(Jango é fotografado pela mulher Maria Tereza em seu exílio no Uruguai em 1964. Foto: acervo FGV) |
Em agosto de 1964, deposto e exilado no Uruguai, João Goulart
publicaria um manifesto numa revista de esquerda, a pretexto dos dez anos da
morte de Getúlio Vargas. O texto acabou sendo lido na íntegra no plenário da
Câmara dos Deputados por Doutel de Andrade, líder do PTB, o partido de Jango, o
que foi considerado uma provocação pelo ministro da Guerra e futuro presidente
Costa e Silva. Já naquela época, apenas por ler as palavras do ex-presidente,
Doutel foi ameaçado de cassação, o que iria ocorrer dois anos depois, em 1966.
Instigado pelos milicos, o
governo do Uruguai “advertiu os brasileiros no exílio, especificamente o
presidente João Goulart, pela violação do direito de asilo político ao publicar
documento considerado subversivo pelo governo brasileiro”, segundo um documento
da diplomacia britânica. No texto, Jango destaca seu perfil “liberal” e
“cristão” para se distanciar do estigma de comunista que tentaram lhe impingir.
“A subversão, fartamente
denunciada e muito bem paga, na profusão de rádios, jornais e televisão, era o
preparo da mentira do perigo comunista, que iria constituir o ponto de partida
para concretização da quartelada, a fim de que, assim, pudessem esmagar as
justas aspirações populares que o meu Governo defendia”, diz Jango, denunciando
o papel da imprensa no golpe. É preciso destacar que, apesar do massacre
midiático, o presidente contava com apoio popular quando foi derrubado e
poderia ser reeleito em cinco capitais –inclusive no Rio de Janeiro do golpista
Carlos Lacerda. “Hoje, lançam contra mim toda a sorte de calúnias. Sei que
continuarão a injuriar-me. Mas o julgamento que respeito e que alguns temem é o
do povo brasileiro”, escreveu Jango.
Este texto de João Goulart é
muito pouco divulgado, talvez por ser tão esclarecedor do pensamento do
ex-presidente e de suas convicções democráticas. Reproduzo-o aqui, na íntegra,
para que a história lhe faça justiça.
Publicado em 29 de março de 2014
***
Por João Goulart, agosto de
1964
Faz hoje dez anos que a Nação,
traumatizada, assistiu ao supremo sacrifício de Getúlio Vargas. Nunca deixei de
me dirigir a todos vós, neste dia, que está definitivamente incorporado à nossa
história, marcando, no Brasil republicano, o instante heróico do saudoso
estadista que empenhou a própria vida para conter as terríveis forças do
obscurantismo e para que pudéssemos prosseguir na dura caminhada da libertação
do nosso povo e da nossa Pátria. É, pois, a luta do povo pela liberdade e pela
conquista das reformas estruturais profundas e cristãs da sociedade brasileira
que, mais uma vez, conduz ao encontro dos vossos anseios e das vossas mais
aflitas esperanças.
Deixo, assim, no exílio em que me
acho, o silêncio a que me havia imposto para voltar à intimidade honrada dos
vossos lares, muitos já violados, dos vossos sindicatos, oprimidos; das vossas
associações, atingidas pelo ódio da reação, com uma palavra de advertência,
mas, sobretudo, de fé inquebrantável no destino do nosso país. Esta palavra já
não parte do Presidente da República. Não vos posso, também, dirigi-la da praça
pública, onde tantas vezes nos encontramos. Dominam a Nação o arbítrio e a
opressão.
A reconquista das liberdades
democráticas deve constituir o ponto básico e irrenunciável da nossa luta, a
luta corajosa do povo brasileiro para a emancipação definitiva do Brasil. Duas
vezes preferi o sacrifício pessoal de poderes constitucionais à guerra civil e
ao ensangüentamento da Nação. Duas vezes evitei a luta entre irmãos. Só Deus
sabe quanto me custou a deliberação a que me impus e pude impor a milhões de
patriotas.
Em 1961, tolerei as maquinações
da prepotência e consenti na limitação de poderes que a Constituição me conferia,
para, depois, restaurá-los democraticamente, pela livre e esmagadora
deliberação da vontade popular. Nunca recorri à violência. Os tanques, os fuzis
e as espadas jamais, historicamente, conseguiram substituir, por muito tempo, a
força do direito e da justiça. A função que a Constituição lhes impõe é a
defesa da soberania do país e de suas instituições e nunca a tutela do
pensamento do povo, para suprimir e esmagar suas liberdades, como pretendem
alguns chefes militares.
Este ano, depois de recusar-me à
renúncia que nunca admiti, resolvi, pelo conhecimento real da situação militar,
não consentir no massacre do povo. Não só porque contrariava minha formação
cristã e liberal, mas porque eu sabia que o povo estava desarmado. Eu sabia que
a subversão, fartamente denunciada e muito bem paga, na profusão de rádios,
jornais e televisão, era o preparo da mentira do perigo comunista, que iria
constituir o ponto de partida para concretização da quartelada, a fim de que,
assim, pudessem esmagar as justas aspirações populares que o meu Governo
defendia. Baniram, ditatorialmente, o direito de defesa; humilharam a
consciência jurídica nacional; suprimiram o poder dos tribunais legítimos.
Invadiram universidades, queimaram bibliotecas; não respeitaram sequer as mesmas
igrejas onde antes desfilavam as contas de seus rosários. Trabalhadores,
estudantes, jornalistas, profissionais liberais, artistas, homens e mulheres
são presos pelo único crime da opinião pública, da palavra ou das idéias.
Cassam centenas de mandatos populares. Porventura são trapos de papel os
compromissos internacionais que assumimos na Declaração Universal dos Direitos
do Homem e na Carta organizatória das Nações Unidas?
Pessoalmente, tudo posso
suportar, como parcela do meu destino na luta da emancipação do povo
brasileiro. O que não posso é calar diante dos sofrimentos impostos a milhares
de patrícios inocentes e do esmagamento das nossas mais caras tradições
republicanas. Hoje, lançam contra mim toda a sorte de calúnias. Sei que
continuarão a injuriar-me. Mas o julgamento que respeito e que alguns temem é o
do povo brasileiro. É possível que haja cometido erros no meu Governo. Erros da
contingência humana. Mas tudo fiz para identificar-me com os sentimentos do
povo e da Nação e posso afirmar que assegurei a todos os brasileiros, inclusive
a meus adversários, o exercício mais amplo das liberdades constitucionais. Deus
não faltará com seu apoio à energia do povo para a reconquista de suas
liberdades. Ninguém impedirá o povo de construir o desenvolvimento nacional e
dirigir o seu próprio destino.
Tudo fiz por um Governo
democrático e justo, no qual se processassem, pacificamente, com a colaboração
dos órgãos legislativos, as transformações essenciais da sociedade brasileira;
quis um Governo que incorporasse à família nacional, com acesso aos benefícios
da civilização do nosso tempo, os milhões de patrícios humildes do campo e as
áreas marginalizadas da população urbana; empenhei-me por um Governo que
exprimisse os anseios legítimos dos trabalhadores, dos camponeses, dos
estudantes, dos intelectuais, dos empresários, dos agricultores, do homem
anônimo da rua para, todos juntos, travarmos a difícil luta contra a miséria, a
doença, o analfabetismo, o desemprego e a fome. Sobre mim recaiu, então, todo o
ódio dos interesses contrariados.
Promovi o reatamento de relações
diplomáticas com as nações do mundo e assumi a responsabilidade de alargar
nossos mercados, no interesse único da economia do país e do bem-estar do nosso
povo. Executei uma política externa independente. Condenamos o colonialismo,
sob qualquer disfarce, defendendo os princípios da não-intervenção e da
autodeterminação dos povos. Nunca transigi com a dignidade do meu país e o
respeito à sua soberania. Hoje, representantes estrangeiros interferem publicamente
nos assuntos internos do país ou conhecidas organizações monetárias
internacionais fixam, unilateralmente, condições humilhantes, em cláusulas de
negociações, para ajudas ilusórias que, internamente, agravam o sofrimento do
nosso povo e, externamente, aviltam os preços dos nossos principais produtos de
exportação. E já se fala na execução de acordos que abrirão o caminho legal
para a instalação, em nosso território, de importantes bases militares, sob o
controle e o comando de outras nações.
Decretei, brasileiros, a
regulamentação da lei de disciplina do capital estrangeiro. Decretei o
monopólio da importação do petróleo e a encampação das refinarias particulares.
Decretei a desapropriação de terras, objeto de especulação do latifúndio
improdutivo. Decretei a implantação da empresa brasileira de telecomunicações.
Lutei pela Eletrobrás. Decretei a limitação dos aluguéis, dos preços dos
remédios, dos calçados, das matrículas escolares, dos livros didáticos. Hoje,
os aumentos incontrolados do custo das utilidades indispensáveis à vida do povo
atingem limites insuportáveis.
Promovi, por todos os meios,
campanha intensiva de educação popular, para suprimir o analfabetismo em nossa
Pátria. Estimulei os investimentos que promovessem maiores oportunidades de trabalho.
Quis vencimentos dignos para todos os servidores públicos, civis e militares.
Assegurei aos trabalhadores do campo o direito legal de organizarem seus
sindicatos e defendi o salário real de todos os brasileiros, que deve
acompanhar a elevação do custo de vida, respeitando a liberdade constitucional
dos seus movimentos reivindicatórios legítimos.
Bati-me pelas reformas de base,
para que o Congresso as votasse democrática e pacificamente. Muitas vezes pedi
a colaboração de suas lideranças partidárias. Nada foi possível obter. Mas
ninguém se engane. As reformas estruturais, que tudo empenhei por alcançar,
rigorosamente dentro do processo constitucional, nenhuma força conseguirá
detê-las e nada impedirá a sua consecução. Neste dia, brasileiros, longe de
todos, o pensamento voltado para a memória de Getúlio Vargas, que tombou
sacrificado pelas mesmas forças que hoje investem contra mim, reflito sobre as
permanentes verdades que o admirável estadista denunciou em sua
Carta-Testamento, e anima-se a confiança que tenho no futuro do meu país. Não
posso concebê-lo presa da intolerância, da tirania, da ilegalidade, que são
atitudes repudiadas pelos sentimentos generosos de nossa gente.
Sem ressentimentos na alma, sem
ódios, sem qualquer ambição pessoal, conclamo todos os meus patrícios, todos os
verdadeiros democratas, a família brasileira, enfim, para a tarefa de
restauração da legalidade democrática, do poder civil e da dignidade das nossas
instituições republicanas. Queremos um Brasil livre, onde não haja lugar para
qualquer espécie de regime ditatorial, com uma ordem fundada no respeito à
pessoa humana, no culto aos valores morais, espirituais e religiosos do nosso
povo. Queremos um Brasil justo, progressista, capaz de assegurar confiança ao
trabalho e à ação de todos os brasileiros. Queremos um Brasil fiel às origens
de sua formação cristã e de sua cultura, libertado da opressão, da ignorância,
da penúria, do atraso, do medo, da insegurança.
Deus guiará o povo brasileiro
para os objetivos patrióticos de nossa luta.