O artigo que Dalmo de Abreu Dallari publicou na Folha, em 8 de maio de
2002
DALMO DE ABREU DALLARI
Nenhum Estado moderno pode ser
considerado democrático e civilizado se não tiver um Poder Judiciário
independente e imparcial, que tome por parâmetro máximo a Constituição e que
tenha condições efetivas para impedir arbitrariedades e corrupção, assegurando,
desse modo, os direitos consagrados nos dispositivos constitucionais.
Sem o respeito aos direitos e
aos órgãos e instituições encarregados de protegê-los, o que resta é a lei do
mais forte, do mais atrevido, do mais astucioso, do mais oportunista, do mais
demagogo, do mais distanciado da ética.
Essas considerações, que
apenas reproduzem e sintetizam o que tem sido afirmado e reafirmado por todos
os teóricos do Estado democrático de Direito, são necessárias e oportunas em
face da notícia de que o presidente da República, com afoiteza e imprudência
muito estranhas, encaminhou ao Senado uma indicação para membro do Supremo
Tribunal Federal, que pode ser considerada verdadeira declaração de guerra do
Poder Executivo federal ao Poder Judiciário, ao Ministério Público, à Ordem dos
Advogados do Brasil e a toda a comunidade jurídica.
Se essa indicação vier a ser
aprovada pelo Senado, não há exagero em afirmar que estarão correndo sério
risco a proteção dos direitos no Brasil, o combate à corrupção e a própria
normalidade constitucional. Por isso é necessário chamar a atenção para alguns
fatos graves, a fim de que o povo e a imprensa fiquem vigilantes e exijam das
autoridades o cumprimento rigoroso e honesto de suas atribuições
constitucionais, com a firmeza e transparência indispensáveis num sistema
democrático.
Segundo vem sendo divulgado
por vários órgãos da imprensa, estaria sendo montada uma grande operação para
anular o Supremo Tribunal Federal, tornando-o completamente submisso ao atual
chefe do Executivo, mesmo depois do término de seu mandato. Um sinal dessa
investida seria a indicação, agora concretizada, do atual advogado-geral da
União, Gilmar Mendes, alto funcionário subordinado ao presidente da República,
para a próxima vaga na Suprema Corte. Além da estranha afoiteza do presidente
-pois a indicação foi noticiada antes que se formalizasse a abertura da vaga-,
o nome indicado está longe de preencher os requisitos necessários para que
alguém seja membro da mais alta corte do país.
É oportuno lembrar que o STF
dá a última palavra sobre a constitucionalidade das leis e dos atos das
autoridades públicas e terá papel fundamental na promoção da responsabilidade
do presidente da República pela prática de ilegalidades e corrupção.
É importante assinalar que
aquele alto funcionário do Executivo especializou-se em “inventar” soluções
jurídicas no interesse do governo. Ele foi assessor muito próximo do
ex-presidente Collor, que nunca se notabilizou pelo respeito ao direito. Já no
governo Fernando Henrique, o mesmo dr. Gilmar Mendes, que pertence ao
Ministério Público da União, aparece assessorando o ministro da Justiça Nelson
Jobim, na tentativa de anular a demarcação de áreas indígenas. Alegando
inconstitucionalidade, duas vezes negada pelo STF, “inventaram” uma tese
jurídica, que serviu de base para um decreto do presidente Fernando Henrique
revogando o decreto em que se baseavam as demarcações. Mais recentemente, o
advogado-geral da União, derrotado no Judiciário em outro caso, recomendou aos
órgãos da administração que não cumprissem decisões judiciais.
Medidas desse tipo, propostas
e adotadas por sugestão do advogado-geral da União, muitas vezes eram
claramente inconstitucionais e deram fundamento para a concessão de liminares e
decisões de juízes e tribunais, contra atos de autoridades federais.
Indignado com essas derrotas
judiciais, o dr. Gilmar Mendes fez inúmeros pronunciamentos pela imprensa,
agredindo grosseiramente juízes e tribunais, o que culminou com sua afirmação
textual de que o sistema judiciário brasileiro é um “manicômio judiciário”.
Obviamente isso ofendeu
gravemente a todos os juízes brasileiros ciosos de sua dignidade, o que ficou
claramente expresso em artigo publicado no “Informe”, veículo de divulgação do
Tribunal Regional Federal da 1ª Região (edição 107, dezembro de 2001). Num
texto sereno e objetivo, significativamente intitulado “Manicômio Judiciário” e
assinado pelo presidente daquele tribunal, observa-se que “não são decisões
injustas que causam a irritação, a iracúndia, a irritabilidade do
advogado-geral da União, mas as decisões contrárias às medidas do Poder
Executivo”.
E não faltaram injúrias aos
advogados, pois, na opinião do dr. Gilmar Mendes, toda liminar concedida contra
ato do governo federal é produto de conluio corrupto entre advogados e juízes,
sócios na “indústria de liminares”.
A par desse desrespeito pelas
instituições jurídicas, existe mais um problema ético. Revelou a revista
“Época” (22/4/ 02, pág. 40) que a chefia da Advocacia Geral da União, isso é, o
dr. Gilmar Mendes, pagou R$ 32.400 ao Instituto Brasiliense de Direito Público
-do qual o mesmo dr. Gilmar Mendes é um dos proprietários- para que seus
subordinados lá fizessem cursos. Isso é contrário à ética e à probidade
administrativa, estando muito longe de se enquadrar na “reputação ilibada”,
exigida pelo artigo 101 da Constituição, para que alguém integre o Supremo.
A comunidade jurídica sabe
quem é o indicado e não pode assistir calada e submissa à consumação dessa
escolha notoriamente inadequada, contribuindo, com sua omissão, para que a
arguição pública do candidato pelo Senado, prevista no artigo 52 da Constituição,
seja apenas uma simulação ou “ação entre amigos”. É assim que se degradam as
instituições e se corrompem os fundamentos da ordem constitucional democrática.