Estágio simbólico da atual Guerra Mundial: Há exatos 15 anos, a OTAN bombardeou a Iugoslávia. Se saltarmos fora por um minuto do rio infindável de notícias, podemos ver que já estamos mergulhados bem fundo na 4ª Guerra Mundial.
Começou em 1989 com a queda do Muro de Berlim, que marcou o fim da 3ª,
também chamada “Guerra Fria”. O último capítulo da 4ª Guerra Mundial é,
obviamente, a fracassada tentativa de expulsar a Rússia da Crimeia, mas, até
agora, o estágio mais simbólico ainda é o bombardeio pela OTAN contra a
Iugoslávia, que começou dia 24/3/1999, há exatos 15 anos. Foi uma guerra contra
Slobodan Milosevic, mas também uma guerra para mudar rumo ao leste a influência
e as fronteiras da OTAN.
Sérvio bósnio examina os destroços perto da cidade de Brod,
dia 8/9/1999, depois de um ataque por aviões da OTAN, dois dias antes (Reuters)
A Operação Força Aliada, como a OTAN a batizou, consistiu de 78 dias de
bombardeio ininterrupto contra a Iugoslávia de Milosevic, com intensidade
progressiva, passando, os alvos, de militares, para a infraestrutura civil.
Morreram cerca de 200 civis sérvios, como “dano colateral” (contra cerca de 300
que morreram no Kosovo, quase todos albaneses étnicos), enquanto a OTAN
virtualmente não teve baixas durante as operações, só alguns soldados mortos em
pressupostos acidentes.
A guerra “perfeita”
Foi a Guerra Perfeita. O historiador militar britânico John Keegan
arrependeu-se quase teatralmente no Daily Telegraph pela velha
fé que sempre dedicara aos soldados de infantaria:
Há algumas datas na história das guerras que marcam autênticos pontos
de virada (…) Agora temos um novo ponto de virada para marcar no calendário:
3/6/1999, quando a capitulação do presidente Milosevic provou que se pode
vencer uma guerra só com poder aéreo.
Guerra muito limpa, com muitas bombas inteligentes capazes de rachar a
Sérvia e só atingir os maus, como sugeriu a propaganda incansável. Apresentar,
à opinião pública ocidental, aquela guerra de agressão dentro da Europa
Oriental como Guerra Justa não foi, de início, tarefa fácil. Mas os Persuasores
Ocultos já tinham, a favor deles, a experiência da Guerra do Golfo de George H.
W. Bush. Se a Guerra do Golfo foi a primeira guerra televisionada, vista pela
gentil seleção das câmeras da CNN, a guerra da Iugoslávia foi a
primeira guerra da internet.
Tinham de achar um gatilho simbólico e acharam: o massacre de Racak, uma
vila no Kosovo, onde 45 albaneses étnicos foram mortos pelo exército sérvio, em
resposta à morte, a tiros, de quatro policiais sérvios. A narrativa da OTAN fez
crer que o bombardeio seria consequência de limpeza étnica de sérvios, mas a
verdade foi exatamente o contrário disso: o gatilho para aquela guerra foi a
intervenção da OTAN em algumas operações contra a população do Kosovo, no
contexto da guerra contra separatistas do Exército de Libertação do Kosovo
[ing. KLA] apoiado por EUA e Alemanha.
Vista aérea tomada dia
15/6/1999 da agência central dos Correios de Pristina, destruída pelas bombas
da OTAN (AFP Photo/Reuters)
O deputado do Partido Labour (Trabalhista?) britânico,
Tony Benn (que faleceu há alguns dias), disse no Parlamento:
Seja qual for a legalidade ou a moralidade da guerra lançada contra a
Iugoslávia, o bombardeio piorou gravemente a crise de refugiados.
Richard Gott do (acima de qualquer suspeita) The Guardian escreveu que:
(...) os repentinos deslocamentos de populações do Kosovo foram
disparados pelos bombardeios feitos pela OTAN e pela decisão tomada por
governos ocidentais de impor condições impossíveis ao estado soberano sérvio.
Como dito naqueles dias, sempre pelo The Guardian:
O KLA foi reabastecido com armas contrabandeadas através da
fronteira da Albânia e reocupou vilas que as forças de segurança sérvia já
haviam esvaziado.
Sobre Racak também o (acima de qualquer suspeita) The Times teve
algumas dúvidas:
A realidade do que aconteceu em Racak continua encoberta por
declarações e contradeclarações. O que se sabe é que quatro policiais sérvios
foram mortos nos arredores da vila em emboscada feita pelo Kosovo
Liberation Army (KLA). Subsequentemente, pelo menos 40 albaneses
étnicos da vila foram mortos a tiros numa emboscada feita pelos sérvios de
madrugada. Os sérvios dizem que todos os mortos eram guerrilheiros do KLA mortos
em ação. Os albaneses dizem que eram civis, assassinados depois de capturados.
Mas não basta um gatilho-pretexto. Para convencer gente você precisa de
um conjunto de ideias, porque, apesar da morte de todas as ideias declarada
pelo neoliberalismo triunfante, as ideias estão mais vivas do que nunca. A
ideia que faltava, então, chamou-se Direitos Humanos. Sejamos claros: quem pode
ser contra “direitos humanos”? Mas uma coisa são os direitos humanos pelos
quais foi morto o bispo guatemalteco Juan Gerardi, assassinado por esquadrões
da morte em 1998, por exemplo; e outra coisa é “direitos humanos” como ideia
defendida por George W. Bush e Tony Blair.
A “humanidade” como pretexto
Na Grã-Bretanha, para pavimentar o caminho para aquela operação, apareceu
em 1997 o New Labour
Manifesto. Ali se criou uma “política exterior ética”:
O partido Labour (Trabalhista?) quer que a
Grã-Bretanha seja respeitada no mundo pela integridade com que conduz suas
relações exteriores. Faremos da proteção e da promoção de direitos humanos uma
parte central de nossa política externa. Trabalharemos para a criação de uma
corte criminal internacional permanente para investigar genocídios, crimes de
guerra e crimes contra a humanidade.
Quem fala de “humanidade” trapaceia – escreveu Pierre-Joseph
Proudhon, então citado por Carl Schmitt. Whoever Says Humanity é
também título do livro que Danilo Zolo, professor de Filosofia e Direito e de
Filosofia do Direito Internacional na Universidade de Florença escreveu
naqueles dias.
No início dos anos 1990s a “intervenção humanitária” passou a ser um
elemento chave da estratégia internacional dos EUA. Os EUA diziam que a
“segurança global” exigia que as grandes potências responsáveis pela ordem
mundial passassem a ver como antiquado o princípio de Westphalia, da não
interferência na jurisdição doméstica de estados nacionais. A guerra lançada
pelos EUA contra a República Federal da Iugoslávia – a guerra no Kosovo em 1999
– finalmente estabeleceu o intervencionismo humanitário como prática. A partir
de então a motivação dita humanitária seria tomada explicitamente como causa
justa para guerra de agressão. E os EUA resolveram que o uso da força por
razões humanitárias seria legítimo... apesar de estar em oposição à Carta das
Nações Unidas, aos princípios do estatuto e do julgamento do Tribunal de
Nuremberg e em oposição, de fato, a toda a lei internacional em geral –
diz Zolo.
Bombardeiro B-52 da Força
Aérea dos EUA lança uma carga de bombas M117 de 750 libras, nessa foto de
arquivo, não datada (Foto U.S. Air Force)
O filósofo italiano Costanzo Preve deu ao seu livro sobre o bombardeio
pela OTAN o título de “O Bombardeio Ético”. Ali, Preve escreveu:
Os EUA criaram uma situação trágica na qual a filosofia dos direitos
humanos universais conflita diretamente com uma caricatura distorcida deles: a
ideologia de que se exportariam direitos humanos pela violência armada. No
sentido grego original, a palavra tragédia faz referência a situação
absolutamente sem saída ou esperança, na qual qualquer decisão, seja qual for,
é má decisão. A questão dos direitos humanos é, provavelmente, a mais
trágica de nossos tempos.
Por um lado, todos, em todo o mundo têm de ser educados para os
direitos humanos. Ainda mais, essa educação tem de ser filosoficamente ancorada
num diálogo universal real, sem o preconceito obsceno de alguma “superioridade”
ocidental, particularmente a versão mais desprezível daquele preconceito, que
nos chega como ordem divina exarada do castelo na colina de Ronald Reagan. Por
outro lado, a total subserviência da ONU aos EUA e a seus repugnantes governos
fantoches levou a uma condição de ilegalidade internacional rampante.
Ironicamente, o momento de Bomba-bomba-bomba-contra-Milosevic coincidiu
na Itália com a chegada ao poder do primeiro primeiro-ministro saído do velho
Partido Comunista, Massimo D’Alema. O ex-presidente da República Francesco
Cossiga escreveu:
A chegada do “comunista” D’Alema ao Palazzo Chigi (sede do governo)
aconteceu com pleno apoio de Washington, em troca da garantia de que a Itália
não se retiraria da Guerra do Kosovo.
Ainda mais ironicamente, o bombardeio começou no mesmo ano em que nasceu
o euro.
Com o ataque contra a Iugoslávia, o governo Clinton aproveitou a ocasião
para demonstrar ao mundo a inconsistência política da Nova Europa, sempre
dependente dos EUA. Ao combater a favor da ideologia dos Direitos Humanos no
Kosovo, a Europa estava, de fato, obedecendo à agenda imperial.
Para citar o filósofo italiano Diego Fusaro:
Com o colapso da estrutura bipolar do universo, iniciou-se nova fase
de conflitos, todos diferentes, e, ao mesmo tempo, todos já dentro da 4ª Guerra
Mundial. Essa é guerra geopolítica e cultural declarada pela Monarquia
Universal (MU) contra o resto do mundo. Uma guerra contra todos os povos e
nações que não estão dispostos a submeter ao poder da MU, i.e. a suas políticas
de dominação mundial mediante o formato mercadoria.
24/3/2014
Russia Today
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Claudio Gallo é jornalista. Trabalha atualmente como
editor de Cultura de La Stampa, onde é também editor internacional
e correspondente em Londres. Sua principal área de interesse é a política do
Oriente Médio.
POSTADO POR CASTOR FILHO ÀS 15:00:00