental da internet, pois hoje – pasmem – não há nada que
nos proteja da sanha das empresas de telecomunicações, que querem lucrar com a
venda dos nossos dados, e da espionagem de mandatários autoritários. Por isso o
Marco Civil é tão importante.
Diferentemente do que andam
espalhando por ai, o projeto de lei reconhece o direito do usuário à
inviolabilidade de suas comunicações e ao sigilo de seus registros na Internet.
Ou seja, deixa claro que nenhum fuinha tem direito de ficar xeretando na nossa
vida.
Qualquer acesso a esses
registros, tanto por terceiros quanto por autoridades, só ocorrera mediante
decisão judicial. E, para que o pedido à Justiça seja válido, o Marco Civil
exige que o interessado comprove sua utilidade, pertinência e que haja indícios
concretos da prática ilícita.
Sem o Marco Civil, aliás, a
censura poderá continuar acontecendo através de uma simples notificação aos
provedores de conteúdo. E ela pode ser política (um deputado pode ameaçar um
provedor por difamação e forçar um blog a sair do ar – e, não raro, muitos
provedores se borram de medo e sacam fora para não terem problemas) ou
comercial (apesar de ser permitida a reprodução de pequenos trechos de conteúdo
sem o pagamento de direitos autorais, canais de TV acionam o Youtube, que tira
tudo de lá mesmo sem ordem judicial, por receio de problemas maiores).
Ou seja, aquele vídeo legal pacas
em que o humorista tirou um barato do apresentador que falou uma besteira sem
tamanho, hoje vai pro saco por conta de uma situação de “insegurança
jurídica''. Em outras palavras, você não pode nem usar a imagem para criticar
ou tirar um sarro porque a lei não é clara quanto ao uso desse conteúdo. O
artigo 20 do novo Marco Civil tira a responsabilidade dos provedores de
conteúdos postados por terceiros, justamente para garantir a liberdade de
expressão dos internautas!
Uns vão dizer que é dor de
cotovelo minha por conta dos memes contra a minha pessoa circulando loucamente
pela rede enquanto os vídeos-meme do William Bonner são rapidamente derrubados.
Sim, confesso, é inveja.
“Ah, mas o projeto é o governo
tentando censurar tudo e a todos'' [sobe som, tambores ritmados ao fundo, uma
corneta do exército faz-se ouvir com o toque de alvorada, sons de botas e
tropas marchando].
Né, não…
O Marco Civil é uma ideia tão
democrática que ela não viria da cabeça de nenhum governo. Pelo contrário, foi
uma construção coletiva, feita durante quatro cansativos anos de debates com
ajuda de organizações da sociedade civil, entidades que defendem a liberdade de
expressão e os direitos dos consumidores, enfim, uma pá de gente). Ou seja, é
uma proposta da sociedade, que acabou encampada pelo governo por que a
espionagem do Tio Sam vazou via Edward Snowden e o Brasil tinha que dar uma
resposta à altura para não ficar chato. Daí, encampou o Marco Civil que já
estava por aí.
Se fosse o oposto, o inventor da
internet, Tim Berners-Lee (é… caro leitor com menos de 18 anos, a internet não
esteve sempre aí, não), não teria declarado esta semana, no dia em que a web
completou um quarto de século, que o mundo precisa de uma constituição
universal para a internet, a fim de proteger os interesses dos usuários. Ou
seja, o mundo precisa do que estamos fazendo agora com o Marco Civil.
Enfim, este texto, é claro,
simplifica muito a coisa porque seria um porre ler mais do que isso. Mas se
informem mais! Procurem na internet organizações que lidam com esse tema há
anos e leiam os textos e discussões sobre esse assunto. No site www.marcocivil.org.br tem muita informação para
vocês que querem, de fato, entender o que esta rolando. Não confiem em
informação sem fonte circulando por aí, não formem sua opinião por memes (putz,
isso é tão deprimente) ou por correntes sem dono que nascem em gabinetes de
parlamentares que defendem pesados interesses econômicos.
Como já disse aqui, dependendo do
que ocorrer com a votação do projeto (que, agora, está no meio do fogo cruzado
da briguinha entre governo e PMDB e base “aliada'') poderá ser criado um
apartheid digital, com usuários de duas classes distintas: os que podem pagar
para ter acesso à internet “completa” e os que, mais uma vez, terão seu direito
de acesso à informação e liberdade de expressão na rede cerceado por seu
limitado poder de compra. Traduzindo: os mais pobres vão rodar de novo.
E a justificativa, como sempre, é
aquele blablablá de que empresas irão quebrar, investimentos no desenvolvimento
da internet não serão feitos, continuaremos na idade da pedra digital, a internet
ficará mais cara. Mas não, não vai. Sem a neutralidade da rede é que as
operadoras vão poder cobrar mais para que tenhamos acesso a conteúdos
diferentes.
Leonardo
Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política. Cobriu conflitos armados e
o desrespeito aos direitos humanos em Timor Leste, Angola e no Paquistão.
Professor de Jornalismo na PUC-SP, é coordenador da ONG Repórter Brasil e seu
representante na Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo.
http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2014/03/16/marco-civil-se-disserem-que-a-lei-e-para-censurar-e-espionar-nao-acredite/