sábado, 1 de março de 2014

Dra. Sílvia Viana: Preferiria não


Luvas de pelica com peso de chumbo


A Dra. Silvia Viana sendo procurada por um representante da revista Veja para conceder uma entrevista sobre o programa BBB, respondeu por e-mail de uma forma bem simples e com bastante objetividade.
Essa resposta representa o que milhões de brasileiros gostariam de dizer.


“Respondo seu e-mail pelo respeito que tenho por sua profissão, bem como pela compreensão das condições precárias às quais o trabalho do jornalista está submetido”. Contudo, considero a ‘Veja’ uma revista muito mais que tendenciosa, considero-a torpe. Trata-se de uma publicação que estimula o reacionarismo ressentido, paranoico e feroz que temos visto se alastrar pela sociedade; uma revista que aplaude o estado de exceção permanente, cada vez mais escancarado em nossa “democracia”; uma revista que mente, distorce, inverte, omite, acusa, julga, condena e pune quem não compartilha de suas infâmias – e faz tudo isso descaradamente; por fim, uma revista que desestimula o próprio pensamento ao ignorar a argumentação, baseando suas suposições delirantes em meras ofensas.

Sendo assim, qualquer forma de participação nessa publicação significa a eliminação do debate (nesse caso, nem se poderia falar em empobrecimento do debate, pois na ‘Veja’ a linguagem nasce morta) – e isso ainda que a revista respeitasse a integridade das palavras de seus entrevistados e opositores, coisa que não faz, exceto quando tais palavras já tem a forma do vírus.

Dito isso, minha resposta é: Preferiria não.

Atenciosamente, Sílvia Viana





Silvia Viana possui graduação em ciências sociais, mestrado e doutorado em sociologia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Suas áreas de estudos são sociologia, crítica cultural e filosofia, com ênfase em teoria crítica contemporânea, teoria sociológica e sociologia da cultura e nos temas ideologia, indústria cultural, consumo, trabalho e subjetividade.


 Silvia Viana sobre a relação entre "1984", de George Orwell e os "reality shows": 




Seu livro

Rituais de sofrimento
Prefácio: Orelha: Gabriel Cohn
Posfácio: Pedro Rocha de Oliveira
Páginas: 192
Ano de publicação: 2013
ISBN: 978-85-7559-309-7







A autora abre o livro da seguinte maneira:

No dia 25 de julho de 2010, o programa Pânico na TV levou ao ar uma brincadeira realizada ao vivo com seus próprios humoristas. Logo que chegaram ao Aeroporto Internacional de Guarulhos vindos da África do Sul, onde cobriram a Copa das Confederações da Fifa, foram recebidos pela produção que lhes ofereceu uma merecida carona, já que a equipe estava exausta da viagem e, segundo o próprio programa, havia trabalhado sem descanso e em péssimas condições. Em vez de irem para casa, conforme o prometido, passaram horas rodando sem destino por São Paulo, até que foram deixados no Aeroporto de Congonhas. Lá chegando, um colega humorista os recebeu afirmando que se tratava de uma brincadeira, e o cansaço do passeio seria apenas o início, pois em seguida eles deveriam se encaminhar ao estúdio para enfrentar uma lutadora profissional de vale-tudo. Já muito irritado, um técnico da equipe desabafou: “Eu sou câmera, eu não tenho que tá participando desse negócio aí [...] tô cansado, porra, são quarenta dias, doze horas, comendo mal…”. Todos os outros protestaram e, transtornados, se recusaram a participar: “É uma falta de respeito isso com o cara que tá trabalhando, quero ir embora, quero ir para minha casa”. O produtor do programa interveio e, com um celular em riste, ameaçou: “Tem uma ordem que é do Emílio e do Alan [diretores] pra todo mundo entrar no carro agora e ir todo mundo pra lá”. Não obstante o ódio generalizado, eles retornaram ao carro. O humorista encarregado da piada tentou inúmeras vezes fazer os outros rirem até que, já constrangido, falou em tom de brincadeira: “Não fica bravo comigo, tô aqui trabalhando, cumprindo ordens”. O outro respondeu: “Brincar… a gente até compartilha com vocês, só que a gente tá sem comer, sem dormir, entendeu? É desumano isso, pra caramba”. O operador de câmera, irado, completou: “Eu tenho uma puta consideração com você, mas como você consegue ver graça nisso, ver seus amigos de trabalho se fodendo [...] uma situação que não tem graça [...] O cara lá em casa vai olhar para mim e achar engraçado ‘ha, ha, o cameraman tá fodido’”. Quando chegaram ao estúdio, aquele que ainda tentava piadas, mas cujo olhar traduzia tristeza, disse com seriedade: “Vem, por favor, eu também tô cansado, desculpa aí”. 

Capítulo 1: Como essa coisa pôde ser televisionada sem a menor vergonha?

Capítulo 2: O que sustenta a ameaça dos diretores?

Capítulo 3: Por que a equipe voltou ao carro?

Capítulo 4: Como o humorista suportou “ver seus amigos de trabalho se fodendo”?

Capítulo 5: Por que a piada continuou?





Professora de sociologia na Fundação Getúlio Vargas (FGV) e doutora pela USP, Silvia Viana leva a sério o aparente escárnio da designação “reality show” em Rituais de sofrimento, novo livro da coleção Estado de Sítio a ser publicado pela Boitempo.

“Não lidamos aqui com um ritual como outro qualquer, não se trata de uma festa ou do consumo, ambos cerimoniais oferecidos aos deuses do prazer. Trata-se de algo mais perturbador, pois o que se vê nos reality shows é a proliferação de rituais de sofrimento”, afirma a pesquisadora no primeiro capítulo.

Silvia Viana analisa tais rituais e mecanismos de dominação em vários produtos televisivos da indústria cultural brasileira, com especial atenção ao maior deles, o Big Brother Brasil, no ar há treze anos. O estudo também abrange programas e filmes de Hollywood que perpetuam a mesma lógica brutal. Assim como no BBB, o assassino Jigsaw da franquia Jogos Mortais, por exemplo, não almeja a morte/eliminação de suas vítimas: ele quer que elas sobrevivam. Mais que isso, que sobrevivam a qualquer preço.

Quais são as molas que movem esse lado fake e nem por isso menos real do mundo em que vivemos? Onde estão as roldanas que dirigem as cordas, quem são as figuras que elas agitam, como o conjunto se fecha sobre si mesmo sem deixar lacunas? Silvia reflete sobre essas questões em um relato clínico, com traços firmes e finos, sem poupar nada nem ninguém. Segundo o sociólogo e professor da USP Gabriel Cohn, a fatura desse livro parece seguir uma regra básica: quanto mais o tema se revela repugnante, tanto mais refinada deve ser a sua exposição. O resultado é uma escrita em que não cabe o gesto banal da indignação moral nem a repulsa à má qualidade estética – ambas provocações já programadas no espetáculo –, mas algo mais fundo.

Apesar de permanecer na sociedade o debate em torno de um de seus discursos de origem, o mote do espetáculo da realidade e seu maior apelo junto aos telespectadores é a concorrência, não o voyeurismo. “É esse o fundamento que atrai o nosso olhar, pois é o fundamento de nossa reprodução social”, afirma Silvia.

Para além dos inúmeros recordes acumulados pelo programa Big Brother Brasil, é digno de atenção o espírito que, ao longo de três meses anuais, toma o público. A disputa hipnotiza as cidades como um espectro: sem entender como, sabemos nomes e acontecidos, o programa toma o ar e sufoca. É onipresente; está em todas as mídias e em todas as conversas; suscita contendas nos ônibus e táxis. Mas é na internet que o comprometimento do público toma corpo: sites, grupos de debate, blogs, salas de bate-papo, tuitagens, comunidades virtuais e campanhas inflamadas para a eliminação de fulano ou beltrano proliferam e deixam o rastro do dinheiro, trabalho e tempo oferecidos gratuitamente ao show de horror. Em espaços de reclusão, que pela própria dimensão já inspiram pesquisas acadêmicas, é unânime o desejo do embate feroz entre os aprisionados. Neles, impera o princípio muito bem formulado pelo organizador da rinha: importa muito mais a queda que a salvação.

O princípio violento do BBB não é oculto, pelo contrário, o próprio programa faz questão de afirmá-lo constantemente – e funciona inúmeras vezes como propaganda – ao enfatizar o caráter eliminatório e cruel do jogo. Cada edição impõe a seus participantes situações mais árduas. “Não é um jogo de quem ganha. É um jogo de eliminação. Esse saber generalizado, no entanto, não impede que uns se submetam e outros castiguem, nem que aqueles que se submetem também castiguem. Pelo contrário, a participação é a pedra fundamental do espetáculo. Mais que a aceitação passiva desse princípio nem um pouco subjacente, o programa conquista o engajamento ativo, frequentemente maníaco, nessa engrenagem de fazer sofrer”, afirma Silvia.

Dividido em quatro partes, “Show de horror”, “Das regras”, “Dos jogadores” e “Das provas”, o livro conta também com o posfácio “Breve história da realidade: sofrimento, cultura e dominação”, do professor-adjunto de filosofia da Universidade Federal de Juiz de Fora Pedro Rocha de Oliveira, e com texto de orelha assinado por Gabriel Cohn.

Trecho do livro

“A dificuldade de se escrever a respeito da ideologia hoje é que para o juízo bastaria a descrição, mas essa já não o (co)move. Se uma pessoa se mostra crítica ou mesmo condoída diante do sofrimento que se avoluma nesse tipo de programa de TV, a ela caberá a pecha de idiota (ou invejosa!). A dominação se mostra a céu aberto em dia claro, sem que se renuncie à sua prática. Todo discurso a respeito de justiça, liberdade, igualdade e até mesmo bondade é descartado com virilidade em nome de uma dura realidade. [...] Não são poucas as vezes em que coloco o problema do sofrimento ao qual são submetidos os participantes e a resposta é: “Mas foram eles que se voluntariaram”. Uma das ideias centrais que sustentam o estado de direito é a da inalienabilidade: não se pode abrir mão da dignidade, por exemplo, mesmo que se queira. Em tese, nenhum contrato assinado pelos participantes de reality shows poderia ser válido em qualquer lugar no qual a democracia e os direitos humanos vigoram. E o problema jurídico posto por essas produções não responde sequer ao paradoxo dos direitos humanos colocado por Hannah Arendt, segundo a qual tais direitos só podem ter vigência quando levados a cabo pelos estados nacionais, ou seja, os apátridas não os têm. Os participantes são cidadãos brasileiros, alemães, norte-americanos, holandeses, argentinos e um longo etc. A vida à disposição da produção de entretenimento a que se assiste em reality shows é um índice mais do que transparente de que vivemos em um estado de exceção permanente, pulverizado e onipresente.”



Leia a orelha do livro, assinada por Gabriel Cohn


Você sabe o que é o inferno? É o lugar em que a mera ideia de dizer “basta” ao sofrimento que uns infligem a outros a céu aberto é impensável. Entretanto, estamos num universo – o dos reality shows na televisão – no qual, sem o céu da promessa e sem o cenário da exposição pública e ampla, nada de inferno. Aqui, como em todo lugar só que em escala brutal, céu e inferno se irmanam, demonstra o preciso relatório que se lê neste livro. Silvia Viana leva a sério o aparente escárnio da designação reality show. Quais são as molas que movem esse lado fake e nem por isso menos real do mundo em que vivemos, onde estão as roldanas que dirigem as cordas, quem são as figuras que elas agitam, como o conjunto se fecha sobre si mesmo sem deixar lacunas – está tudo no texto, e este se desenvolve com traços firmes e finos, sem poupar nada. A primeira coisa que ocorre ao mais distraído leitor é: isso é puro Kafka. E é por aí mesmo que o livro começa. O espantoso não é que se possa evocar Kafka – pelo contrário, isso bem poderia soar kitsch. Espanta, porém, e causa admiração e leva a ler e reler este relatório clínico, que sua escrita é digna de um Kafka. Como o é a sensibilidade sem a qual ninguém se aventuraria no mundo das sombras e dos gemidos que se oculta logo atrás da luz fulgurante e do alarido do espetáculo e ainda teria coragem de retornar com a memória cristalina do testemunho. E tudo isso sem um gesto de indignação autocomplacente e sem perder a capacidade de converter a repulsa em um humor agridoce tanto mais incisivo quanto mais suave. A fatura deste livro parece seguir uma regra básica: quanto mais o tema se revela repugnante tanto mais refinada deve ser a sua exposição. O resultado é que a leitura vai revelando que, diante disso que assim se expõe, não cabe o gesto banal da indignação moral (na realidade, mostra-se que esse gesto mesmo já está programado no espetáculo) nem a repulsa à má qualidade estética (também isso é provocação, convite, engodo), mas algo mais fundo. É que o rótulo reality show pode muito bem ser levado ao pé da letra.

Trecho do livro

“Por trás do sucesso de audiência dos realities, estão as engrenagens da indústria cultural e um formato que também prolifera por um interesse econômico bastante simples: trata-se de um produto muito barato, cujo retorno financeiro compensa. A razão do baixo custo está no fato de ser uma mercadoria fabricada just-in-time. Os shows de realidade podem ser realocados, encurtados, expandidos, retirados ou recolocados na programação, segundo os índices de audiência, com maior facilidade que os outros programas. Os reality shows são produções que dispensam estoques: em sua maioria, não há necessidade de cenários, e mesmo aqueles que criam ambientes-prisões precisam de apenas um espaço, que pode ser reciclado a cada edição. O Big Brother não abre mão de um roteiro, cabe à “pessoa de carne e osso” elaborá-lo, caso contrário será tida por “passiva” e será demitida no próximo “paredão”. “



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